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I. Enquadramento histórico e musical

I.3 Os compositores do período do bel canto

I.3.1. Gioacchino Rossini e o nascimento do tenor do bel canto

Rossini foi percursor de muitas mudanças em relação à ópera no princípio do século XIX. A amplitude, a criação de um novo impulso rítmico nas suas melodias, a sofisticação de uma possível aliança do elemento cómico à melodia e as novas cores brilhantes da sua instrumentação preencheram o espaço entre a opera seria e a opera giocosa.

A melodia rossiniana é caraterizada por extensas ornamentações, de tal forma que começou a receber manifestações de desagrado pela excessiva ornamentação por parte do famoso castrato Giovanni Battista Velutti (1780-1861). A forma da sua melodia cria uma emoção ou um sentimento não descritivo que gradualmente vai definindo uma determinada situação completamente liberta das inflexões e acentos da linguagem falada, exprimindo somente sentimentos interpretativos na parte musical. Existe no entanto uma ligação entre a melodia rossiniana e as palavras, pois o vocalizo é uma parte integral da expressão e não um puro ornamento.49 A melodia rossiniana favorece e ajuda a expressar as palavras, ao contrário do que acontece no período romântico que lhe sucede, em que a linha melódica é o resultado

48 Cf. D. MAREK, Giovanni Battista Rubini..., p. 40. 49 Cf. R. CELLETTI, A History of Bel canto..., p. 137.

das palavras e respeita a prosa e as inflexões da língua falada. Neste caso, é exatamente o oposto: a linha melódica ganha prioridade em relação às palavras, embora as emoções do ouvinte requeiram uma referência mínima ao que se está a passar em cena. Rossini assegurou a transição neste sentido, fazendo a mudança do período anterior, cuja linha melódica era a base principal de interpretação, para o início do período romântico em que a palavra e o discurso passaram a prevalecer. Além da melodia, a música rossiniana é também caraterizada pela sua grande ligação à unidade rítmica.50

O autor Celletti conclui que

Un concetto non troppo in armonia con quanto che pensava Rossini a proposito del rapporto melodia-parola e che comunque portò alla graduale adozione di inflessioni ed accenti propri al linguaggio parlato (…) il vocalize era parte integrante di espressione.51

E Stendhal defende que uma das grandes razões de sucesso de Rossini reside no facto de

(...) no other composer could have breathed such freshness into his melody (...) the sense of the words of an aria or indeed just the meaning of the first few lines, even a person with no knowledge of Italian appreciates the melody.52

Os tenores desta época rossiniana abordavam as notas até Sol4 ou, nalguns casos, até Lá4 no registo de peito e, a partir de Lá4 até Dó5 em registo de falsetto.53 No registo agudo a abordagem é menos viril e menos espontânea, com notas menos encorpadas e mais frágeis. Todos os tenores de Rossini – Andrea Nozzari (1775-1832), Manuel García (1775-1832), Giovanni David (1790-1864) e Domenico Donzelli (1790-1873) – tinham esta caraterística vocal.

Andrea Nozzari (1775-1832), nascido em Bergamo, cantou em Roma, Parma, Bergamo e em Milão, no Teatro alla Scala, em 1796, tendo sido um dos tenores preferidos de Rossini. Em 1803 foi contratado pelo Théâtre-Italien em Paris, onde cantou nas óperas de

50 Cf. R. CELLETTI, A History of Bel canto…, p. 137. 51

Idem, p. 141.

52 H. STENDHAL, Life of Rossini, New York, Criterion Books, 1957, p. 102. 53 Ver Glossário, p. 183.

Domenico Cimarosa (1749-1801) Il Matrimonio Segreto (1792) e de Giovanni Paisiello Nina (1789). Em Paris perdeu a voz e a habilidade de sustentar as notas mais agudas do repertório de tenor. Depois de voltar a Itália, conseguiu recuperar a capacidade de sustentação e a agilidade vocal, mas nunca a facilidade de cantar notas no registo agudo, pelo que optou por um repertório que não exigisse a execução de notas agudas. Fez a estreia de oito óperas de Rossini54 cantando em conjunto com o tenor Giovanni David (1790-1864). No Teatro del Fondo fez a estreia de Otello em 1816, que o público aplaudiu com uma grande ovação pela sua voz potente e agilidade vocal. Fez também a estreia da ópera de Donizetti Alfredo Il

Grande.

Giovanni David, o tenor preferido de Rossini para cantar as partes mais agudas das óperas, era detentor de uma gama vocal que alcançava as 3 oitavas com notável facilidade. Fez a estreia das óperas Ermione, Il Turco in Italia, o papel de Rodrigo em Otello, Zelmira,

Ricciardo e Zoraide e La donna del lago no período de 1815-1822. Também estreou as óperas Bianca e Fernando de Vincenzo Bellini em 1828, e Il Castello di Kenilwoth de Donizetti em

1829. Marek afirma que este tenor era

(...) a master of fioratura.55

Domenico Donzelli (1790-1873), outro tenor italiano nascido em Bergamo, ficou famoso pelo domínio do registo agudo em falsetto e pela voz ágil mas robusta. Rossini compôs para este tenor os papéis de Torvado na ópera Torvado e Dorliska (1815) e o de Cavalier Belfiore na ópera Il viaggio a Reims. A sua abordagem do registo agudo desde Sol4 até Dó5 era feita em falsetto56, mas, a partir de 1826, a sua voz começou a mudar de

caraterísticas tornando-se demasiado robusta para a interpretação rossiniana. Esta voz robusta e rica de tenor terá servido mais tarde de modelo para Gilbert Duprez57, tenor retratado mais detalhadamente no capítulo I.5.2. Donzellli também estreou algumas óperas de Donizetti, como por exemplo o papel de Almazio na ópera Zoraide di Granata (1822), Ugo em Ugo Conte di Parigi (1832) e Don Ruiz na ópera Maria Padilla (1842).

54 As óperas que se estrearam foram: Elisabetta Regina d’Inghilterra, Armida, Mosè in Egitto, Ricciardo e Zoraide, Ermione, La donna

del lago, Maometto II e Zelmira.

55

Cf. D. MAREK, Giovanni Battista Rubini..., p. 85.

56 Cf. M. MODUGNO, Domenico Donzelli et il suo tempo, Nuova rivista musicale italiana 18, n.º 2 (April-June 1984), p. 208. 57 Cf. D. MAREK, Giovanni Battista Rubini..., p. 85.

Giovanni Anzani (1744-1826)58, tenor e antigo estudante de canto de Nicola Porpora, teve também um papel fundamental na transição dos papéis principais dos castrati para os tenores. A sua voz era descrita como uma voz doce, potente, muito equalizada e de uma grande segurança de afinação. Quando interpretava, retratava os mais variados sentimentos expressivos.59 Aos 50 anos retirou-se dos palcos e começou a dedicar-se ao ensino do canto.

O tenor Manuel del Pópulo Vicente Rodriguez García (1775-1832) foi também um dos tenores mais conhecidos em Espanha e na Europa. Estreou-se na Tonadilla 60 e fez a estreia na ópera de Rossini Il Barbiere di Siviglia no papel de Conde Almaviva. Cantou o papel de barítono principal na ópera de Mozart Don Giovanni, bem como o de barítono do Conde na ópera Le Nozze di Figaro.61 Tinha no seu repertório outras óperas de Rossini62, como o papel de Lindoro na ópera L´Italiana in Algeri. No entanto, quando teve de enfrentar a tessitura altíssima da ária desta ópera, Languir per una bella, transpôs para uma terceira abaixo cantando em Dó em vez do original Mi bemol.63 Embora fosse um tenor, abordava com mais facilidade o registo do grave e do médio do que propriamente o agudo, tendo no entanto uma grande agilidade vocal.

A música de Rossini reflete, como em todos os grandes compositores para vozes, as caraterísticas vocais dos seus cantores. Pode assim ter-se uma imagem de como eram as vozes dos tenores que cantavam as óperas de Rossini: robustas, com domínio de agilidade e alcance do registo agudo em falsetto. Segundo o musicólogo Dan Marek

Rossini liked large resonant voices but he hated hare-brained screaming. 64