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exercícios sociológicos sobre o tema das motivações

Nos dois tópicos anteriores, trabalhei especificamente sobre as categorias enunciadas por meus interlocutores para justificar seus deslocamentos. Na realidade, o que me esforcei por fazer foi tentar compreender o valor e o significado atribuído por cada sujeito à sua experiência de deslocamento, estando disposto a procurar entender os movimentos de preenchimento de sentido que os viajantes dire- cionavam às categorias por eles utilizadas. Para a materialização desse esforço de entendimento, obviamente, lancei mão de uma série de ferramentas conceituais advindas, sobretudo, da sociologia e da antropologia. No entanto, outros importantes conceitos não figu- raram neste capítulo de forma destacada, sendo aqui momento para sinalizar – mesmo que de forma breve ou genérica – outras aborda- gens possíveis acerca das práticas de viagem de longa duração, sempre levando em consideração as “expressões empíricas” desta pesquisa, ou seja, as narrativas dos interlocutores apresentados.

Um primeiro exercício sociológico distinto dos que empreendi anteriormente consiste em pensar a importância do conceito exci-

tação, elaborado por Norbert Elias e Dunning (1992), para a compre-

ensão das atividades de lazer, em geral, e para as práticas de via- gens, notadamente. A descrição do cotidiano de Benny ressalta uma rotina mecanizada, de ações previamente estruturadas, em que até a expressão de relaxamento, ir ao bar com os amigos, ganha um matiz rotineiro. Aliada à incômoda experiência de repetição, especialmente ligada ao mundo do trabalho, existe também para o jovem econo- mista um desconforto sentimental produzido pelas formas de con- trole presentes em seu dia a dia. Desse desconforto emocional, dessa vivência individual de insatisfação ante à disciplina cotidiana, emerge a necessidade de se buscar a “excitação”.

Para Elias e Dunning (1992), a disciplina ultrapassa a dimensão do trabalho e estabelece-se de amplo modo ao referir-se a um mo- delo social que objetiva fazer com que os indivíduos dominem per- feitamente seus “estados de espírito”, seus impulsos, afetos e emo- ções. Tal domínio, portanto, é corolário do “processo civilizador”75

profundamente estudado pelo autor.76 Assim, os constrangimentos

próprios das sociedades industriais, se por um lado trabalham na direção da instauração de valores modernos como segurança e ordem, por outro não deixam intactos os âmbitos mais íntimos dos habitantes das metrópoles; eles são princípios geradores também de ansiedades, tensões e frustrações. Diante disso, uma espécie de “es- tratégia de alívio” deve ser formulada, residindo, portanto, nas ativi- dades de lazer, nas oportunidades de mitigação das qualidades ma- çantes e constrangedoras do mundo ordinário.

Corridas de cavalo, jogos de futebol, danças, pinturas e cartas são apontados, então, como canais para se manifestar de forma au- torizada a “excitação”, que é constantemente objeto de “evitação” e condenação. No bojo dessas atividades de lazer, portanto, situa-se uma modalidade de experiência que é mais fluida, mais livre das constrições sociais reinantes. O perigo imaginário, o medo, a alegria ou a tristeza experimentados em espetáculos ou jogos animam sen- timentos, despertam a excitação desejada, afastam-se do estresse produzido cotidianamente. A viagem, considerando o exposto, é mais um desses canais autorizados de liberação de constrangimentos

75 O “processo civilizador”, de acordo com Elias (1994), diz respeito a uma mudança na conduta e sentimentos humanos. No surgimento desta nova ordem, advinda dos entrelaçamentos de impulsos emocionais e racionais das pessoas, pode ser observado, por exemplo, o recalque gradual dos instintos, a evolução dos patamares de embaraço e repugnância, além do mono- pólio da violência por parte de um Estado centralizado.

76 O controle estável dos impulsos afetivos, libidinais e emocionais é considerado por Elias e Dunning (1994, 1992) uma condição de “sobrevivência social”. Manifestações de elevada exci- tação são consideradas anormais, prelúdios de violência ou ameaças de anomia nas socie- dades modernas, tratados – no limite – como casos para hospitais ou para prisões. O autocon- trole individual, assim, é evocado como fator de conciliação das “exigências da vida em comum”. Contudo, e esse é o cerne da reflexão de Nobert Elias sobre o tema, tal autocontrole é gerador de novas tensões, o que eleva as ocupações de desporto ou lazer à condição de im- prescindibilidade. Excitação, destarte, na reflexão de Elias, não é uma mera oposição ao mundo do trabalho, mas uma dimensão ampla de negociação com as formas de controle ou disciplina exigidas pelo social.

sociais; é nesse sentido que o conceito de excitação auxilia o enten- dimento da significação de Benny em relação aos seus desloca- mentos. Como modalidade de excitação autorizada, ele, obviamente, não pode perenizar-se, sendo isso o que exatamente acontece na tra- jetória do inglês: a viagem praticada como fonte de alívio, como ne- gociação ou mediação.

A busca por excitação também poderia ser apontada como algo presente nas narrativas de Marc, em seus processos de signifi- cação de suas jornadas. Todavia, a experiência do carioca permite a exposição de um exercício de compreensão sociológica informado igualmente pela noção de risco. Em seus discursos, por diversas vezes, alusões foram feitas a esportes considerados “radicais”, basta lembrar que Marc identifica-se como surfista, visto que, em um de seus períodos de trânsito, durante o inverno europeu, pro- curou exercer atividades relacionadas à prática do snowboard.77 O

risco, presente em “esportes radicais”, foi trabalhado por Le Breton

(2009a) como um exemplo de condutas empreendidas por jovens na contemporaneidade que visam ao “afrontamento do mundo”, tendo como meta a produção de um sentido para acessar ou con- servar o “gosto de viver”.78

77 Assim como o skate e o surf, o snowboard é um esporte que consiste em equilibrar-se em uma prancha. No entanto, as superfícies utilizadas pelo esportista para equilibrar-se e fazer sua prancha deslizar são as encostas nervosas de montanhas, tais como as que proporcionam a prática do esqui. Como um dos maiores riscos aos quais os esportistas estão expostos, existe a possibilidade de desequilibrar-se da prancha e rolar montanha abaixo, chocando-se com al- guma pedra ou banco de neve ou ainda caindo em algum precipício ou fenda. Com o objetivo de diminuir os perigos da prática do snowboard, as pistas para a execução do esporte são classificadas em termos de dificuldade e exigência de expertise, pois diversos equipamentos de segurança são exigidos. O surf, para alguns, pode não ser considerado um esporte de risco, contudo se considerados os componentes do cenário da prática, o mar, esse argumento pode tornar-se facilmente indefensável. São muitos os casos de falecimento por afogamento, por impossibilidades de se retornar à praia diante de uma forte corrente ou mesmo pelo choque do surfista com pedras e barreiras de coral. Também, como mais um exemplo da relação do

surf como o risco, pode ser citado o incremento entre os surfistas de uma prática que atende

pelo nome de tow-in, onde o surfista (denominado de big rider) busca deslizar por ondas tão grandes, em um mar com condições tão extremas, que precisa ser rebocado por um jet-ski para ter acesso à ondulação.

78 De acordo com Le Breton (2009a), há uma multiplicidade de significados em torno do risco. A sociologia e antropologia abordam a temática de maneira variada, por exemplo, associando-o com o perigo contido nas tecnologias modernas, com as consequências da atividade humana sobre o ambiente (poluição), com os problemas de saúde pública a que “estão expostas as

Para o antropólogo francês, a experiência de vida dos jovens contemporâneos torna-se problemática quando se considera a evi- denciação de um mundo caracterizado por expressões de fragmen- tação, incerteza e imprevisibilidade. O “jogo simbólico” com a morte ou com o perigo seria, portanto, uma estratégia de redefinição ou de restabelecimento do sentido existencial dos sujeitos, perdido frente à falta de integração, em alguns casos, ou diante de uma “vida exces- sivamente regrada”, em outros. Toxicomania, fuga, anorexia, bulimia e até mesmo o suicídio são tomadas por Le Breton (2009a) como ex- posições deliberadas ao risco, advindas de um profundo e agudo sentimento de sofrimento pessoal, próprias da ausência de um “su- ficiente gosto de viver”. São, dessa maneira, recursos últimos utili- zados pelos sujeitos em sofrimento para “nascer de si mesmo” e re- tomar o controle de suas vidas.

Para além de sua produção, partir da ausência de sentido da vida motivado por uma “falta de integração”, existem condutas de risco que buscam a plenitude da existência ao esquivar-se de estilos de vida demasiadamente ordenados, comedidos ou regulares. Esse é o caso de Marc, situado entre os esportistas radicais que priorizam a procura de uma “intensidade de ser”, ao configurar seus desloca- mentos também em uma íntima interação com as práticas do surf e do snowboard, como pontuado. A viagem em si talvez já pudesse ser considerada uma conduta de risco, pelo menos se feita a partir do ideal de independência e flexibilidade reivindicado por Marc, mas sua potência em relação aos riscos é intensificada na medida em que as experiências de trânsito associam-se a experiências esportivas não corriqueiras, que se definem numa incontrolável ou imponde- rável interação com as dinâmicas da natureza, como é o caso do mar e da neve nos exemplos de esporte mencionados.

populações em virtude de seu modo de vida” ou com os efeitos da produtividade industrial. No entanto, a abordagem que mais interessa a Le Breton (2009a, p. 3) é aquela que se preocupa com “o significado das atividades em que se envolvem os indivíduos em sua vida pessoal ou profissional e em seu lazer, para irem ao encontro do risco ou para dele se protegerem”. Especificamente, o antropólogo e sociólogo francês debruça-se sobre aquilo que denominou de “condutas de risco”, noção configurada a partir de um jogo simbólico ou real com a morte não para morrer, mas para encontrar no ato de arriscar-se um sentido de “viver mais”.

A vivência do risco pela viagem e pelo esporte praticado em seu fluxo concedem a Marc instrumentos de interpelação de limites sociais e físicos, o que parece repor seu “gosto de viver”, talvez daí derive o senso de vitalidade atribuído às viagens por parte do ca- rioca. Se a viagem é, para ele, como dito, uma prática de “enfrenta- mento do cotidiano”, tal enfrentamento recrudesce quando os pró- prios limites da vida pessoal, e não só da vida social, são postos em xeque. Se por um lado, em sua narrativa, a falta de integração é men- cionada e as dificuldades de se lidar com as expectativas familiares são explicitadas, isso não implica uma conduta de exposição delibe- rada ao risco que se baseia em modalidades como as do suicídio ou bulimia, por exemplo. O que está realmente em jogo, o que tende a se evidenciar de maneira mais marcante que a citada falta de integração é a insatisfação diante de um cotidiano previamente estruturado ou amplamente organizado; é para se distanciar desse ordenamento que leva a mortificação do sentido de vida que o surfista viaja e põe seu corpo à prova, fruindo as “paixões da vertigem”79 (LE BRETON, 2009a).

Finalizando o presente capítulo, gostaria de propor mais um exercício sociológico, desta feita assentando-se sobre a narrativa de Ceci. Como assinalado, sua relação com a prática de viagem apoia-se na valorização da mesma como uma espécie de “ferramenta de com- preensão” do mundo. É por meio de seus “distanciamentos” e das interações estabelecidas com os habitantes dos lugares visitados que ela se motiva a pensar sobre si e também acerca de seu mundo fami- liar. Em suas próprias palavras, as interpretações que os outros fazem sobre suas vidas ordinárias a estimulam a refletir e, muitas vezes, a reconhecer o valor do seu próprio cotidiano. Viagem e conhecimento,

79 A vertigem reporta-se à “ausência de contenção”, diz respeito ao “salto no vazio” presente em diversas formas de conduta de risco (LE BRETON, 2009a). Essa “paixão da vertigem” denota, portanto, um sentido de exploração de limites, uma vez mais, que são sociais e físicos. A fasci- nação pela ideia de queda, simbolicamente, representa um desejo de existência que procura intensidade, o que é obstacularizado pelas estratégias de contenção, pelas chamadas discipli- nares, pelo regramento ordinário. A fruição do “vazio” antes de ser uma manifestação de de- sistência, de resignação, é ato de afrontamento ao próprio “sentimento de vazio” partilhado pelos jovens em suas confusas experiências contemporâneas, a vertigem é possibilidade de preencher de significado uma “existência instável”.

no discurso da jornalista australiana, assim, são elementos difíceis de serem dissociados.80

Diante do exposto, parece também não ser descabido explorar a ideia de viagem como um instrumento de aquisição de “competên- cias”. Nesse sentido, os deslocamentos assumiriam um caráter for- mativo, em termos de “capital cultural”81 (BOURDIEU, 2006), muito

próximo daquele presente em instituições formais de educação, como a escola. Portanto, no que tange à trajetória de Ceci, seu “ca- pital cultural” parece ser incrementado por uma modalidade de for- mação produzida no seio da estrada, no bojo de suas experiências de trânsito. É importante lembrar que o gosto por viagens já era uma das expressões do estilo de vida de sua família, consistindo em um dos elementos que configuravam o que Bourdieu chamou de “capital cultural herdado”.

Contudo, o que busco salientar aqui com maior ênfase é justa- mente a expansão do “capital cultural” de Ceci para além daquele ad- quirido em meio a suas relações familiares. Obviamente, a escola e a universidade, ressaltando mais uma vez sua profissão de jornalista, contribuem para a referida expansão, no entanto na experiência da jovem australiana um termo a mais deve ser considerado: a influência

80 A relação entre viagem e conhecimento foi exposta de maneira mais detalhada no primeiro capítulo deste livro. Todavia, faz-se importante destacar um ideário de complementação de formação escolar realizado pela experiência mundana, simbolizado pela prática do Grand Tour, que aparentemente é retomado nos dias atuais. Os intercâmbios, como aquele vivenciado por Marc, são cada vez mais comuns, atualizando, por exemplo, a ideia de que o distanciamento do mundo familiar é propulsor de mudanças pessoais e aquisição de conhecimento, como a destreza em uma nova língua. No caso de Ceci, mais que uma habilidade linguística, o que está em jogo, como dito, é o entendimento da viagem como uma experiência a serviço de novas compreensões sobre o mundo.

81 “Capital cultural”, na obra de Bourdieu (2006), pode ser definido, em linhas gerais, como um conceito para se analisar situações de classe na sociedade. Como é evidente, tal constructo relaciona-se de forma íntima com um esforço de análise cultural que considera gostos, estilos, valores e esquemas de percepção de classes, grupos e frações de classe. Seus modos de aqui- sição são, de acordo com Bourdieu, distintos: o “capital cultural herdado” seria incorporado diante da localização dos sujeitos no bojo familiar, já o “capital cultural adquirido” diria res- peito ao papel formativo da escola. É válido destacar que o “capital cultural” pode operar re- conversões, implicando a aquisição de “capital econômico”, ao mesmo tempo em que não prescinde do “capital social”, ou seja, as redes de relações ou contatos estabelecidos entre os indivíduos. Assim, mais que um aspecto definidor de uma classe ou mesmo de uma fração de classe, o “capital cultural” mobiliza expressões de poder e distinção, sendo protagonista de lutas simbólicas por legitimações culturais entre as classes e suas frações.

da “estrada”, do deslocamento, das viagens em seus processos de aquisição de competências. O “douto” e o “mundano”,82 desse modo,

configurariam para Ceci formas complementares e não antagônicas de maneiras de aquisição de capital, revelando possibilidades de pensar as dinâmicas culturais de classe não pela oposição de tais termos, mas por mistura ou imbricação.

Família e escola para Bourdieu (2006) podem ser considerados espaços de constituição de competências tomados como importantes ou necessários para determinados momentos. A “estrada”, entendida também como lugar de aquisição de conhecimento, deve ser consi- derada como mais um mercado. Se do “capital cultural herdado” e daquele adquirido posteriormente a partir da frequentação escolar podem ser operadas reconversões que culminam na aquisição de ou- tras formas de capital – a saber, social e econômico –, o mesmo pode ser dito no que concerne às experiências de viagem, sendo o dis- curso de Ceci bastante ilustrativo: não é demais rememorar que é de sua escrita de viagem, da textualização de seus encontros em trân- sito, da representação em alhures que buscará cursar uma pós-gra- duação e, consequentemente, localizar-se da melhor maneira pos- sível no mundo do trabalho.

82 O “douto” e o “mundano” são termos utilizados por Bourdieu (2006) para explicitar as dife- renças no modo de aquisição do capital possuído, apresentando-se também como indícios das lutas simbólicas instituídas entre grupos ou classes opostas. Por “douto”, o sociólogo francês compreende um modo de produção e apreciação de obras culturais que se fundamenta na racionalização e na observação de regras ou preceitos que objetivam impor-se à concepção das obras. Já a expressão “mundano”, por seu turno, refere-se a uma maneira de apreciação da cultura muito mais baseada na busca de prazer, de uma fruição menos constrangida, atendo-se para isso aos detalhes mínimos que constituem a obra que se aprecia.