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III. Lucia di Lammermoor

III.1 Origem

Walter Scott (1771-1832), escritor nascido na Escócia, é considerado o criador do romance histórico. Na época em que foram editadas as suas primeiras obras, a crítica inglesa disse que o público recebeu muito bem este novo género literário, que ainda não tinha sido utilizado por nenhum outro escritor e que descrevia com pormenor a paisagem, a figura

humana e a sua caraterização psicológica.228 Stendhal escreve sobre os autores da tragédia romântica em longas descrições e considera Scott como um génio da escrita romântica.229

É típico deste género criar frequentemente um efeito de medo, usando o terror para captar o interesse do leitor. Em 1819, Walter Scott publica a 3.ª série de contos Tales of my

landlord, constituída por The bride of Lammermoor e Legend of Montrose. A história de The bride of Lammermoor é um conto típico do romance gótico,230 baseado numa tragédia da vida real e que o autor conheceu quando era criança.231 A personagem principal, Lucy Ashton, é descendente de Janet Dalrymple, que pertencia a uma importante família escocesa. O conto tinha a sua ação em 1669, mas Walter Scott descreve-a como se tivesse ocorrido nos anos que precedem a união da Escócia à Inglaterra, em 1707. O pai de Janet Dalrymple foi o primeiro visconde de Stair, jurista e eminente professor de leis na Universidade de Glasgow. Era um grande latifundiário e casou-se com Margaret Ross, herdeira de Balneil em Wigtonshire.232

Sem que a família soubesse, a jovem Janet e o jovem Lord Rutherford oriundo de uma classe inferior e praticamente na falência, apaixonaram-se perdidamente e juraram fidelidade um ao outro. Juntos quebraram uma moeda de ouro, o que equivalia a um compromisso solene. Mas a mãe de Janet, Margaret, mulher muito autoritária, tinha outros planos: casar a sua filha com Lord David, filho e herdeiro dos ricos Dunbar de Baldoon, que, além de sangue azul, tinham vastas propriedades na mesma zona de Wigtonshire onde Margaret já possuía grandes extensões de terra.233 Ao combinarem os detalhes do contrato nupcial, as duas famílias não avisaram a noiva. Janet, quando soube o que se passava, recusou a proposta de casamento, pois já se tinha comprometido com o jovem Lord Rutherford. Embora contrariada, Janet aceitou ser conduzida ao altar no dia 24 de agosto de 1669, mas ia apática e muda. Realizou-se uma grande festa e depois de começar o baile, o novo casal retirou-se para consumar o casamento. Não demorou muito tempo para que um grito pavoroso atravessasse as paredes do castelo e chegasse até ao salão de baile. O grito que provinha do quarto do casal fez com que os convidados se apressassem a arrombar a porta para perceber o que tinha acontecido. Caído junto à porta estava Lord David, apunhalado pela sua noiva e agonizando

228

Cf. J. LAUBER, Sir Walter Scott, Boston, Twayne Publishers, 1999, p. 40. 229

Cf. H. STENDHAL, Racine et Shakespeare, Oxford, Clarendon Press, 1907, p. VIII (introd.).

230 O romance gótico tem sempre a sua cena em cenários medievais, como castelos, igrejas, ruínas e florestas. Os temas e símbolos recorrentes são na maioria segredos do passado, profecias e maldições. O autor George Levine analisa este romance gótico no seu artigo

Exorcising the past: Scott´s The bride of Lammermoor, consulta online:

http://www.jstor.org/discover/10.2307/2932935?uid=3739696&uid=2&uid=4&uid=3739256&sid=21106560758783 (acedido a 10 de junho 2015).

231

Esta lenda muito popular foi contada pela mãe de Walter Scott. Cf. C. PARSONS no artigo The Dalrymple legend in the bride of

Lammermoor, http://www.jstor.org/discover/10.2307/510058?uid=3739696&uid=2&uid=4&uid=3739256&sid=21106578067503 (acedido a 7 de abril de 2015).

232 Cf. R. GORDON, The Bride of Lammermoor a novel of Tory pessimism, Oakland, University of California Press, 1957, p. 112. 233

Cf. C. Parsons no artigo The Dalrymple legend in the bride of Lammermoor.

http://www.jstor.org/discover/10.2307/510058?uid=3739696&uid=2&uid=4&uid=3739256&sid=21106578067503 (acedido a 7 de abril de 2015).

numa poça de sangue. A trágica Janet, que vestia uma camisa de noite de tecido fino empapada de sangue, estava com um estranho sorriso no rosto. A triste rapariga não tinha conseguido suportar tanta pressão e enlouquecera completamente, morrendo poucos dias depois. Lord David, ao contrário do que se julgava, sobreviveu aos ferimentos.

Em 1819, cento e cinquenta anos após se ter passado esta história, Scott teve conhecimento desta tragédia e deu-lhe a forma de romance. Como os Dalrymples na primeira metade do século XIX eram ainda muito influentes em vários sectores do Governo, Scott transferiu a sua narrativa do sudoeste da Escócia perto da fronteira com Inglaterra, para o sudeste numa zona chamada Lammermuir Hills,234 e alterou o nome do conto para The Bride of Lammermoor. Cronologicamente, situou o conto no fim do século XVII e início do século

XVIII. O personagem feminino, Janet, transformou-se em Lucy Ashton, filha de Sir William e de Lady Ashton,235 com uma personalidade doce e a imagem de uma rapariga pálida e bonita.236 Lord Rutherford tornou-se Edgar Ravenswood, cuja família, por motivos políticos e religiosos, era inimiga mortal dos Ashton, que tinham 3 filhos, Henry, Sholto e Lucy, vivendo todos no castelo que um dia pertencera aos antepassados de Edgar.237

Todo o romance se debruça sobre as diferenças entre os Ashtons, família nobre, rica, presbiteriana e adepta da revolução de 1688-89, e os Ravenswoods, família igualmente nobre, mas com dificuldades financeiras, conservadora, episcopal e adepta do rei.238

No início do romance, os Ashtons encontram-se com Edgar numa caçada, durante a qual Edgar salva as vidas de Sir William e de Lucy do ataque surpresa de um animal feroz. Lucy e Edgar apaixonam-se e trocam votos de fidelidade. Depois de trocarem os votos, um corvo que estava no local morre e suja o vestido de Lucy com sangue,239 o que é entendido como uma premonição. Porém, os Ashtons, que necessitavam de proteção política e financeira nesses tempos difíceis, forçam o casamento de Lucy com Lord Arthur Bucklaw, inimigo político e pessoal de Edgar. Lady Ashton, mãe de Lucy, tenta persuadi-la a casar-se com Arthur Bucklaw, mas Lucy insiste em escrever a Edgar para acabar de uma forma leal com o compromisso que ambos tinham. No entanto, Lady Ashton, que na obra literária tem o papel da vilã, interceta esta carta e arquiteta a mentira de que Edgar está para casar com outra mulher em França, mentira que faz chegar ao conhecimento de Lucy. O casamento com Lord Arthur Bucklaw decorre como previsto. No romance é descrita a sala do castelo onde está

234

Termo gálico, tendo sido através do anglicanismo transformado em Lammermoor. Cf. http://www.spns.org.uk/MayWilliamsonComplete.pdf.

235 Lady Ashton era uma mulher ambiciosa e manipuladora. Cf, R. GORDON, The Bride of Lammermoor…, p. 116. 236 W. SCOTT, The Bride of Lammermoor, Oxford, Oxford University Press, Reissued 2008, p. xxiv.

237 Este castelo foi usurpado à família Ravenswood devido ao apoio que davam ao rei James VII, tendo sido depois comprado pela família Ashton. Cf. W. SCOTT, The Bride of Lammermoor..., p. xvii.

238 Idem, p. xvii. 239 Idem, p. xxi.

pendurado um quadro que pertencia à família Ravenswood e de que Henry, irmão mais novo de Lucy não gosta, pois o retrato é parecido com ele próprio e por isso perturba-o.

Edgar, cego com ciúmes, aparece durante as celebrações do casamento de Lucy com

Arthur e desafia o novo marido e o irmão mais velho da noiva, Sholto Ashton, para um duelo no dia seguinte. Este duelo jamais se realizará porque durante a noite de núpcias Lucy apunhala o marido, que os médicos, no entanto, conseguem salvar. Logo a seguir a jovem morre enlouquecida. Edgar, sem saber de nada, ao ir na madrugada seguinte para o local do duelo com Sholto Ashton, é engolido por uma poça de areia movediça e desaparece para sempre.

Para melhor poder estabelecer-se um paralelismo entre o romance de Walter Scott e a ópera de Donizetti, vamos fazer uma breve comparação das duas obras. Na ópera, a personagem Lucia é mais temperamental e facilmente manipulada pelo irmão do que na obra literária. O mesmo sucede com Edgardo, pois, na ópera a sua cólera e raiva em relação ao injusto casamento é bem mais espontânea e vívida do que na obra de Scott, onde o seu sofrimento é mais reservado240O libretista Salvatore Cammarano eliminou vários personagens principais: transformou o pai de Lucy e os seus dois irmãos em apenas um irmão, Enrico, forma italianizada do nome Henry Ashton. A mãe de Lucy, Lady Ashton, é retratada na ópera como morta recentemente, o que, além de eliminar mais uma personagem, permitiu que se estabelecesse uma ligação entre a morte da mãe e o crescente estado maníaco e depressivo de Lucia, que a leva à loucura. Outros personagens tiveram também os seus nomes italianizados. Arthur Bucklaw tornou-se Arturo e, ao contrário da história real e do livro de Scott, morre apunhalado na noite de núpcias. Edgar tornou-se Edgardo di Ravenswood, e a sua amada, Lucy Ashton, transformou-se em Lucia di Lammermoor, nome pelo qual é conhecida.241

240 Cf. J. MITCHELL, The Walter Scott operas: An Analysis of Operas based on the Works of Sir Walter Scott, Alabama, University of Alabama Press, 1977, p. 142.

241

Inicialmente, Donizetti referiu-se numa carta de 18 de maio à sua ópera como Sposa di Lammermoor, embora 10 dias depois noutra carta se lhe tenha referido como Lucia di Lammermoor. Cf. J. BLACK, The Italian Romantic Libretto: A study of Salvatore Cammarano, Edinburgh, Edinburgh University Press, 1984, p. 29.