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3 Organização do trabalho

2.3 As representações de justiça e seus modos de operação ideológica 100

2.3.3 Justiça-instituição 107

A representação da justiça-instituição é absolutamente predominante no total dos acórdãos. Das 2458 vezes em que a palavra justiça e suas derivadas aparecem, 85,7% das vezes (2106 ocorrências) fazem menção à instituição justiça ou a seus membros. Já nas cartas do leitor, a representação predominante é a de justiça como princípio, mas há um índice muito alto de referências à instituição. São 41 ocorrências em 95, o que totaliza 43,2% das referências à justiça. A seguir, são reproduzidas partes de um único acórdão para mostrar como a justiça enquanto instituição é referida no texto. Na seqüência, três cartas do leitor são apresentadas para fazer a mesma demonstração.

[81] (...) acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal (...)

[83] (...) O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - (Relator) (...)

[84] (...) contra o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (...) [85] (...) Superior Tribunal de Justiça (...)

[86] (...) O Superior Tribunal de Justiça negou provimento (...) [87] (...) O parecer do parquet é pelo conhecimento parcial do

writ (...)

[88] (...) O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES

(RELATOR): (...)

[89] (...) Tal como ressaltou a Procuradoria-Geral da República, (...)

[90] (...) em parecer da lavra do Subprocurador-Geral da República (...)

[91] (...) o conhecimento pelo Superior Tribunal de Justiça, (...) [92] (...) ou ainda, pelo Supremo Tribunal Federal (...)

[93] (...) que não foi posta perante Tribunal a quo implicaria supressão de instância, (...)

[94] (...) o que não é admitido consoante reiterada jurisprudência desta Corte (...)

[95] (...) Quanto à dosimetria da pena, assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça: (...)

[96] (...) “No ponto, acentue-se, o Tribunal de origem fixou, fundamentadamente, as penas-bases acima do mínimo legal, (...)

Em 84, 85, 86, 91 e 95, a palavra justiça está associada a nomes de órgãos da instituição justiça. São eles: Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça. Mas, além desses exemplos em que a palavra justiça aparece, há outros nomes relacionados a outros órgãos do Poder Judiciário, que é o espaço da justiça como instituição, que não aparecem nos dados computados pela ferramenta eletrônica utilizada nos procedimentos metodológicos adotados na tese. Apesar disso, tais nomes não podem ser desconsiderados, pois

eles enfatizam ainda mais a representação institucionalizada que se tem da justiça, como um espaço onde o bem e o princípio estão guardados e protegidos.

São mencionados ainda outros tribunais (Supremo Tribunal Federal, Tribunal a quo, parquet), a Procuradoria–Geral da República (87, 89, 92, 93, 94 e 96), além de cargos e funções exercidos pelos membros, que funcionam como formas de referenciação aos órgãos judiciários (81, 82, 83, 88 e 90). Apesar de se ter reproduzido apenas um acórdão, ele serve de modelo para todos os demais 469. Neles há sempre uma necessidade de nomear claramente os órgãos, as funções e/ou os membros que os representam. Há poucas referências à instituição de forma genérica, com o uso da palavra justiça unicamente.

Em todos os casos selecionados, retirados do acórdão, o que se tem é a utilização da estratégia do tropo, na figura da metonímia, já que em todos os exemplos temos a PARTE pelo TODO, mas constituem-se em partes de tipos diferentes. Em 81, 82, 83, 88 e 90, as partes são marcadas pela referência aos membros institucionais. Então, a metonímia é do tipo parte/membro pelo todo/instituição. Em 84, 85, 86, 87, 89, 91, 92, 93, 94, 95 e 96, as partes são marcadas pela referência a órgãos institucionais, construindo metonímias do tipo parte/órgão pelo todo/instituição.

Embora não haja nenhuma ocorrência nesse acórdão, a justiça-instituição aparece algumas vezes passivada e, também, naturalizada, mas essas estratégias não são predominantes. A razão de a justiça-instituição usar, predominantemente, a estratégia da metonímia, nos acórdãos, justifica-se pela necessidade de demarcação de espaços e papéis. Como a instituição é composta de muitos órgãos e muitos membros, são necessários que sejam demarcados os espaços de atuação de cada segmento, para que ninguém ocupe o espaço e exerça o papel que não lhe cabe.

Já nas cartas do leitor reproduzidas em 107 a 109, todas as menções à justiça como instituição são feitas a partir da nomeação de órgãos, como Ministério da Justiça e Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação. Em 100 e 101, há duas menções ao mesmo órgão de justiça (Corregedoria-Geral da Justiça), duas menções à justiça de forma geral (exemplos 98 e 99) além de uma menção ao poder judiciário como um todo (exemplo 97). Em 102, as duas menções à palavra justiça, existentes no texto, são referências generalizadas à instituição (exemplos 102 e 105). Mas há uma menção a um órgão da justiça (6ª Vara Federal criminal, 104) e a membros autorizados pela instituição (juíza titular e Juízes, 103 e 106).

Embora os três exemplos anteriores possam dar a idéia de que aqui também há uma necessidade de particularizar órgãos da justiça, isso só ocorre nos textos de pessoas que pertencem ao meio judiciário. Quando os textos são de pessoas de outros contextos profissionais e/ou sociais (e a maioria deles o são), a referência à justiça é predominantemente generalizada. Claro que essa generalização tem a ver com os objetivos dos produtores, que são invocar a instituição como um todo, porque o produtor não-especialista em justiça não distingue, nem o quer fazer, instâncias de justiça. Só distingue uma função institucional de fazer valer o princípio de justiça e de preservar o bem-justiça.

[97] Judiciário (...) (Carta do leitor 22)

[98] (...) Sobre a reportagem "O raio X da Justiça" (11 de maio), (...)(Carta do leitor 22)

[99] (...) que cita a Justiça do Piauí (...) (Carta do leitor 22) [100] (...) cumpre salientar que só a Corregedoria-Geral da

Justiça do Piauí investiu, (...) (Carta do leitor 22)

[101] (...) Secretário-geral da Corregedoria-Geral da Justiça do Piauí (Carta do leitor 22)

[102] Justiça (...) (Carta do leitor 18)

[103] (...) A juíza titular (...) (Carta do leitor 18)

[104] (...) da 6ª Vara Federal criminal (...) (Carta do leitor 18) [105] (...) Quando a sociedade reclama da Justiça, (...) (Carta

do leitor 18)

[106] (...) Juízes como Ana Paula Vieira de Carvalho merecem uma estátua em praça pública ("Crime e castigo", 13 de abril). (...) (Carta do leitor 18)

[107] (...) esclareço que o Ministério da Justiça é contra (...) (Carta do leitor 26)

[108] (...) O documento enviado pelo Ministério da Justiça (...) (Carta do leitor 26)

[109] (...) Diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça (...) (Carta do leitor 26)

Nas cartas do leitor também encontramos, como estratégias de operação ideológica, a metonímia e a naturalização. Entretanto, a naturalização, nesses exemplos, universaliza a instituição justiça. A naturalização ocorre nos exemplos 97, 98, 102 e 105. Nesses exemplos, a intenção é referir à instituição de forma generalizada, mostrando que o falante reconhece a existência da instituição, e esse reconhecimento é natural e universal. Além disso, esse reconhecimento parece bastar para as interações entre os atores sociais.

Em 103 e 106, encontramos a estratégia da metonímia, que se dá pela referência aos membros institucionais. Em 99, 100, 104, 107 e 108, a metonímia acontece pela referência aos órgãos institucionais em lugar da referência à instituição como um todo. E em dois casos (exemplos 92 e 100), a referência por metonímia é feita, simultaneamente, a membros e órgãos em lugar da justiça-instituição. As razões para o uso da metonímia nas cartas são as mesmas de seu uso nos acórdãos.

O motivo de se ter, nos dois gêneros de texto, a predominância da representação da justiça como instituição está associado à necessidade de legitimação dessa representação. As bases de significado que sustentam as representações da justiça como princípio e como bem já estão legitimadas e ideologicamente sustentadas na sociedade, porque elas simbolizam acordos gerais que as pessoas já aceitaram como naturais. Mas isso não acontece com a justiça instituição, pois as bases de significado que sustentam essa representação dependem da capacidade dos membros da instituição de interpretar (e, portanto, atribuir significados) a tais bases. E todos os seres humanos reconhecem a falibilidade da própria espécie. Se são os homens que constituem a instituição justiça, e se os homens são falíveis, como dar crédito irrestrito à instituição? Os membros da instituição têm conhecimento dessa racionalização que habita a mente humana e, então, buscam formas de legitimar a representação de instituição.

A forma mais utilizada é a nomeação de órgãos e atividades pertencentes à instituição. E tal estratégia, além de legitimar, define as atribuições específicas, distribui responsabilidades, a cada órgão institucional. Isso é feito pelos operadores do direito para que as pessoas, em geral, não atribuam uma responsabilidade específica de um órgão a toda a instituição. Esse recurso funciona como um mecanismo de defesa da imagem institucional; se um membro ou um órgão agir de forma diferente da esperada, e dessa ação resultar uma injustiça, não é a instituição que é injusta,

mas uma parte dela, que pode ser “consertada” sem que a instituição como um todo precise ser saneada.

Porém, as cartas do leitor escritas por não-operadores do direito demonstram que as pessoas não reconhecem a justiça como uma instituição fragmentada em órgãos, e sim uma instituição una, e isso é visível pelo uso do termo “justiça” com significado geral. Significa dizer que, por mais que a instituição tente minimizar os efeitos de um problema ocorrido dentro dela, qualquer atitude que resulte em uma injustiça será considerada como um problema institucional. E é esse jogo de atribuições que torna necessária a constante e predominante referência à justiça como instituição nos textos aqui analisados.

2.4 Algumas considerações finais do capítulo

O objetivo deste capítulo era discutir como a noção de justiça tem sido representada na nossa sociedade, a partir da análise de duas práticas sociais distintas (decisão judicial e opinião pública) e de dois gêneros representativos dessas práticas (acórdão e carta do leitor, respectivamente). Isso foi feito a partir da apresentação de questões referentes à representação, começando pela conceituação do que seja uma representação, como ela se desenvolve e como ela participa da estruturação das práticas sociais.

Em seguida, passamos à identificação dessas noções de justiça em textos teóricos do campo da Sociologia Geral e da Sociologia do Direito. Da leitura desses textos teóricos, três representações de justiça emergiram: a justiça como princípio social, a justiça como bem social e a justiça como instituição. Foi dada mais ênfase à última representação, por ser a mais recorrente no corpus da tese e por ser a que mais comumente participa das práticas sociais como ator social, tema de discussão e análise do próximo capítulo.

A análise do corpus demonstrou que, apesar de essas representações terem começado a se formar nas sociedades antigas, elas ainda permanecem até hoje nas práticas sociais que envolvem questões de justiça. Juristas ou não, todos vêem a justiça pelos olhos da sociedade em que vivem. Mais precisamente, aprende-se a representar a justiça a partir de interações com outras pessoas que pensam a justiça. As representações são referências construídas da realidade a partir de experiências, vividas pelos atores sociais, com essa mesma realidade e a partir dos discursos que

são compartilhados na sociedade. Se a experiência com a realidade e com discursos compartilhados permite experimentar três noções de justiça, elas se tornam três representações, se forem continuamente significadas e legitimadas. Foi o que aconteceu. As três representações de justiça que são possíveis de serem encontradas na literatura e no corpus analisado vêm sendo reiteradas ao longo da história, sedimentando-se na atualidade.

Mas, como essa é uma tese da área da lingüística, é preciso entender como a linguagem, o lugar da existência material das representações, codifica os significados representados e os legitima. Por isso, no próximo capítulo, damos continuidade a análise formal/discursiva dos dois gêneros, conforme proposto pela HP, para entender quais instâncias lingüísticas materializam as representações, e como essas instâncias destacam ou encobrem as representações de justiça-bem e justiça-princípio em relação à representação da justiça-instituição. Discutimos, também, as implicações discursivas desses arranjos lingüísticos. E essa análise encerra-se quando a justiça, como ator social em práticas sociais, é analisada pela categorização proposta por van Leeuwen, com vistas a descobrir se essa categorização pode ser aplicada a atores não-humanos e se ela é clara o suficiente para ser aplicada a diferentes textos e contextos.

CAPÍTULO 3 – A JUSTIÇA E SUAS FORMAS DE RECONTEXTUALIZAÇÃO EM ACÓRDÃOS E CARTAS DO LEITOR