• Nenhum resultado encontrado

Já evoquei, em outros momentos deste mesmo capítulo, as no- ções de “espaço liso” e “espaço estriado” (DELEUZE; GUATTARI, 1997) na tentativa de melhor elucidar os processos de constituição dos projetos de viagem e de fabricação de rotas ou roteiros mobili- zados por meus interlocutores. É sabido que os citados espaços não se definem por uma oposição simples; eles misturam-se, envolvem- -se, promovem múltiplas passagens de um a outro, são partícipes, portanto, de uma interação variável por excelência. E no sentido de pensar a complexidade das relações entre o “liso” e o “estriado”, por exemplo, os pensadores franceses fazem uso de modelos, talvez sendo o tecnológico, baseado na tensão entre tecelagem e tecedura, algo que sirva também à reflexão acerca da dinâmica produtiva dos trajetos de viajantes como Benny, Marc e Ceci.

Para Deleuze e Guattari (1997), o tecido relaciona-se, por suas delimitações de urdidura (tecelagem), a um espaço fechado, estriado, pois, embora possa ser virtualmente infinito em comprimento, é

limitado em termos de largura. No entanto, a tecedura, que é a ação de criação de uma colcha de retalhos – uma atividade de acréscimos sucessivos e, por que não, infinitos ao tecido – guarda intimidade com a ideia de abertura, configurando um espaço onde o caráter do “liso” predomina. A produção de uma jornada de longa duração e que objetiva fazer-se de forma independente lembra-me a relação complexa exposta por este modelo tecnológico. A tecelagem diz res- peito às dimensões de planejamento, de ordenamento prévio, que não podem ser prescindidas, tais como os arranjos orçamentários e os esforços para aquisição e regularizações de vistos, passaportes e vacinas, por exemplo. Contudo, o aspecto da tecedura também se faz presente; para além das prescrições que envolvem uma jornada existe um nível de inventividade – pelo menos no que diz respeito às experiências aqui apreciadas – que é tomado como algo fundamental por parte dos sujeitos viajantes.

A importância da imagem da colcha de retalhos, em sua reali- zação criativa sobre a superfície do tecido, aplica-se, igualmente, a um roteiro, ou rota, que é modificado em pontos de paragem a partir das informações (que, como visto, não se restringem a meros dados práticos, mas que englobam também ideias, o “imaginário viático” sobre o qual fiz menção) adquiridas por meio da frequentação de canais de partilha de experiências, ou para voltar à noção benjami- niana, de narrativas de viagem. O acesso a tais narrativas, assim, pode implicar alteração – extensão, radical mudança ou mesmo re- dução – de um trajeto ou roteiro: a flanêur virtual – ou a “ciber- -flanêur”,112 termo de Lemos (2001) – permite, em grande parte, a

112 A relação cada vez mais simbiótica entre o “espaço da cidade” e o “novo espaço cibernético” é assinalada por Lemos (2001) como um dos traços mais marcantes da atualidade. De acordo com esta consideração, talvez seja possível – como o fez o citado autor – pensar a navegação pela internet como uma espécie de exercício de um ciber-flanêur em um “mar de dados”. Ou seja, não apenas sobre os espaços físicos, mas também tocando as malhas virtuais, o flanêur se move hodiernamente. Vagar pela cidade ou errar pelo espaço virtual, portanto, são ações que parecem guardar certas similitudes: há um “deixar de marcas”, há uma impressão de traços próprios, de apropriações cotidianas, em ambas experiências. A errância dos clicks, afetada por seduções e desvios, como acontece na prática da deambulação do poeta citadino, é um dos elementos que podem fabricar a citada aproximação: tanto quanto o flanêur, o

ciber-flanêur vivencia um espaço relacional, reconstruído sem cessar, não obstante os

emergência de uma rota trabalhada sob a rubrica do patchwork. Obviamente, o sentido de um “roteiro menor” – produzido por Ceci, por exemplo, no bojo de uma leitura de um guia em forma de livro – também se relaciona com a disposição ao patchwork em questão, o que implica, por fim, a necessidade de se pensar a flexibilidade como componente incontornável para a compreensão da prática viática de sujeitos como Benny, Marc e Ceci.

Ritmos

Em seu livro A Estrada, publicado em 1907, o escritor ameri- cano Jack London – de forma reconhecidamente autobiográfica – re- presenta as dinâmicas de deslocamentos de sujeitos desempregados no contexto da crise econômica que assolou os Estados Unidos no ano de 1894. A obra, composta por vários contos, assim, tematiza a prática da viagem enquanto possibilidade de se encontrar emprego ou sobreviver de uma “mendicância errante” em distintas cidades e regiões do país. Com uma narrativa afeita ao detalhe, London confere clareza às estratégias de abordagens aos moradores locais mobili- zadas pelos viajantes – também conhecidos como hoboes113 – com

113 No prefácio de A Estrada (2008, p. 9-11), o historiador Luiz Bernardo Pericás busca apresentar algumas possíveis origens para o termo Hobo. Segundo Pericás, há quem afirme que o nome é uma corruptela do termo hoe-boy, que designava o ajudante na fazenda; para outros pes- quisadores, no entanto, Hobo pode ter se originado da saudação Ho, Boy! Outras duas teorias ainda são ressaltadas pelo historiador: a primeira é que outro cumprimento, Ho, beau!, é fundante do termo, e a segunda diz respeito à ideia de que Hobo pode ser uma abreviação da expressão homeward bound. Assim como a origem da palavra, o local de surgimento desses sujeitos é também apontado como enigmático – Hoboken, Houston e Bowery são exemplos explicativos –, o que não impede a tomada de, pelo menos, um consenso: Hobo expressa mobilidade, muitas vezes uma necessária mobilidade laboral, relacionando-se intimamente com a consolidação dos caminhos férreos nos Estados Unidos. Na literatura sociológica, de forma mais específica, o Hobo foi objeto de interesse de Nels Anderson, um sociólogo ameri- cano de ascendência escandinava, que viu em sua própria biografia familiar as experiências de trânsito laboral formarem-se como determinantes, sendo estas algumas das motivações mo- bilizadas para empreender o estudo – sob o abrigo da Escola de Chicago – que resultou na obra The Hobo: A Sociology of the Homeless Man (1923). Para Anderson, o hobo é uma figura tipicamente americana como o cowboy, nascido na mesma condição histórica que o último: no bojo de um mercado laboral que dele necessitava. No entanto, para o sociólogo, o hobo distingue-se de outros andarilhos ou trabalhadores itinerantes por ter um aguçado senso de curiosidade e forte sentido cosmopolita; ele é um leitor ávido, de mente ativa, exímio obser- vador e conhecedor das dinâmicas cidades que frequenta, sabe como “entrar” e como “sair”

objetivo de conseguir comida ou algumas moedas para continuar seu périplo por melhores condições de existência. São igualmente inte- ressantes, em minha opinião, as descrições feitas pelo autor que con- cernem aos encontros vividos com outros tantos hoboes, implicando reflexões acerca de questões como “solidariedade”, “conflito” e “prazer” no bojo de suas viagens.

No entanto, o que gostaria de aqui destacar com maior ênfase é a vinculação do deslocamento ou da viagem com noções como as de tempo ou ritmo, o que necessariamente traz à baila análises sobre “como os deslocamentos são concretamente efetuados”. No contexto assinalado por London, a ferrovia é o locus privilegiado do movi- mento; são os vagões Pullman que cumprem a função de deslocar os sujeitos, mesmo que tais viagens passem ao largo de sensações de conforto ou segurança: London e seus companheiros, pela escassez material, viajam sob a lógica da ilegalidade, localizando-se ora sobre os vagões do trem, ora abaixo destas estruturas, sempre buscando burlar as ações de fiscalização. Não obstante tal risco, as ferrovias “entrelaçavam” várias regiões dos EUA, oportunizando paragens, de- sacelerações e retomadas de trens quando as possibilidades de “ex- ploração” de uma cidade eram finalizadas. Esse caráter rítmico do deslocamento, esse pensamento sobre como se deslocar – que se relaciona com limitações econômicas, mas também com um estilo próprio de mobilidade, com uma certa aquisição de sentido para além do fato de mover-se de “cá para lá” – é o que agora passo a apre- sentar, tendo como referência os discursos de meus interlocutores.

Durante uma de minhas conversas com Ceci, esforcei-me por entender de que maneira ela dispunha-se a viajar. Eu buscava com- preender, em um primeiro momento, suas opções em termos de transporte, mas o que se revelou em seguida foi uma exposição de motivações para a eleição de determinados meios de transporte em

de cada uma delas. Exemplo de sua capacidade adaptativa é a variedade de empregos que ocupa em sua trajetória de vida, o que implica uma disposição para manusear diferentes fer- ramentas de trabalho e compreender rotinas laborais plurais. A presença do Hobo na socie- dade americana, por fim, foi tão presente que Nels Anderson observa a instituição de espaços nas cidades que em grande medida foram ocupados por esses andarilhos; tais espaços ga- nharam, inclusive, a alcunha de Hobohemia.

detrimento de outros que, de modo algum, restringia-se apenas a questões orçamentárias. Em outras palavras, para a jornalista, o ato de viajar utilizando-se de trem, avião ou caronas, trazia consigo dis- tintas formas de valorização do deslocamento que repercutiam, também, no sentido mais amplo de sua viagem. Assim, ela me relatou que, para sair da Austrália, via de regra, utilizava-se do transporte aéreo: no intuito de percorrer longas distâncias, o avião, segundo Ceci, era o meio mais rápido e, por vezes, com menor custo para al- cançar a região de onde sua viagem, efetivamente, iria começar.

Centrando-se, especificamente, sobre sua experiência no con- tinente europeu, a jornalista afirma:

Para chegar a Londres, obviamente eu utilizei um avião. Navio era impensável! Nem sei se fazem esse trajeto... Mas quando desembar- quei em Londres, quando fui viajar para outras cidades, preferi utilizar tudo, menos avião. Mesmo sabendo que, em comparação aos voos in- ternos na Austrália, os preços na Europa seriam bem melhores. Com avião você chega rápido ao destino, mas acho que não aprecia a viagem.

Considerando o exposto por Ceci talvez seja possível pensar, por parte da viajante australiana, certo reconhecimento do sistema aéreo enquanto instrumento de “desencaixe”, enquanto “sistema perito”114 (GIDDENS, 1991), que promove alterações no registro de

interação entre aquilo que era considerado antes da ordem do “pró- ximo” ou do “distante”. O “encurtamento” do espaço e o “esvazia- mento” do tempo, assim, fazem com que Europa e Oceania se “avizi- nhem”, oportunizem mútuos acessos, amplos e rápidos. Contudo, uma outra questão pode ser derivada do discurso acima apresentado:

114 Para Giddens (1991, p. 29), as fichas simbólicas e os sistemas peritos são mecanismos de de- sencaixe, o que – por seu turno – é compreendido pelo autor como um “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de interação, sendo reestruturados “através de extensões indefinidas de tempo-espaço”. Especificamente por “sistemas peritos”, Giddens (1991, p. 35) pretende se referir a “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que orga- nizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”. Já as “fichas simbólicas” são definidas pelo sociólogo britânico (1991, p. 31) como “meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular”.

para Ceci, a perda de referenciais de um “domínio local”, própria das expressões de “desencaixe”, parece contribuir para a desqualificação daquilo que, pelo menos aos seus olhos, configura-se como um ideal de viagem. O trajeto em avião não propicia uma interação com as paisagens locais, com os modos de vida ou mesmo com a temporali- dade “nativa”, algo já exposto por Ceci como uma das componentes mais caras ao seu estilo de viagem.

Opinião semelhante acerca da “pobreza de experiência”, ex- pressão inspirada livremente em W. Benjamin, presente nos trans- portes aéreos é manifestada por Benny:

Como cidadãos europeus temos facilidades em encontrar muitos voos baratos dentro do continente. Mas prefiro, dependendo do trajeto e do tempo que tenho para o percorrer, tentar “pegar” uma carona ou utilizar trens. Embora os trens não sejam, atualmente, as opções mais baratas. Mas eu gosto de ver a paisagem, observar quem entra e quem sai nas estações e conversar com outros passageiros.

De fato, a entrada das companhias aéreas de baixo custo, como a Ryanair e a Easyjet,115 no mercado de transporte aéreo, propor-

cionou uma grande alteração nas dinâmicas de procura e oferta de viagem dentro do continente europeu, repercutindo na diminuição dos custos das passagens (ALMEIDA; FERREIRA; COSTA, 2008). Os efeitos da livre concorrência, portanto, foram aproveitados por um segmento de passageiros com “férias flexíveis”, que não fazem uso de pacotes turísticos pré-programados e com disponibilidade de ad- quirir seus bilhetes aéreos sem a mediação de agências, na maioria

115 De acordo com Almeida, Ferreira e Costa (2008), antes do processo de liberalização – que consistiu, entre os anos de 1987 e 1997, na entrada de novas companhias aéreas no mercado, caracterizadas por sistemas de operação e gestão menos custosos – havia pouca concorrência entre as companhias aéreas tradicionais, uma vez que as tarifas eram determinadas a partir de acordos bilaterais entre estados, o que impunha a figuração de rotas e aeroportos especí- ficos, bem como tipos de aeronaves e frequência de voos para cada companhia. Reino Unido e Irlanda, com as citadas Easyjet e Ryanair, respectivamente, foram estados pioneiros na per- missão de operação de voos em escala comunitária e não mais determinados por acordos unicamente bilaterais.

das vezes por compras online.116 Contudo, apesar do incremento de

viagens proporcionado pelas empresas aéreas low-cost, o que parece continuar “em jogo”, no que diz respeito aos trajetos feitos por avião, é uma espécie de apartação da paisagem visitada que, no li- mite, configura-se como algo desvalorizado para determinados tipos de viajantes, como Ceci e Benny.

Ao contrário da viagem aérea, uma experiência sobre a qual não há muito a se dizer, como salienta Theroux (2010), uma vez que ela se constitui, prioritariamente, sob o signo da regularidade – ex- ceto quando não há um desastre, um grande atraso ou um sequestro, brinca o literato –, o movimento por meio de trens confere aos su- jeitos uma maior sensação de incorporação à paisagem visitada.117 A

impressão de apartação diminui à medida que mudanças concretas no cenário vivido são percebidas. Se os encontros com expressões locais se apresentam como algo procurado e definidor da satisfação dos sentidos de viagem de sujeitos como Benny e Ceci, a preferência

116 O “modelo de negócio” (ALMEIDA; FERREIRA; COSTA, 2008) das companhias aéreas de baixo custo distingue-se daquele adotado nas companhias aéreas consideradas tradicionais; é essa especificidade administrativa o que permite a diminuição das tarifas e, consequentemente, um posicionamento competitivo por parte daquelas no mercado de transportes aéreos. Dentre os aspectos que conformam “modelo de negócio” em questão, cito alguns: a) venda de um “produto simples”, deslocamento, sem refeições de bordo, bebidas, aperitivos ou jor- nais oferecidos de forma gratuita; b) voos com uma só classe a bordo; c) não utilização de salas privadas no aeroporto para clientes considerados importantes; d) utilização de rotas di- retas, com frequência elevada; e) campanhas de marketing agressivas e; f) operações efetu- adas para aeroportos secundários, em que as tarifas aeroportuárias tendem a ser mais baixas. 117 O desprezo de P. Theroux acerca das viagens aéreas aparece em muitas de suas obras.

Contudo, penso que – especialmente – uma colocação bastante ácida sobre o tema, presente em O Velho Expresso da Patagônia (2010) e citada em A Arte da Viagem (2012, p. 39-40), merece ser reproduzida com justificativa de oportunizar a intensificação destas discussões sobre ritmos de viagem: “Não há muito a dizer da maior parte das viagens de avião. Qualquer surpresa é por força desastrosa, assim se define um bom voo pela negativa: não foi seques- trado, não caiu, não se vomitou, não chegou atrasado, não se ficou nauseado com a comida. Por isso se fica agradecido. A gratidão provoca um alívio tal, que a mente fica em branco, o que é adequado, porque um passageiro de avião é um viajante no tempo. Ele entra num tubo alcatifado que cheira a desinfetante e aperta o cinto de segurança para regressar a casa, ou para partir dela. O tempo é truncado ou, pelo menos, deformado: o viajante parte de um fuso horário para emergir noutro. Desde que entra no tubo e, desconfortavelmente sentado, apoia os joelhos nas costas do assento da frente – desde o momento da partida -, a sua mente concentra-se na chegada. Isto é, se estiver no seu juízo perfeito. Se olhasse pela janela, não veria mais do que a tundra de uma camada de nuvens e, por cima dela, espaço vazio. O tempo é brilhantemente cego: não há nada para ver”.