• Nenhum resultado encontrado

As formas do fazer etnográfico no IHGB

2. A etnografia indígena em Rodolfo Garcia

Em 1922, foi publicado no Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil um artigo de Rodolfo Garcia intitulado Etnografia Indígena. Neste texto, Garcia realizou um balanço das classificações etnográficas existentes desde os primeiros contatos entre portugueses e indígenas durante o período da colonização, até as revisões do início do século XX com o intuito de propor sua própria classificação. Que, realizada a partir das demais, seria a mais atualizada e completa possível naquele momento. O tema indígena não foi a principal preocupação do historiador, mas ocupou um importante espaço em suas produções, entre as quais poderíamos citar Nomes de Aves em Língua Tupi de 1913 e os posteriores Glossário das palavras e frases da lingua Tupi na Histoire de la mission des Pères Capucins en Maragnan de 1927, Exostismos franceses originários da língua Tupi de 1942, Nomes de parentesco em língua Tupi de 1944 e o esforço de publicação do livro do século XVII de Luiz Mamiani Catecismo da Doutrina Cristã na Língua Brasílica da Nação Kariri em 1942. Essas publicações demonstram uma dedicação durante toda sua trajetória ao tema indígena e em especial à língua Tupi, assim como algumas das principais características que encontramos entre os sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que se dedicaram à etnografia: utilização de fontes coloniais para seus estudos, se aproximando em termos metodológicos ao trabalho do historiador; publicação de documentos que servissem para este fim; e predominância do interesse em questões de linguagem.

Um dos maiores esforços dos intelectuais envolvidos com os estudos indígenas no IHGB foi classificar as diferentes populações existentes dentro do território nacional.

Porém, os primeiros empreendimentos nesse sentido foram realizados em outro contexto, concebidos como gramáticas e vocabulários para a evangelização dos habitantes encontrados em terras brasileiras, ainda no início do período colonial. Desde os primeiros momentos a língua mais estudada foi aquela dos indígenas do litoral, em especial o Tupi, mas não exclusivamente. Língua esta que serviu de base para o desenvolvimento de uma gramática pelo Padre Anchieta da “língua brasílica”, ou “língua geral”, como ficou conhecida.206 Esses trabalhos de missionários e cronistas constituem as primeiras sistematizações sobre a língua dos indígenas e, foram essenciais para a escrita da história iniciada no século XIX quando se tornaram documentos do passado da Nação.

Ao serem lidos como documentos, esses textos se tornaram fundamentais para o conhecimento produzido pelos sócios do IHGB sobre as populações indígenas. Prova disto é que no início do século XX alguns ainda eram publicados pela Revista ou eram objetos de reflexão, além do uso como fontes privilegiadas para novos estudos. Porém, principalmente no último quartel do oitocentos, numerosas viagens etnográficas foram realizadas pelo país gerando diversas revisões nas primeiras classificações indígenas. Assim, os estudiosos dedicados à etnografia passaram a utilizar além dessas fontes coloniais o olhar dos novos viajantes, especialmente, Karl von Martius, Karl von den Steinen (1855 – 1929) e Paul Ehrenreich (1855 – 1914). Antes de nos dedicarmos ao texto de Rodolfo Garcia publicado no Dicionário e à importância destes viajantes para a etnografia, alguns apontamentos sobre as concepções historiográfica e etnográfica do autor são necessárias.

Escrevo concepções historiográfica e etnográfica lado a lado, pois naquele momento de indefinição disciplinar talvez seja impossível separá-las, ainda mais quando estamos tratando de um único autor. No caso de Rodolfo Garcia esta diferenciação seria até mesmo infrutífera. Garcia foi um intelectual típico daquele início de século, quando letrados se dedicavam a diferentes áreas do conhecimento. Assim, produziu textos historiográficos, etnográficos, sobre biblioteconomia, expressões linguísticas, etc. Além de apresentar seus 206 Para informações mais detalhadas e uma análise sobre os trabalhos de jesuítas a respeito das línguas

indigenas que resultaram em diversas publicações ver: MONTEIRO, John.. A língua mais usada na costa do Brasil: Gramáticas, Vocabulários e Catecismos em Línguas Nativas na América Portuguesa. In Tupis, tapuias

e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Livre Docência em Antropologia) –

resultados em diferentes formatos, como livros, artigos, anotações, catálogos e edições documentais.207 Mas algo comum perspassava todas as pesquisas realizadas por Garcia, a importância documental para a sua atividade intelectual, como é possível observar nesse parágrafo que sintetiza essa preocupação com as fontes:

As informações de Anchieta, bem como as de Gandavo, Gabriel Soares, Fernão Cardim, Léry e Hans Staden completam a documentação ethnographica com relação ao primeiro seculo; para o periodo subsequente ha de se lançar mão das noticias de Simão de Vasconcellos e dos escriptors hollandezes, ou como taes considerados, Piso e Marcgrav, Barlaeus, Elias Herckmans, Roulox Baro e outros. No seculo XVIII o material avoluma-se em proporções enormes, á medida que se alarga o ambito das explorações geographicas, mas tão complexo, tão enredado, não raro tão inacessivel que, domina-lo, determinando a situação de cada tribu ou grupo sobre as coordenadas ethnographicas, foi tarefa só iniciada em principios do seculo passado, reforçada com sucesso em fins do mesmo seculo, mas ainda não de todo concluida no presente.208

Reconhecido como um dos seguidores de Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia foi responsável por concluir a obra iniciada por Abreu de anotação à Historia Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagem. Transformando um livro escrito em dois tomos, no século XIX, em impressionantes cinco tomos completados com notas de rodapé e fim de sessão. Mais relevante que a extensão do empreendimento acredito que seja o significado de tal ato. Anotar para corrigir um outro autor, demonstra que a condição para escrita do passado estava nos documentos e estes, além de necessários, permitiam através da crítica do historiador o acesso a uma certa objetividade por parte do ofício, chegando ao extremo de permitir a correção de uma autoria. Uma das mais famosas frases de Capistrano evidencia esta questão: “A História do Brasil dá a ideia de uma casa edificada na areia. É uma pessoa encostar-se numa parede, por mais reforçada que pareça, e lá vem abaixo toda a 207 Aspectos biográficos e profissionais de Rodolfo Garcia podem ser consultados em BATALHONE

JÚNIOR, Vitor Claret. Uma história das notas de rodapés: a anotação da História Geral do Brazil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1953). 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UFRGS, Porto Alegre; e também em BRÖNSTRUP, Gabriela.Organizar acervos e publicar documentos históricos no Brasil durante as primeiras décadas do século XX: considerações a respeito do trabalho de um historiador . Cultura histórica & Patrimônio, v. 2, p. 182-202, 2013.

208GARCIA, Rodolfo. Ethnografia indígena. In. Dicionário, Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil.

grampiola”209. Uma casa edificada na areia não teria estrutura suficiente para se sustentar, metáfora para o uso documental pelo historiador. Como, portanto, superar a obra que em seu ponto de vista era a mais completa em termos documentais até então escrita? A única possibilidade em uma perspectiva metódica210 do fazer histórico seria a ampliação documental da mesma, para construir um alicerce suficientemente forte para sustentar uma nova História do Brasil. Nem Capistrano, nem Garcia, produziram essa nova História do Brasil, mas a estavam construindo dentro de métodos rígidos, nesse sentido a anotação e a edição documental era uma das formas de escrita do passado naquele momento.

Esse movimento realizado por Capistrano em relação a obra de Varnhagen atribuindo-lhe a condição de “marco fundador” da história da história do Brasil,211não seria semelhante ao ocorrido com Karl von Martius ao ser considerado o primeiro a classificar com um maior rigor metodológico as tribos indígenas? E a resposta de Rodolfo Garcia não seguia os mesmo parâmetros que delimitavam a sua compreensão do fazer do historiador? Se a grande obra a ser superada para a história era o livro de Varnhagen, no início do século XX a grande classificação que precisava ser superada para o avanço da etnografia era exatamente a de von Martius. Este, inclusive, seria o principal debate durante o I Congresso de História Nacional, com a busca de outras formas de classificar apresentadas pelos participantes da sessão de etnografia. E se, como argumentamos aqui, as regras do jogo eram as mesmas para Rodolfo Garcia, a melhor resposta possível era avaliar o estado da arte, verificando se as bases da construção eram de areia ou não. E sua resposta é clara, as viagens etnográficas dos alemães Karl von den Steinen e Paul Ehrenreich propiciaram um conhecimento maior e suficiente para reformular a obra de von Martius de forma segura, somente a partir dessas bases Garcia pôde propor sua própria classificação.

209ABREU, Capistrano apud OLIVEIRA, Maria Glória. Op. Cit. 2006, p. 51.

210 Sobre um autor brasileiro que seguiu esse método como perspectiva teórica ver, ANHEZINI, Karina. Ummetódico à brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). São Paulo: Editora

UNESP, 2011

211 Para se escrever uma história do Brasil melhor do que a de Varnhagen, conclui Capistrano, seriam

necessários o adiantamento e a acumulação dos estudos históricos, como se cada monografia servisse de "pedra para o monumento". Somente quando muitos desses trabalhos estivessem terminados e reunidos, Varnhagen desceria de seu pedestal. Até lá, restava reconhecer nele, pela precedência e mérito da obra, o "pai" legítimo da historiografia brasileira. Com efeito, ao atribuir-lhe um tal lugar, no limiar da história do Brasil, mas também criticamente examinado. Por sua vez, a condição de marco fundador, atribuída à sua História Geral, a convertia, a um só tempo, em cânone historiográfico e objeto de possíveis acréscimos e necessárias retificações. OLIVEIRA, Mari Glória. Op Cit., p. 86.

Para a classificação ethnographica, Ehrenreich recomenda toda a precaução no emprego dos caracteres corporaes, que admitte apenas no caso de coincidirem typos anthropologicos determinados com grupos linguisticamente connexos e tambem affins de sangue. Ao contrario, entende aquelle auctor que devemos ter sempre em mente que tribus amplamente disseminadas, de grupo linguistico egual, apresentam na maioria das vezes as mais flagrantes variedade somaticas. Basta esta consideração para que releguemos para plano inferior o methodo, de que usaram e abusaram os auctores antigos e mesmo alguns modernos na determinação das tribus brasileiras, ou sul-americanas em geral. A orientação que deve ser seguida fornece-a a Linguistica. Iniciou-a o sabio Martius, benemerito da Sciencia na investigação da Flora brasileira; continuaram-na Von den Steinen, Lucien Adam, Ehrenreich, Brinton, Raoul de la Grasserie, Koch-Grunberg, Beuchat, Rivet, Créqui-Montfort, Schuller, e outros mais.212

A classificação de Martius é o ponto de partida do texto de Rodolfo Garcia.213A partir dela o historiador compila as principais críticas de Ehrenreich, que também são as suas e podem ser resumidas em alguns pontos: 1) Martius não teve contato com tribos indígenas intactas de contato com a civilização; 2) manteve contato com indígenas catequisados ou desmoralizados pelo comércio com o europeu e pelo contato com o tráfico de escravos; 3) foi um entusiasta da tupimania, exagerando a extensão e importância desse povo; 4) confunde diferentes tribos por não levar em consideração migrações e cisões das mesmas. A partir dessas críticas Ehrenreich construiu sua própria classificação.214 A apresentação dessas duas classificações servem como introdução. Deste ponto em diante Rodolfo Garcia faz sua própria divisão no texto e arrola uma discussão bibliográfica para cada um deles, a saber: I) Grupo Tupi-Guarani; II) Grupo Nu-Aruak; III) Grupo Caraíba; IV) Grupo Gé; V) Grupo Carirí; VI) Grupo Pano; VII) Goitacás e Guaicurús; VIII) Borôros, Carajás, Trumaís 212GARCIA, Rodolfo. Op. Cit. p. 250.

213Rodolfo Garcia resume da seguinte forma a classificação de Martius: I. Tupís e Guaranís - os guerreiros; II.

Gés ou Crans - os cabeças; III. Guck ou Coco - os tios; IV. Crens ou Guerens - os velhos; V. Parecís ou Poragís - os de cima; VI. Goitacás - os corredores da matta; VII. Aruak ou Aroaquiz - a gente da farinha; VIII. Lengoas ou Guaicurús - os cavalleiros; IX. Indios em transição para a cultura e a língua portugueza. Idem, p. 251.

214 I. Tupís; II. Gés; III. Caraibas; IV. Nu-Aruak ou Maipure; V. Goitacás (Waitaca); VI. Panos; VII.

e Nhambiquaras; IX) Betóias, ou Tucanos, Tacanas, Pébas, Cahuapanas, Catuquinas e Macús.

Diferentemente das classificações anteriores a de Rodolfo Garcia não parte de um contato com tribos indígenas. Todo o seu trabalho é realizado a partir de uma bibliografia que percorre desde os primeiros escritos sobre as respectivas populações analisadas, até as obras mais recentes de seus contemporâneos. Seu método, por conseguinte, é muito semelhante ao empregado como historiador. Poderíamos classificar esse texto como uma história desses grupos realizada a partir de narrativas coloniais e explorações cientificas que percorreram todo o território nacional. Ao contrário dos livros apresentados no item anterior, aqui a interação entre pesquisador e informante não existe. É um trabalho bibliográfico que se debruça sobre a própria área em questão. No entanto, atinge uma dimensão maior que apenas um balanço ao propor sua própria classificação das populações indígenas do Brasil.

O antropólogo Luis de Castro Faria, ao rememorar sua formação ao mesmo tempo em que analisa os caminhos de sua disciplina, destaca que a área da etnografia entrou na universidade como parte dos cursos de História e Geografia. Segundo o autor, mais alguns anos após o advento da universidade no país foram necessários para que a antropologia e etnografia ganhassem autonomia frente esses lugares disciplinares em que ela se desenvolveu. Neste contexto, Faria também destaca a falta de bons materiais que os alunos dispunham para o estudo, e demonstra o alcance que o texto Rodolfo Garcia possuiu como um dos poucos materiais de qualidade que disponíveis no período:

A bibliografia para a área de etnografia indígena ao alcance dos alunos era, no entanto, bem mais limitada e dispersa. Além disso, os trabalhos em português , quando apresentavam uma visão mais ampla e integrativa, era de natureza histórica. O primeiro trabalho, que me fizeram ler inicialmente, foi o de Rodolfo Garcia. “Etnografia Indígena”, inserido no volume I do Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil (I, 129-277), comemorativo ao Centenário da Independência (1922), volume que tem nada menos que 1888 páginas, em texto de duas colunas, de grande formato. Um volume que, de certo, não era portátil. É curioso que o capítulo X, consagrado à etnografia, além do texto de Rodolfo Garcia, só inclui o de Oliveira Viana, intitulado “O tipo brasileiro: seus elementos

formadores”. Não se havia caracterizado ainda uma “etnografia do negro”.215

E continua:

Os dois textos tornaram-se, verdade, paradigmas. O de Rodolfo Garcia, apoiado numa bibliografia de 144 títulos que inclui todos os clássicos - Martius, von den Steinen, Ehrenreich, Koch-Gunberg, Krause, Nordenskiold, Rivet e outros -, representou, de fato, durante anos, o que de melhor se podia consultar a respeito da produção de conhecimentos sobre os grupos indígenas do Brasil. Nele são vulgarizados em vernáculo as classificações etnográficas, em bases linguísticas, propostas pelos autores alemães. Do trabalho de Rodolfo Garcia valeram-se todos os autores de livros didáticos de história destinados ao ensino médio. A versão condensada e simplória que compuseram repete-se até hoje, com todos os nomes dispostos na mesma ordem: “Martius, von de Steinen, Ehrenreich, Tupis-Guaranis, Gês, Caribas e Aruaques”. O texto-fonte, de Rodolfo Garcia, no entanto, não é apenas histórico, mas também crítico. É uma mise-au-point, com julgamento judicioso de todas as contribuições importantes, comparações e acréscimos, no sentido de atualização da literatura.216

Para Luis de Castro Faria, a função desempenhada pelo texto de Rodolfo Garcia seria superada apenas em 1943, com a publicação de Introdução à Antropologia Brasileira de Arthur Ramos. A abordagem crítica e histórica de Garcia era, portanto, mais uma possibilidade da etnografia dentro dos quadros do IHGB nas primeiras décadas do século XX. Ao lado dos autores que podemos dizer que se dedicaram ao fazer etnográfico - como Capistrano de Abreu, Basílio de Magalhães e Theodoro Sampaio -, Rodolfo Garcia representa a etnografia sob uma perspectiva histórica, uma vertente bastante frequente, como pudemos ver nas teses apresentadas no congressos.