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No equacionamento entre as duas perspectivas apontadas pelo ForGrad (1999) sobre o papel da universidade, parecem residir alguns dos principais fatores desencadeadores de crises desta instituição.

Segundo Fávero (2000, p. 70), a universidade pode ser entendida como uma instituição que se dedica à promoção do “avanço do saber, [é] o espaço da invenção, da descoberta, da elaboração de teorias”. A partir daí, consideramos que sobre a sistematização, diversificação e especialização desse saber, ou dos campos do conhecimento (SAMPAIO, 2000), repousam os pilares e os fundamentos desta instituição e sua interação com os setores e segmentos da sociedade, derivando daí seu papel e suas contradições.

Na visão de Scott,(apud SAMPAIO, 2000, p. 108)

a universidade moderna desempenha quatro funções principais: de escola final, pois corresponde ao último estágio da educação geral; de escola profissional responsável pelo treinamento de trabalhadores de elite; de fábrica de conhecimento, produtora da ciência, tecnologia e ideologia; e, por fim, de instituição cultural, também responsável por processar a crítica e redefinir valores e crenças.

À abordagem de Scott, acrescentamos a função social da universidade, por procurar situar seu papel no embate entre os diferentes segmentos sociais que constituem a sociedade (CHAUÍ, 2000).

Para melhor compreender a função e as contradições derivadas da reciprocidade entre a universidade e estes grupos ou segmentos sociais, recorremos a Santos (1995), que, em

nosso entendimento, oferece subsídios, juntamente com outros autores, para caracterizar a educação superior, cujo acesso, no Brasil, na segunda metade da década de 1990, em decorrência de reformas educacionais, é flexibilizado. O autor identifica crises da instituição universitária, em que o gerenciamento depende da complexidade do que ele chama de funções manifestas e funções latentes. As crises por ele denominadas de hegemonia, legitimidade e institucional podem ser caracterizadas pela contradição que expressam.

A crise de hegemonia ocorre no gerenciamento de tensões provocadas pela contradição entre o que o autor chama de conhecimentos exemplares necessários à formação das elites, e conhecimentos funcionais, necessários a transformação social e à formação da força de trabalho. Aí reside um dos principais desafios que apontam para profundas transformações da universidade.

A crise de legitimidade é manifestação da contradição entre hierarquização, decorrente do saber superior destinado às elites, e democratização como conseqüência das conquistas sociais da classe trabalhadora, dentre as quais o direito à educação. No entendimento de Chauí (2000, p. 185), nos últimos séculos, pautados por lutas e conquistas sociais e políticas, em que a educação e a cultura surgem como direitos, a universidade tornou-se também uma instituição social, em que a idéia de democracia e de democratização do saber, tornam-se inseparáveis. Quando o direito à educação se torna “uma aspiração socialmente legitimada”, cabe à universidade adaptar-se para satisfazê-la, decorrendo daí a crise que, em nosso entendimento, guarda especial relação com o enfoque a que nos propomos.

A busca da sociedade por mais vagas na universidade, associada ao aumento substancial de egressos do ensino médio contribuem para que o ingresso neste nível de ensino seja flexibilizado. No entanto, na visão de um de nossos entrevistados, “ao propor a expansão do ensino superior, o MEC estabelece a competição entre as universidades e aí os critérios de

acesso também são alterados”, o que é corroborado por Sampaio (2000, p. 166), ao analisar a expansão universitária no Brasil onde “o surgimento de uma demanda social de ensino de terceiro grau criou um mercado favorável, o qual a iniciativa privada pôde explorar”. Esta situação não escapa à constatação de uma aluna de Xanxerê — SC, admitida na universidade pela via alternativa do SAEM, quando conclui: “Por trás deste sistema, há o interesse por parte das Universidades em garantir futuros acadêmicos em seus Centros, tendo em vista a difícil situação socioeconômica da população”.

A terceira tensão provocadora de crise é a contradição, entre autonomia institucional e produtividade social (SANTOS, 1995). E aqui retornamos a Fávero (2000) quando considera que a autonomia26 é inerente à própria essência da universidade.

Como espaço que descobre, inventa e elabora conhecimentos, a universidade é também espaço que socializa, à medida que torna público e dissemina o saber que produz. Assim sendo, a autonomia aplicada à universidade é uma exigência requerida à concretização dos seus fins. Do ponto de vista etimológico, autonomia, no que concerne à universidade, implica que ela se autodetermine, que ela seja sujeito de suas decisões e ações.

A crise institucional, na abordagem de Santos (1995), surge sempre que a especificidade organizativa da universidade é posta em causa, e a ela são impostos modelos organizacionais próprios de outras instituições tidas por mais eficientes. Este terceiro aspecto das crises representativas do papel da universidade, nos dias atuais, tem especial evidência, porque fatores externos, tais como mecanismos internacionais de financiamento e controle, procuram conformar a universidade aos moldes empresariais de eficiência e produtividade, o que foi motivo de debate no “Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública” em 1996, porque as políticas educacionais construídas pelos governos da América Latina, inclusive o Brasil,

26 Palavra composta “de duas raízes: autós e nómos. A primeira significa ‘si mesmo’, algo que se basta, que é

peculiar, e a segunda tanto pode significar ‘lei’, ‘regra’ quanto ‘ordem’”, ou seja “a lei de si mesmo” (CUNHA, apud FÁVERO, 2000, p.71).

apontam como eixo central ou "como matriz conceitual as diretrizes do Banco Mundial” (SAMPAIO, 2000, p. 169).

Estes, entre muitos outros, são fatores das crises de hegemonia, de legitimidade e institucional, que, em nosso entendimento, podem ser consideradas de forma distinta, por uma questão didática, porém na prática uma se intersecciona com a outra, ficando difícil a sua delimitação. Para exemplificar vamos considerar o seguinte: Os saberes da “alta cultura” começam a fazer parte da cotidianidade das classes subalternas. Estas, por sua vez, vislumbram nesse saber a possibilidade de ascensão social. Ao se tornar hegemônico, o modo de produção capitalista cria necessidades, entre as quais, a extensão do tempo de escolaridade, o que, grosso modo, concorre para pôr em causa as bases seculares da universidade.

Tais crises estão intimamente relacionadas ao quanto as “funções manifestas da universidade ‘sofrem’ a interferência das funções latentes da universidade” (SANTOS, 1995, p.190), daí decorrendo sua complexidade. A distinção entre funções manifestas e funções latentes é especialmente útil na análise das relações entre sistema universitário, sistema de ensino superior, sistema educativo ou, ainda, destes entre si e entre o sistema social global.

Quando a sociedade pressiona o sistema universitário, exigindo sua expansão — o que configura a crise de legitimidade —, este pode manifestar-se pela “função latente de ‘arrefecimento das aspirações dos filhos e filhas das classes populares’, ou seja, reestruturando-se de modo a dissimular, sob a capa de uma falsa democratização, a continuação de um sistema seletivo, elitista” (SANTOS, 1995, p.90). O autor salienta, ainda, que, na distinção entre funções econômicas e funções sociais ou funções instrumentais e funções simbólicas, a sociologia tem mostrado o quanto aparentes contradições no sistema educativo, podem ocultar intensas articulações entre este e os outros subsistemas sociais, conforme vimos no capítulo anterior.