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3 Organização do trabalho

2.2 Representações de justiça 74

2.2.1 Justiça 79

De acordo com De Plácido e Silva (2005:810), o vocábulo justiça exprime “o que se faz conforme o Direito ou segundo as regras prescritas em lei”. É a justiça, então, a razão da existência de um poder judiciário e de todo um discurso jurídico. Essa é uma concepção de justiça adequada a uma sociedade dita pós-moderna18, mas que carrega em seu significado último uma série de outros significados muito mais antigos. Por isso, essa concepção não pode ser tomada de imediato sem que se retome a própria história de construção do conceito.

Foucault (1996 e 1997) nos mostra que o termo justiça é uma construção discursiva que está ligada a questões de poder. O que é justo ou que é injusto depende da interpretação daquele que é capaz (tem o poder) de determinar as bases da justiça. Realizando um percurso histórico sobre as formas jurídicas, Foucault (1996) nos mostra que a idéia de justo e injusto se instaura nas sociedades antigas em forma de contestação, em que um indivíduo afirma ter sido lesado e aquele acusado de causar a lesão deve contestar essa acusação. Não há entre eles nenhuma espécie de mediação e a lesão só é tomada como tal pelo flagrante delito ou pelas provas concretas.

Essa idéia inicial de lesão está ligada à noção de propriedade, que não é somente de bens materiais, mas engloba valores morais, religiosos, políticos e sociais, tais como honra, conhecimento, família, crença religiosa, apoio político. A lesão ocorria sempre que havia um atentado à propriedade já existente e para o

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Pós-modernidade, ou modernidade tardia, é definida por Hall (citando Giddens e Laclau) como “uma forma altamente reflexiva de vida” (2004:15) que faz com que as práticas sociais sejam recorrentemente reformuladas a partir da auto-informação. Elas são “atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos”. (2004:17).

estabelecimento da lesão não eram levadas em conta as formas pelas quais tais propriedades eram conseguidas. Em sociedades pouco complexas (com poucos membros e apenas uma instituição, que era a própria sociedade), os bens, fossem eles materiais ou imateriais, eram distribuídos via acordos estabelecidos entre os membros, acordos esses que objetivavam o bem comum. Como todos tinham consciência do que havia sido acordado, não havia necessidade de mediação para resolver uma contestação, pois só havia duas possibilidades: culpa, se a prova confirmasse a lesão; e inocência, se não houvesse prova da lesão. O acordo é uma das formas pelas quais a justiça é conceituada. É pelo acordo daquilo que se considera justo que a justiça nasce, segundo Rawls (2002), e se estabelece como um

princípio/valor social. A lesão, então, era a ofensa ao ou quebra do acordo, a ofensa

à justiça.

Para Rawls (2002: 59), é preciso que se distinga entre regras19 que constituem as instituições e regras de conduta dos indivíduos em relação às instituições. São as regras de conduta que definem dois princípios da justiça: 1) todos devem ter direitos iguais às liberdades básicas; e 2) as desigualdades só podem ser admitidas se forem consideradas vantajosas para todos (nos limites da razoabilidade) e estiverem “vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos” (Idem: 64).

Há uma dificuldade substancial na interpretação do primeiro princípio, a de definir quais são as liberdades básicas. Para o autor (Idem: 65), a lista das liberdades básicas pode variar de sociedade para sociedade, mas é possível determinar as que seriam mais importantes entre elas, pois são as utilizadas por um maior número de sociedades. São elas: as liberdades política, de expressão e reunião, de consciência e pensamento, de pessoa, que inclui a proteção contra a opressão, a agressão e a prisão arbitrárias, e o direito à propriedade privada.

O segundo princípio, segundo o autor (Idem: 64), apresenta uma ambigüidade fundamental: como algo pode ser ao mesmo tempo vantajoso e acessível para todos? Os conceitos mais correntes do termo “vantagem”20 dizem respeito a uma noção de superioridade, de mais que. Na verdade, o que o princípio propõe é que a existência de uma vantagem só é justa se ela não acarretar em perda de direitos a outro (ou

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As regras, aqui, não são pensadas segundo Giddens, mas podem ser tomadas na mesma acepção. 20

Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2004), o termo “vantagem” pode significar: “1. Qualidade do que está adiante ou é superior. 2. Favor, benefício. 3. Primazia, superioridade. 4. Lucro, interesse. 5. Ganho, proveito. 6. Vitória, triunfo.”

outros) membro da sociedade. Tanto mais justa será a vantagem se um membro menos favorecido também dela se beneficiar. A justiça do acesso igualitário a cargos e posições se estabelece no momento em que uma vaga está disponível a todos e aquele que alcança a posição abre nova vaga também disponível a todos, e assim por diante.

Ao segundo princípio estão associados outros dois: os princípios da eficiência e da diferença. O princípio da eficiência, de acordo com Rawls (Idem: 71), “afirma que uma configuração é eficiente sempre que é possível mudá-la de modo a fazer com que algumas pessoas (pelo menos uma) melhorem a sua situação sem que, ao mesmo tempo, outras pessoas (pelo menos uma) piorem a sua”. O princípio da diferença tem por objetivo dar conta das situações em que o princípio da eficiência não atua. É o caso em que a vantagem, ou o acesso, de um membro é capaz de piorar a situação vivida por outro membro e ainda assim não ser considerada injusta. Um exemplo seria uma situação em que um cargo especializado é criado enquanto um outro é extinto. Nesse caso, os trabalhadores especializados levam vantagem e os não-especializados são excluídos do processo. Tal situação não é considerada injusta porque não fere o princípio de igualdade de direito às liberdades básicas e é uma demanda da evolução da sociedade. Nesse caso, as noções de justo e injusto devem se ajustar às novas demandas sociais.

À medida que as sociedades tornaram-se mais complexas, houve necessidade da criação de novas instituições que tentavam, em vão, pelos antigos meios, estabelecer acordos de distribuição de bens. Como esses acordos não eram mais eficazes, um indivíduo assumia o papel de gerenciar a instituição. Para assumir esse papel, o indivíduo precisava possuir alguma qualidade que o diferenciasse dos demais membros da sociedade. Em algumas sociedades, essa qualidade podia ser de ordem religiosa (aquele que conhecesse melhor as coisas divinas). Em outras, podia ser de ordem econômica (aquele que tivesse conseguido acumular maior riqueza por meios considerados justos). Em outras, ainda, podia ser de ordem belicosa (“alguém que dispõe de força armada ocupa uma terra, uma floresta, uma propriedade qualquer e, nesse momento, faz prevalecer seus direitos” (Foucault, 1996: 63).

Para Veblen (1983), as qualidades referentes à política, à guerra, à religião e ao esporte eram as que definiam as diferenças de classe e que estabeleciam aqueles que eram merecedores da confiança dos demais membros da sociedade. Esses indivíduos eram autorizados pelos demais membros a estabelecerem certas normas

que regulavam a vida em sociedade. A existência desses indivíduos autorizados e sua organização para acordar sobre as normas reguladoras fizeram com que a justiça se institucionalizasse, dando origem à justiça como instituição.

As sociedades, segundo Rawls (2002), por serem diversas e complexas, possuem noções diferentes de justiça. O autor (2002:4) conceitua sociedade como “uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas”. Essa associação só é possível quando as liberdades consideradas justas e igualitárias, por pertencerem ao cidadão, são consideradas invioláveis, e “os direitos assegurados pela [instituição] justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais” (Idem: 4).

Rawls (2002: 58) define instituição como

um sistema público de regras que define cargos e posições com seus direitos e deveres, poderes e imunidades, etc. Essas regras especificam certas formas de ação como possíveis, outras como proibidas; criam certas penalidades e defesas, e assim por diante, quando ocorrem violações.

Para o autor, as instituições são práticas sociais, que podem ser consideradas como objetos abstratos e realizações concretas. Objetos abstratos, por serem uma “forma possível de conduta expressa por um sistema de regras” (Idem: 58); realizações concretas por serem “a realização das ações especificadas por essas regras no pensamento e na conduta de certas pessoas em uma dada época e lugar” (Idem: 58). Então, a justiça como instituição instaura-se na instância das regras normativas na estrutura das práticas sociais. A conduta que permite conceber uma instituição como realização concreta pode ser uma conduta lingüística, e a instituição jurídica é um exemplo de instituição que se concretiza por uma conduta lingüística.

A definição do que seja uma instituição é importante na visão de Rawls (2002) e de Guilhon Albuquerque (1986). Para o primeiro, a justiça possui princípios que são institucionais, ou seja, as instituições, que já existem, criam normas que constroem o conjunto normativo da justiça. Para o segundo, a justiça é uma instituição porque já existe um conjunto de normas de justiça que a eleva ao status de instituição. Guilhon Albuquerque (1986), afirma ser a justiça uma instituição que funciona como aparelho ideológico do Estado. Para o autor, instituição é um termo que define uma ‘totalidade

concreta’ baseada numa ‘entidade teórica’, posição semelhante a de Rawls, definida acima.

A diferença na visão de ambos consiste no fato de que para Rawls as instituições constroem um conjunto de normas que determina o que é justo ou não. Para Guilhon Albuquerque (1986), a justiça é uma instituição na medida em que se constitui, primeiramente, como um conjunto de normas (entidade teórica) que, ao se sedimentar, dá origem a uma dimensão de poder que se estabelece no seio de uma sociedade, como o poder judiciário, que é uma instituição (uma totalidade concreta). É essa instituição que tem a obrigação de guardar/proteger as normas básicas fundamentais de cada povo, que, nas sociedades ocidentais atuais, estão expressas no texto constitucional, ou Carta Magna.

A visão institucionalizada da justiça de Guilhon Albuquerque (1986) não exclui, de forma alguma, as considerações levantadas por Rawls. Os princípios apresentados por Rawls são importantes para este estudo no que dizem respeito ao direito às liberdades básicas, porque eles estão presentes no sistema jurídico brasileiro, e se concretizam nas palavras da lei, constantemente utilizadas como argumento nas decisões judiciais. É o que se vê, por exemplo, nas decisões sobre pedidos de habeas corpus, instrumento legal utilizado como requerimento ao direito à liberdade de locomoção, uma das liberdades básicas da sociedade brasileira.

Para Rawls (2002), ainda, uma sociedade só pode ser considerada bem- ordenada quando todos os membros conhecem e aceitam os mesmos princípios de justiça e todas as instituições satisfazem esses princípios. Para isso, é preciso que a

instituição justiça divulgue o princípio justiça. Nesse sentido, podemos perceber que

a justiça assume o status de “coisa”, um bem que precisa ser distribuído igualmente entre os elementos da sociedade, primeiro, pela divulgação das normas da justiça; depois, pela aplicação das normas de justiça.

A representação de justiça-bem é uma decorrência da representação de justiça-princípio. Uma vez que o princípio justiça estabiliza-se, são organizadas normas e regras21

que precisam ser aplicadas consistente e continuamente a cada um dos membros da sociedade (HELLER, 1998: 20). É o conjunto de normas e regras

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Conceituadas diferentemente da teoria da estruturação, Heller (1998:19) diz que as regras são regulamentos que precisam ser seguidos. Só há uma forma de se adequar às regras e a não- adequação constitui uma violação. As normas também são regulamentos, mas, ao contrário das regras, a adequação dos indivíduos às normas pode variar ou conflitar, sem que seja considerada uma violação passível de punição.

que confere à justiça o status de “coisa”, de bem a ser distribuído, ou, no caso, aplicado a quem lesa o princípio justiça, na noção de lesão apresentada anteriormente. É esse status de “coisa” que confere à justiça a impessoalidade e a imparcialidade tão desejada pelos membros da sociedade e pelos operadores do Direito, porque se não for imparcial e impessoal, o princípio de justiça pode ser questionado e entrar em conflito com as noções de justo e injusto.

Como um bem a justiça tem função educativa, pois é o conjunto de normas e regras que educa os seres a agirem de forma justa. Heller (1998:29) deixa isso bem claro quando afirma que é “preciso aprender o hábito de ser justo”, o que implica aprender a separar o componente subjetivo (emocional, afetivo, relacional) do ato de aplicação de normas e regras.

Vimos que a noção de justiça vai se ramificando, ao longo da história, em três representações distintas: a justiça-princípio; a justiça-instituição; e a justiça-bem. Abaixo discuto mais detalhadamente cada uma destas representações, deixando a instituição por último, já que é a representação que aparece em maior quantidade no

corpus desta tese.