• Nenhum resultado encontrado

I. Enquadramento histórico e musical

I.2 A evolução da voz do tenor durante a última metade do século XVIII

O aparecimento dos castrati na segunda metade do século XVI e a sua permanência até ao século XVIII foi notável e constituiu uma das partes importantes da escola musical italiana. Eram rapazes castrados antes de entrarem na adolescência para poderem preservar a laringe de infância e o som, sem alterarem a voz devido às alterações hormonais da puberdade.34 Como as mulheres estavam proibidas de interpretar música sacra no século XVI, as partes de música sacra polifónica eram compostas para vozes brancas interpretadas por crianças ou homens que imitavam artificialmente o timbre feminino.35 Como as vozes destas crianças eram bastante incertas, pois mudavam quando atingiam a adolescência, a única solução para garantir a uniformidade da sua voz era a castração (orquiectomia).36

As virtudes vocais que estes cantores possuíam eram extensas, como a capacidade de longa respiração, o domínio do registo agudo muito amplo e o canto com grande volume. De timbre suave, aveludado e redondo, caraterizavam-se também pelo brilho nas notas altas e pela capacidade de executar ornamentações e passagens rápidas de articulação clara, realizando trilos e uma longa messa di voce que nenhum outro tipo de voz conseguira fazer até então. A combinação entre o domínio deste registo e a sua amplitude e flexibilidade vocal distinguia-os entre si.

31 Cf. J. DAVIS, Italy in the nineteenth century.., p. 67. 32 Cf. L. RIAL, The Italian Risorgimento..., p. 15. 33 Cf. J. DAVIS, Italy in the nineteenth century.., p. 154. 34

Cf. J. STARK , Bel canto: A history of vocal pedagogy..., p. 197.

35 Aquilo que corresponde aos dias de hoje à voz de contratenor. Cf. J. STARK, Bel canto: A history of vocal pedagogy..., p. 201. 36 Cf. R. CELLETTI, A History of bel canto, Oxford, Clarendon Press, 1991, p. 109.

Embora os elementos musicais que caraterizam o bel canto tenham sido livremente usados por vários compositores antes do aparecimento dos castrati, as primeiras descrições pedagógicas anatómicas do uso desse estilo foram feitas anos mais tarde pelo eminente pedagogo Manuel García (1806-1906)37, já os castrati estavam em pleno declínio.38

A afirmação dos castrati foi de caráter gradual. O autor Anthony Milner refere a presença de castrati em coros de cappella desde 1553, autorizados por bula papal em 1589.39 Com o desenvolvimento da ópera no fim do século XVI e princípio do século XVII, a importância dos castrati aumentou significativamente. Foi depois da abertura do primeiro teatro de ópera em 1637 – o Teatro San Cassiano em Veneza – e a subsequente divulgação da ópera em Itália e na Europa que os castrati começaram a ganhar reputação e grande sucesso.40

Os castrati dominaram a cena lírica europeia com o seu virtuosismo vocal durante cerca de dois séculos. Entre eles destacou-se Carlo Maria Boschi (1705-1782), conhecido pelo nome de Farinelli, que foi uma das estrelas da sua época, senão mesmo a maior. Este castrato tinha uma ampla extensão vocal e conseguia cantar uma messa di voce de longa duração devido à sua enorme capacidade torácica.41 Tinha também uma notável facilidade na

coloratura. Como refere o autor Marek

Farinelli had a penetrating, well rounded luscious, clear and even soprano whose range at that time was A to D above high C (...) outstanding coloraturs ability.42

A importância da presença da voz dos castrati foi mais notória em grande parte do século XVII e em todo o século XVIII. Foi no final deste século que se verificou uma mudança no campo musical, com o aparecimento da opera buffa. Este género requeria um tipo de cantores que desempenhassem personagens de ação tiradas da commedia dell’arte

italiana, deixando os castrati sem espaço de atuação. O aparecimento do iluminismo no

século XVIII contribuiu para o declínio destes cantores, já que este movimento condenava qualquer tipo de crueldade de caráter físico, incluindo aquela a que os castrati eram sujeitos.43 É a partir desta altura que os tenores começam a emergir com maior notoriedade e a ganhar mais protagonismo.

37

Manuel García: espanhol, grande pedagogo vocal que criou o primeiro laringoscópio e pioneiro na observação do movimento da laringe e das cordas vocais, escrevendo vários livros sobre o método do canto. Cf. J. STARK, Bel canto: A history of vocal pedagogy..., p. 3. 38

Idem, p. 197. 39 Idem, p. 198.

40 Cf. J. STARK, Bel canto: A history of vocal pedagogy..., p. 199. 41 Idem, p. 201

42

Cf. D. MAREK, Giovanni Battista Rubini and the Bel Canto tenors History and Technique, Lanham MD, The Scarecrow Press Inc, 2013, p. 54.

I.2.2. A opera buffa e a voz de tenor

No final do século XVIII nasceu em Nápoles um novo género de ópera, a opera buffa, descendente da commedia dell’arte de origens ancestrais. Os libretos deste género envolviam normalmente personagens em que havia dois pares de namorados rodeados por outros personagens de caráter cómico, como por exemplo uma velha, um rapaz, um doutor malvado ou um imponente soldado, com enredos baseados na vida quotidiana. Estes libretos eram escritos para dramma comico ou dramma giocoso.

Como era um estilo de ópera que contrastava com a atmosfera da opera seria, os

castrati não tinham qualquer vontade de se apresentarem neste novo género operático. Por

isso os cantores que interpretavam estas óperas eram amadores locais.44 Neste novo estilo, o papel do jovem apaixonado era atribuído ao tenor, pois a sua voz estava relacionada com a espontaneidade da juventude. Ocasionalmente, o protagonista masculino também era cantado por mulheres en travesti. A opera buffa teve grande recetividade por parte do público e despertou a atenção de vários compositores, como Giovanni-Battista Pergolesi (1710-1736) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791).

Do ponto de vista musical, a opera buffa não se diferenciava da opera seria e muitas podiam confundir-se entre si.45 Foi na opera buffa que o célebre tenor Giovanni Battista Rubini (1794-1854), referido mais à frente, começou a sua carreira em Nápoles em 1815.

A ópera de Mozart La finta giardiniera, estreada em 1775, foi um exemplo de uma

opera buffa que também tinha papéis principais atribuídos a tenores, Don Anchise e o

Contino Belfiore.

Na música de Mozart o tenor passou a ter maior protagonismo, pois a linha melódica era notável e permitia que as árias por um lado se destacassem por si próprias e por outro se encaixassem perfeitamente na estrutura musical das óperas como um todo. A primeira opera

seria que Mozart compôs (1770) foi Mitridate re di Ponto. Guglielmo d’Ettore (1740-1772),

tenor e também compositor, cantou o papel principal no qual cantava 5 árias, mais do que os outros cantores principais, três dos quais eram castrati.46 Mozart teve de recompor uma das árias várias vezes e chegou inclusivamente a escrever para esta ária um Dó5 agudo.47 Esta é uma das indicações que permite verificar que a voz de tenor estava a distanciar-se da forma de

44 Cf. D. MAREK, Giovanni Battista Rubini…, p. 33. 45

Idem, p. 34.

46 Cf. C. BUMEY, A general history of music from the earliest ages to the present time, New York, Da Capo Press, 1968, p. 29 - 2 vols. 47 Cf. J. POTTER, Tenor history of a voice, New Haven USA, Yale University Press, 2009, p. 27.

tenor-barítono do período barroco, a ganhar maior protagonismo e a aproximar-se mais da categoria de tenor romântico que viria a aparecer mais tarde.

Em 1783, o arquiduque da Áustria, José II, considerava que a opera seria não despertava grande interesse e pediu à sua corte que lhe apresentasse o novo estilo de ópera italiana, a opera buffa. Da corte faziam parte o libretista Lorenzo da Ponte (1749-1838), Mozart e outros compositores como Antonio Salieri (1750-1825), Vicente Martín y Soler (1754-1806) e Giovanni Paisiello (1740-1816). Mozart sugeriu ao rei a utilização para fins libretísticos, da trilogia de Beaumarchais (1732-1799) Le marriage de Figaro.

A opera buffa Le Nozze di Figaro estreou-se em 1786 em Viena de Áustria, com os papéis de tenor Don Curzio e Don Basilio atribuídos ao tenor irlandês Michael Kelly (1762- 1826). Michael Kelly teve uma carreira de grande valor como cantor e também como compositor, e foi um dos tenores que liderou a transição do papel do tenor como o jovem apaixonado na opera buffa para o papel romântico que os tenores viriam a assumir mais tarde no período do bel canto, nas óperas de Rossini, Donizetti e Bellini.48