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3 Organização do trabalho

1.3 O contexto de cultura e as representações de justiça 50

1.3.1 O gênero acórdão 50

A decisão judicial, representada nesta tese pelo acórdão de habeas corpus, situa-se no contexto de cultura do chamado Poder Judiciário, um dos três poderes que governam o Estado-Nação da República Federativa do Brasil. Os outros dois poderes são o Executivo e o Legislativo. O Poder judiciário, no Brasil, não pode ser descrito de forma totalmente independente do Poder Legislativo, porque é o segundo que constrói as normas aplicadas pelo primeiro.

Na República Federativa do Brasil, país com regime político democrático e forma de governo presidencialista, as instâncias de poder estão organizadas em três núcleos: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. O último, formado pelo presidente da República, pelos ministros e secretários de estado, pelos governadores e prefeitos, tem por função administrar os bens públicos, sejam eles materiais ou simbólicos, e as instituições.

O Poder Legislativo, grosso modo, tem função de elaborar o conjunto de normas que organiza a vida social de aproximadamente cento e oitenta milhões de pessoas. Para isso, os brasileiros aptos a votar elegem, de forma direta, senadores, deputados e vereadores, que vão representá-los nas decisões sobre quais normas deverão legitimar os recursos materiais e simbólicos próprios da sociedade. Dessa forma, os legisladores devem interpretar (construir significações sobre) os anseios da sociedade e materializá-los em normas que estabelecem o que é certo e errado, legal e ilegal, justo e injusto, direito e dever.

Após a construção/elaboração das normas, entra em cena o Poder Judiciário, o poder constituído por pessoas com formação específica (mínimo a graduação em Direito), legitimada pela posse de um registro profissional (Registro da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB) obtido mediante testagem. É preciso submeter-se a uma prova de conhecimentos legais, elaborada pela OAB, e ser aprovado nela para conseguir o registro e sem o qual a atividade jurídica não pode ser exercida.

A função do Judiciário é a de dar a correta interpretação às normas, aplicá-las e/ou fazê-las serem cumpridas. Sua primeira tarefa é fiscalizatória. É preciso fiscalizar a sociedade para saber se as normas estão sendo seguidas. Nesse caso, as normas constituem a dimensão de dominação nas práticas sociais do Judiciário. Caso seja constatado que as normas não estão sendo seguidas, um aparato policial, também vinculado ao Poder Executivo, “captura” o infrator e o coloca à disposição do Judiciário, para que sua infração seja interpretada à luz das normas e receba a sanção negativa adequada.

Esse processo de fiscalização e sanção pode realizar-se em uma das três instâncias em que o Poder Judiciário se divide. A primeira instância é a formada por juízes e advogados. Em alguns casos, dependendo da infração cometida, ou da condição do infrator, há a participação do promotor, o advogado que representa diretamente a sociedade no Poder Judiciário. A segunda instância é formada por desembargadores (juízes cujo trabalho é reconhecido pelos pares como de alta relevância), distribuídos em tribunais especializados, com função de emitir uma segunda opinião (ou decidir) sobre recursos encaminhados por réus e/ou vítimas, que não concordaram com decisões emitidas pelos juizados de primeira instância.

A terceira e última instância é composta por juízes com status de Ministro de Estado (escolhidos pelo governo e submetidos à aprovação do Senado) e por promotores/procuradores gerais, ligados diretamente ao primeiro escalão do governo.

São cinco os tribunais nessa instância, cada um deles responsável por interpretar, legitimar e fazer valer um conjunto específico de normas. O Tribunal Superior Eleitoral é responsável pela Lei Eleitoral, que rege o processo de escolha dos representantes do povo. O Tribunal Superior do Trabalho é responsável pelas leis, decretos e estatutos que dispõem sobre o trabalho civil e público; são de sua responsabilidade, por exemplo, a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), o Estatuto do Funcionário Público Federal e o Regimento Geral da Previdência Social.

O Superior Tribunal Militar é o responsável pelas normas que regem as forças armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica; os servidores dessas forças, quando militares, só se subordinam a esse tribunal, sendo que suas infrações e/ou solicitações não podem e não serão julgadas pelos outros tribunais, por não ser sua competência. O Superior Tribunal de Justiça é responsável pelas normas constantes dos Códigos Penal, de Processo Penal, de Processo Civil e Civil; são de sua competência julgar todos os recursos de processos que envolvam crimes não trabalhistas, não eleitorais, não militares e nem contra os princípios constitucionais. Trata-se do tribunal com atribuições mais abrangentes de todo o Poder Judiciário.

O último tribunal é o Supremo Tribunal Federal (STF), responsável pela preservação e aplicação das normas primeiras e mais importantes para o país, expressas na Constituição. É ele, também, o único autorizado a fiscalizar e a julgar as ações dos membros dos outros dois poderes, e só pode ser fiscalizado e julgado pelo Senado. É no STF que tem lugar uma das práticas sociais que analiso nesta tese: a decisão judicial, expressa no acórdão.

Os Ministros do STF são juízes de carreira, que começam sua vida profissional atuando em foros municipais, subordinados aos tribunais estaduais. Ingressam na carreira via concurso público, realizado pelos governos estaduais. A ascensão de um juiz de carreira à função de Ministro do STF segue as normativas previstas na Constituição da República Federativa do Brasil, em vigência desde 1988, cujo texto legal, no artigo 101, expressa:

Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.

Não há na Constituição Federal (doravante CF), porém, disposições sobre as condições de mudança dos membros do STF. A CF não dispõe sobre o período de permanência de um Ministro no STF, nem sobre as razões pelas quais um membro possa ser substituído, salvo ter cometido falta grave (o mesmo que crime). Sabe-se, porém, que aberta uma vaga, os demais membros do STF selecionam possíveis candidatos à vaga, sabatinam esses candidatos, selecionam um nome, que é enviado ao Senado Federal, que sabatinará novamente o candidato e o aprovará ou não. Se o candidato for aprovado pela maioria dos membros do Senado Federal, seu nome será enviado à Presidência da República para que seja homologado pelo Presidente.

As atribuições do STF também estão previstas na CF, no artigo 102, conforme segue:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;

(...)

d) o habeas corpus, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal;

(...)

i) o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância;

(...)

Como a introdução do artigo 102 da CF afirma, o dever do STF é zelar pela “saúde” da CF. Como a constituição é a lei máxima do país, o STF é a instância máxima de poder da nação, pois à constituição se subordinam todos os membros dos três poderes do Brasil. E o Supremo, apesar de fazer parte do poder judiciário, tem a obrigação de defendê-la dos ataques causados por esses membros. Por isso mesmo, nem o Presidente da República, eleito e legitimado por voto direto para governar o país, escapa da jurisdição do STF.

Exemplo de ementa de acórdão (HC 85016)

1

Em termos gerais, o acórdão se constitui num texto verbal que, em sua versão escrita, tem como partes mais importantes a Ementa e o Acórdão. A ementa (exemplo 1) é uma espécie de resumo do processo. Nessa parte do texto, algumas informações são obrigatórias, como as palavras-chave, que geralmente são apresentadas em letras maiúsculas, e as informações sobre o processo, quais sejam: tipo e número do processo, estado da federação, nome dos envolvidos (ou seus representantes legais), nome do relator da decisão, data de publicação no Diário Oficial. Além dessas informações obrigatórias, é comum a página inicial do acórdão apresentar um resumo dos argumentos utilizados na análise do problema que levaram à decisão tomada.

O acórdão é a expressão da decisão propriamente dita e o que pode vir a se tornar uma jurisprudência. Por isso, o acórdão faz parte de toda a sentença proferida por um juiz. A parte do acórdão vem na primeira página do gênero como um todo, logo após a ementa. Constitui-se em um texto pró-forma, em um parágrafo, como o exemplo (2) que segue:

Exemplo de acórdão (HC 85016)

2

Nas páginas seguintes do gênero acórdão, encontramos os textos que levaram à decisão: o relatório e o(s) voto(s). O relatório apresenta os fatos ocorridos. O voto apresenta a opinião daqueles que têm o dever de analisar o problema e propor a solução mais adequada para o problema. Tanto o relatório como o primeiro voto proferido são tarefas do relator ou do juiz da sessão.

Catunda e Soares (2007) estudaram a organização retórica do acórdão, tomando por base a teoria de John Swales, e chegaram ao seguinte modelo:

Tabela 1 Modelo de Organização Retórica do Gênero Acórdão Jurídico, proposto por Catunda e Soares (2007)

UR1 – Identificação das partes

Sub 1 – Identificando o tribunal e Sub 2 – Identificando o processo e

Sub 3 – Identificando a 1ª parte envolvida e Sub 4 – Identificando a 2ª parte envolvida e Sub 5 – Nomeando o relator e

Sub 6 – Especificando o tipo de acórdão

UR2 – Sumário do conteúdo

Sub 7 – Especificando a ação e/ou

Sub 8 – Expondo a legislação que dá suporte à decisão e/ou Sub 9 – Antecipando a decisão do Colegiado

Sub 10 – Expondo a insatisfação do autor com a primeira sentença e Sub 11 – Fazendo uma breve análise (relator)

UR4 – Justificativa da decisão do Colegiado

Sub 12 – Fundamentando a decisão e

Sub 13 – Discutindo a legislação que dá suporte à decisão e/ou Sub 14 – Explicando a decisão colegiada e

Sub 15 – Pronunciando a decisão

UR5 – Encerramento da Sentença

Sub 16 – Localizando e datando e

Sub 17 – Procedendo à assinatura do presidente do tribunal e Sub 18 – Procedendo à assinatura do juiz-relator

O modelo proposto por Catunda e Soares (2007) é bem detalhado. No entanto, para esta análise, desconsiderei a parte ementária do texto, para me deter no acórdão, em si, porque é nessa parte que as representações de justiça aparecem.