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II. A voz de tenor

II.1 Os diversos registos na voz de tenor: voz de peito, voz de cabeça e mistura

O cantor, ao executar uma escala ascendente, revela diversas mudanças de registos relacionadas com modificações anatómicas que acontecem no aparelho vocal e que condicionam a sua emissão. Estas transições nos registos vocais ocorrem para ser possível alcançar certas notas do agudo. É, no entanto, necessário ter recursos técnicos vocais para poder executar as mudanças de registo nas chamadas zonas de passagem185, sem se notarem mudanças audíveis no som para o registo seguinte. As zonas de passagem verificam-se em diferentes notas da escala consoante a categoria da voz do cantor. Vamos analisar as categorias de tenor ligeiro e tenor dramático como as mais indicadas por Miller para as óperas em estudo. Manuel García, proeminente pedagogo vocal, definiu os registos vocais da seguinte forma:

(...) a series of succeeding sounds of equal quality on a scale from low to high, produced by the application of the same mechanical principle, the nature of which differs basically from another series of succeeding sounds of equal quality produced by another mechanical principle.186

O registo de peito está relacionado com as notas graves e com o brilho e harmónicos da gama vocal. Este registo é assim designado pelo facto de as notas graves, quando cantadas

185

Os Italianos chamaram passaggio a esta zona de passagem, termo utilizado no campo da pedagogia vocal como referência às notas de passagem de um registo vocal para outro.

ou faladas, vibrarem e ressoarem no esterno. Os Italianos chamam a este registo voce di petto. Richard Miller refere que

If a male places the palm of his hand on his sternum when he is speaking, he feels a vibratory rumble. As he inflects his voice upward into a higher speaking range the vibratory sensation diminishes.187

Quando o tenor canta neste registo sente o peito como um elemento ressoador, mas, à medida que vai ascendendo na escala, a sensação de ressonância vai diminuindo até começar a sentir um certo desconforto na laringe para alcançar as notas mais agudas. Esse desconforto deve-se ao facto de se estar perante um novo registo, o de cabeça. Para transitar entre registos existe uma zona de passagem que, quando corretamente executada, os une sem se notarem quebras na emissão vocal. Os registos apresentados na Figura II.1 ganham ou perdem ressonância nas zonas de transição à medida que se vai ascendendo ou descendendo na escala, pelo que é muito importante fazer nestas zonas de passagem uma mistura entre eles para assegurar que a transição vocal se faça de forma homogénea.

Figura II.1 – Registos vocais na voz de tenor.

Fonte: R. MILLER, Training tenor voices, New York, Schirmer, 1993, p. 4.

187 Cf. R. MILLER, Training tenor voices, New York, Schirmer, 1993, p. 2.

Peito Mistura Cabeça Grave Grave médio Médio agudo (passagio) Agudo (passagio) falsetto

Nos dias de hoje os tenores fazem uma mistura entre o registo de cabeça e a voz de peito, indo buscar a esta última o brilho e a robustez necessárias para as notas agudas. Na pedagogia vocal, esta mistura tem a designação de voce mista.188 Klein referiu-se ao uso de voz mista como

The union of chest and medium, of medium and head tones proceeding either up or down the scale, the voice can be brought into line throughout the whole compass.189

Existiram também tenores que faziam um falsetto mais escuro, denominado falsettone. No entanto, a definição de falsetto

(... ) refers to a male voice quality that can be produced within the female pitch and is female-like in quality.190

Fisiologicamente, o falsetto carateriza-se pela vibração dos extremos das cordas vocais e não das cordas vocais completas, como ocorre quando se canta no registo de peito.191 Atualmente o uso do falsetto na voz de tenor não é muito usado para abordar os agudos em

forte, mas pode ser usado esporadicamente na execução de uma dinâmica de pp quando se

canta uma ária ou canção. A abordagem contínua do agudo em falsetto puro requer que se use maior quantidade de ar do que na voz de mistura, que não requer tanto ar devido à presença de voz de peito que faz com que as cordas vocais vibrem na sua totalidade e não só parcialmente, como quando se canta em falsetto. O excesso de ar na emissão vocal projeta um som que não é limpo nem puro, podendo, segundo Miller, trazer como resultado a instabilidade na emissão da voz.192

Hoje em dia, o Dó5 na voz de tenor é denominado como Dó de peito porque a ressonância de peito foi sendo cada vez mais usada para abordar este registo agudo, ao contrário do que se fazia antes de Duprez. No entanto esta nota não é emitida apenas com ressonância de peito, o que seria impossível fazer sem danificar o instrumento vocal, como já

188

Cf. R. MILLER, Training tenor voices..., p. 3. 189

Cf. H. KLEIN, & W. MORAN, Herman Klein and the gramophone: being a series of essays on the Bel canto (1923), the Gramophone

and the Singer (1924-1934), and reviews of new classical vocal recordings (1925-1934), and other writings from the Gramophone.

Portland: Amadeus Press, 1990 p. 22.

190Cf. L. THURMAN, G. WELCH, A. THEIMER, C. KLITKZE, Addressing Vocal Register Discrepancies: An Alternative Science-Based

Theory of register phenomena, http://ncvs.org/pas/2004/pres/thurmanPaper.htm, acedido em fevereiro de 2015. 191 Cf. J. STARK, Bel canto: A History of Vocal Pedagogy..., p. 69.

referido. Para evitar esse risco usa-se também a ressonância de cabeça, havendo assim uma mistura de registos.193 Marek refere que

High notes must be sung in the mixed voice.194

Os tenores com prestígio internacional, que cantam o repertório de Donizetti, são exemplo desta mistura de registos na abordagem do agudo, pois a voz mista predomina, isto é, utilizam a voz de cabeça misturada com a voz de peito. São exemplos Enrico Caruso (1873- 1921), Beniamino Gigli (1890-1957), Tito Schippa (1888-1965), Jussi Bjorling (1911-1960), Giusppe Di Stefano (1921-2008), Carlo Bergonzi (1924-2014), Nicolai Gedda (n. 1925), Alfredo Kraus (1927-1999), Luciano Pavarotti (1935-2007), Plácido Domingo (n. 1941), José Carreras (n. 1946), Francisco Araiza (n. 1950), Ramón Vargas (n. 1960), Roberto Alagna (n. 1963), Rolando Villazón (n. 1972) e Juan Diego Flórez (n. 1973). As percentagens de mistura dos registos variam em cada voz: há vozes que têm naturalmente na sua mistura mais voz de cabeça do que voz de peito e, vice-versa, daí umas serem mais ligeiras do que outras. A mistura de ambos os registos é fundamental para se obter uma emissão saudável na voz do intérprete. Tradicionalmente, as vozes mais ligeiras e que têm segurança no registo agudo são as que possuem maior percentagem de voz de cabeça na abordagem do agudo.195 É também necessário, no domínio da tessitura aguda, que haja um equilíbrio entre a pressão do ar e da respiração, e um controlo vocal de mistura na zona de passagem entre registos.