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3 Organização do trabalho

3.3 A taxionomia de van Leeuwen (1993) 135

3.3.1 Exclusão dos atores sociais 137

No capítulo 2, da parte II da sua tese, van Leeuwen apresenta as formas pelas quais os participantes de uma prática social qualquer podem ser recontextualizados. O autor começa por dizer que “o conhecimento de uma prática social que constitui o campo de um dado contexto não precisa incluir todos os participantes que, na realidade, fazem parte daquela prática social”30 (1993:95). Significa que certos participantes podem ser deixados de fora da recontextualização de uma determinada prática social por diversas razões, todas elas passíveis de serem explicadas no âmbito da Análise Crítica do Discurso.

A EXCLUSÃO desses participantes na recontextualização pode acontecer de duas formas, segundo o autor: por SUPRESSÃO e por ENCOBRIMENTO. Nas duas formas, há menção a atividades realizadas por um ou mais participantes, o que pressupõe a existência deles. No caso da SUPRESSÃO, não há menção alguma, em momento algum do texto, a um ou a todos os participantes envolvidos em uma dada atividade. Mas a atividade deve ser referida para que o participante, ou os participantes, possam ser inferidos pelo conhecimento que se tem da atividade, do campo ou do contexto.

Ao analisar dois textos que foram produzidos para preparar as crianças para o primeiro dia de aula de suas vidas, van Leeuwen exemplifica a SUPRESSÃO, pois em um dos textos (Mark and Mandy) há a menção à atividade de tocar o sino, mas não há menção, em parte alguma do texto, ao participante que tocou o sino (não há o Ator do processo material “tocar”).

Linguisticamente, a SUPRESSÃO pode ser expressa da seguinte maneira:

• pela deleção do agente da passiva;

• pelo uso de orações reduzidas de infinitivo (sem preposição) no lugar dos participantes;

• pela deleção do Beneficiário da atividade (objeto direto ou indireto); • pelo uso de nominalizações ou substantivos processuais;

• pelo uso de adjetivações de processos; e • pelo uso da meia-passivação

30

No original: “The knowledge of a social practice that constitutes the field of the given context need not include all the participants who, in reality, take part in that practice”.

No caso do ENCOBRIMENTO, os participantes não estão completamente excluídos. Quando os participantes estão encobertos, eles são apresentados em alguma parte do texto, mas não aparecem na oração, ou no complexo oracional, que recontextualiza a atividade. As formas de realização do encobrimento são as mesmas

da SUPRESSÃO, segundo o autor (1993:103). A diferença entre SUPRESSÃO e

ENCOBRIMENTO pode ser considerada, então, como muito sutil, e reside no fato de que

no primeiro caso o participante nunca é mencionado ao longo do texto; no segundo caso, o participante é mencionado em alguma parte do texto, mas não naquela em que se está recontextualizando a atividade.

Após apresentar o que van Leeuwen propõe como categorias de EXCLUSÃO, apresentamos uma discussão sobre a maneira como o autor concebe a categoria. Quando van Leeuwen vai introduzir as subcategorias da EXCLUSÃO, em sua tese, ele afirma textualmente que

[m]inha definição de exclusão descreve o tipo mais radical de exclusão, o caso em que nem o participante, nem suas atividades estão incluídos. (...) Em outras palavras, exclusão radical é uma categoria que pode ser usada na comparação de textos, mas não na análise de textos, pela simples razão de que a exclusão radical não deixa nenhum traço no texto (1993: 96).31

Se a EXCLUSÃO que o autor considera é a mais radical, aquela que não deixa traços no texto, como pode haver subcategorias de EXCLUSÃO que se caracterizam justamente pelos traços que deixam no texto? A SUPRESSÃO e o

ENCOBRIMENTO se caracterizam por permitirem que o participante “excluído” seja

inferido porque há traços desses participantes no texto, seja através das atividades que realizam (no caso da SUPRESSÃO), seja através de uma referência anafórica/prévia ao participante (no caso do encobrimento).

Embora o autor diga mais adiante que há casos em que a EXCLUSÃO deixa traços no texto, e daí surjam as subcategorias discutidas acima, a existência de tais traços, por si só, elimina a possibilidade da EXCLUSÃO, pois como pode ser considerado excluído aquilo que está sendo considerado como existente? Se os traços do participante estão no texto, ele também está lá.

31

No original: “My definition of exclusion describes the most radical kind of exclusion, the case where neither the participant nor his or her activities are included. (…) In other words, radical exclusion is a category that can be used in comparing texts, for the simple reason that radical exclusion leaves no traces in the text.”

O efeito semântico das subcategorias da EXCLUSÃO apresentadas por van Leeuwen parece ser o mesmo da dissimulação, modo de operação ideológica apresenta por Thompson (1995). Na dissimulação, os fatos, os atos e também os atores sociais são obscurecidos, negados, ocultados desviados da atenção dos interlocutores. E, quando suprimimos ou encobrimos os atores sociais, estamos obscurecendo, negando, ocultando tais atores sociais. No entanto, as estratégias lingüístico-discursivas que Thompson descreve na dissimulação (deslocamento, eufemização e tropo) não são equivalentes às categorias de SUPRESSÃO e

ENCOBRIMENTO.

Enquanto SUPRESSÃO e ENCOBRIMENTO dizem respeito à não-existência do ator social, mas de suas ações no contexto geral do texto (SUPRESSÃO) ou da frase (ENCOBRIMENTO), as estratégias de deslocamento, eufemização e tropo dizem respeito à natureza do elemento incluído no lugar de/ou junto ao elemento que referencia o ator social. Portanto, nenhuma exclusão de elemento é feita. Então, mesmo que o efeito semântico seja o mesmo, as formas de consegui-lo são diferentes.

Em relação à impossibilidade de se perceber a EXCLUSÃO radical, a não ser que se faça comparação entre textos da mesma prática social, conforme afirma o autor, acreditamos que essa impossibilidade não existe, a não ser que o analista não conheça a prática. E o próprio van Leeuwen apresenta um exemplo disso quando analisa o texto Mary Kate and the school bus, que descreve o primeiro contato de uma menina com a escola. Os únicos elementos da escola que são citados no texto são a professora, a diretora, os colegas e a sala de aula, mas a escola é mais que isso. Há muitos outros atores sociais envolvidos com a prática social denominada “meu primeiro dia de aula”.

Em sociedades como a nossa, há preconceitos de classe que podem ser maciçamente sedimentados através da EXCLUSÃO. No Brasil, as pessoas que pertencem às camadas mais baixas das classes econômicas não têm acesso à educação superior, cabendo a elas empregos considerados de menor prestígio social, como aqueles exercidos por secretários e auxiliares de serviços gerais nas escolas. Mas seu trabalho é de extrema importância para a existência da escola como instituição. Entretanto, os textos que falam sobre escola para a comunidade costumam omitir sua existência. Essa omissão, geralmente absoluta, acaba sedimentando a idéia de que seu trabalho não é importante, de que eles são dispensáveis, de que qualquer um poderia fazer tal serviço, pois não exige nenhuma

habilidade especial, nem formação específica. Se seu trabalho não é importante, e se é pelo trabalho que essas pessoas demarcam seu espaço na escola, essas pessoas não são importantes. Isso é preconceito de classe que se sedimenta e se legitima nas gerações de alunos que estão expostos a tais textos, como os descritos antes.

Esse exemplo mostra que qualquer pessoa que conheça a prática perceberá que vários atores foram total e radicalmente excluídos. E não há necessidade alguma de se fazer comparações para chegarmos à percepção da EXCLUSÃO. Então, a EXCLUSÃO radical pode ser considerada uma categoria de representação dos atores sociais. E deixar de mencionar um ator participante de uma prática tem implicações discursivas importantes, tais como salientar a importância e o poder de alguns atores e apagar outros, sedimentando preconceitos.

Agora, se tomamos a EXCLUSÃO radical como uma categoria de representação, o que fazer com as subcategorias da SUPRESSÃO e do ENCOBRIMENTO, que não dizem respeito a essa EXCLUSÃO? Uma solução talvez seja a transformação do ENCOBRIMENTO em uma terceira grande categoria, para descrever as formas pelas quais os participantes têm sua importância diminuída no texto e, por isso, são parcialmente incluídos nele. A subcategoria de SUPRESSÃO ficaria, então, subordinada a categoria do ENCOBRIMENTO e seria adicionada a ela uma nova subcategoria, a da DESFOCALIZAÇÃO.

A DESFOCALIZAÇÃO descreve o ENCOBRIMENTO que se dá pela referência

prévia e distante ao participante, permitindo que ele possa ser retomado pelo contexto sempre que necessário, como acontecia com o ENCOBRIMENTO no trabalho de van Leeuwen. A função discursiva da DESFOCALIZAÇÃO é a de colocar em segundo plano os participantes que, de acordo com um determinado ponto de vista, são considerados menos ou pouco importantes. Nesse sentido, a DESFOCALIZAÇÃO funciona como a dissimulação, mas por uma estratégia lingüístico-discursiva diferente das propostas por Thompson (1995). Os textos em análise, que representam duas práticas sociais distintas, não apresentam exclusão radical dos atores sociais, mas apresentam situações em que eles são encobertos. Vejamos abaixo exemplos de

ENCOBRIMENTO.

[152] Sustenta a impetração (...). Aduz, assim, ser o presente caso idêntico ao RHC 43.396/RS (Rel. Min. Evandro Lins e Silva, DJ de 22.08.1966). Além disso, alega que, (...)

necessária se faz a presença de dois requisitos (...). (HC 85064)

No exemplo 152, a impetração é apresentada como sustentando algo e depois ela é retomada apenas pelos verbos aduzir e alegar. O ministro-relator pode ter dado mais ênfase às ações realizadas por uma ação nominalizada e transformada em elemento concreto, porque são essas ações que lhe interessam, e não o documento em si, pois o que está sendo tratado é o conteúdo do documento e não o documento propriamente dito.