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Em seu texto Youth on the Road: reflections on the history of

tramping, de 1985, a socióloga Judith Adler levanta interessantes

questões no sentido de problematizar uma “origem elitista” da prá- tica turística, tomada unicamente como uma derivação do conhecido

The Grand Tour, como visto, empreendido por jovens aristocratas

europeus, sobretudo no século XVIII. A tese de Adler, então, toma corpo a partir de um caminho oposto a tal derivação: para a autora, paralelamente ao The Grand Tour, desenvolviam-se formas de deslo- camento bastante intensas e, por vezes, até quase compulsórias entre as classes trabalhadoras de alguns países europeus.52

50 A ideia de desprovincialização, aqui mobilizada, passa ao largo da carga pejorativa que o termo pode possuir em alguns contextos. Não se trata, portanto, de utilizar esta expressão no sentido de um juízo de valor, mas de acenar para o movimento de “acessibilidade” no que tange às viagens que foi tomando corpo no decurso dos anos. Sobre a questão, Assunção (2012, p. 21) assinala: “A partir de 1860, na Europa, houve um estímulo maior para as práticas de viagem. O dinamismo da sociedade, com avanços técnicos, criou as primeiras estruturas voltadas ao tu- rismo. A viagem passou a ser mais acessível e para um público maior. Este novo momento inspirou uma nova ideia de viagem, valorizando o conhecimento e as interações culturais. A melhoria dos transportes e o aumento do padrão de vida permitiram que uma pequena e média burguesia também viajasse e utilizasse os serviços oferecidos pelas instituições de viagem”.

51 Thomas Cook é personagem de menção obrigatória nesse sentido. Considerado por vários es- tudiosos o primeiro operador profissional, Cook – pregador batista –, em 1841, teve a ideia de alugar um trem com o intuito de levar os membros de sua comunidade religiosa a um encontro que aconteceria em outra cidade. Como as tarifas àquela altura ainda eram bastante elevadas, ele tomou para si a tarefa de negociar junto à empresa Midland Counties Railway uma redução no preço das passagens em troca de arregimentar um número elevado de passageiros; nascia ali a primeira ação do que viria a ser um excursion-agent (REJOWSKI, 2002). Em 1951, ele criou a Thomas Cook & Son, iniciando a atividade turística organizada, difundindo excursões de trem pela Inglaterra e, posteriormente, passando ao continente (SANTANA, 2009).

52 De acordo com Adler (1985), os historiados das viagens, convencionalmente, traçam as origens do turismo – e, por implicação, as viagens de jovens por prazer – tomando por base, como dito,

Esses deslocamentos consistiam em sistemas organizados por “comunidades de ofício” – pedreiros, pintores, encadernadores, fer- reiros, costureiros, trançadores de corda etc. – para que os jovens de tais classes adquirissem, a partir de um intercâmbio proporcionado pelas viagens, o conhecimento necessário para tornarem-se mestres em suas artesanias. Assim, preferencialmente, jovens solteiros eram incentivados a tomar a estrada e “pousar” de cidade em cidade, onde houvesse, obviamente, representações das sociedades de ofício, das quais faziam parte, para aprender novas técnicas ou distintas dispo- sições estéticas para seu trabalho. Desse modo, por exemplo, jovens artesãos britânicos podiam familiarizar-se com tradições variadas de seus ofícios oriundas das mais diversas regiões de seu país.53

unicamente o Grand Tour dos jovens aristocratas europeus. Assim, esquecem-se de reco- nhecer os processos de deslocamento religioso e também os laboralmente informados que tiveram lugar nos referidos séculos. Essa denegação que, segundo a autora, prioriza as dimen- sões “recreacionais” e “culturais” próprias das classes privilegiadas contribui para o embota- mento de elementos importantes de uma experiência histórica comum, bem como obscurece um melhor conhecimento das práticas de ambos os grupos. Como ilustração, a socióloga diz que, mesmo considerando os deslocamentos trampings como uma necessidade econômica, é possível traçar paralelos entre esta experiência e a dos jovens que efetuavam o Grand Tour porque ambas implicavam uma espécie de vivência ritual, onde os sujeitos eram separados de suas famílias e comunidades de origem, sendo deles exigido o desenvolvimento de habilidade e capacidades para se situar na vida adulta. Somando-se a isso, mesmo nos sistemas de via- gens trampings, havia a possibilidade de se conhecer monumentos, belas paisagens e de se educar. Nesse sentido é que, problematizando um argumento já exposto nessa obra, Adler (1985) afirma que o estabelecimento do turismo não pode ser unicamente creditado ao desen- volvimento de tecnologias de transporte e comunicação, o que para alguns significava a via de “democratização” da viagem, uma vez que elas também existiam desde muito tempo entre as classes trabalhadores menos abastadas.

53 A organização de experiências de viagem entre comunidades de ofício abre ainda a possibili- dade de se refletir acerca de um tema que parece ser bastante atual; conforme assinala Adler (1985), a liberdade de movimento nunca foi considerada um direito humano plenamente, uni- versalmente, reconhecido. Enquanto as classes mais abastadas tiveram a possibilidade de se deslocar baseadas em noções de prazer ou educação, as classes menos favorecidas tiveram que esforçar-se para justificar e legitimar suas experiências de mobilidade. O sistema de inter- câmbio estruturado pelos membros dessas comunidades de ofício, assim, funcionava como uma “estratégia” para se efetuar um deslocamento necessário, constituinte do próprio desen- volvimento de suas profissões, sem maiores problemas. Obviamente, como também já explici- tado, essa deambulação, sobretudo dos jovens, figurava como experiência de aquisição de conhecimentos ou de desenvolvimentos de habilidades para além da dimensão laboral, daí a sua extrema importância. Considerando os limites para os deslocamentos, os obstáculos ou as facilidades que se apresentam para os indivíduos de formas distintas, a depender de seus “lu- gares de origem” na composição social, a distinção evocada por Bauman (1998) acerca dos “turistas” e “vagabundos” para ser relevante e ainda se pensar em mundo paradoxalmente conformado por uma intensa dinâmica de “quebra” e “reconstrução” de fronteiras.

Considerada uma “instituição laboral” que teve seu pico no começo do século XIX, os sistemas de viagem das comunidades de ofício ofereciam comida, emprego e dinheiro aos jovens viajantes que, em troca, assumiam a responsabilidade por determinados tra- balhos nas cidades visitadas. É válido salientar que, mesmo em tempos de crise, os viajantes poderiam, ao menos, esperar por um mínimo de ajuda, como uma módica soma em dinheiro que seria, pelo menos, suficiente para conduzi-lo até a próxima cidade onde se situasse outra de suas associações.54 A ideia de viajar por trabalho,

de acordo com Adler (1985), não significava uma exclusividade em termos de atividade durante o período passado em trânsito; ao con- trário, muitos jovens aproveitavam esses momentos como também oportunidades de lazer, de visitação a pontos locais de fama reco- nhecida ou mesmo como experiências de aventura longe de seu lar.

Foi esse “transbordar” prático e semântico do tramping – uma instituição laboral que não lida apenas com atividades de trabalho, mas que congrega outras dimensões no bojo de sua vivência – o que levou Adler (1985) a afirmar que nos sistemas de viagem da classe trabalhadora também existiam componentes turísticos, insistindo em que houve igualmente um consumo de uma prática popular – esse sistema de viagens – por parte de uma classe média ascendente que, posteriormente, modifica-a, dando, assim, vazão aos contornos do turismo. Diante disso é que a simples “democratização” do Grand

Tour, para a socióloga americana, não se sustenta enquanto única

explicação para o desenvolvimento do turismo; em seus próprios termos, a road culture composta pela classe trabalhadora deve ser compreendida, também, como um tropo turístico.

Se existem componentes turísticos na experiência tramping, é importante destacar que eles parecem se remeter a um tipo de tu- rismo menos contemplativo e mais de ordem interativa, comunica- cional. Ao vivenciar o tempo de estrada, o jovem artesão estabelece

54 Essa relação estabelecida entre os membros de uma comunidade de ofício – que visava, por um lado, ao intercâmbio laboral e, por outro, também apresentava-se como uma tentativa de se reduzir os efeitos, via mobilidade, do desemprego –, de tão intensa, poderia ser, inclusive, reconhecida como uma relação quase de parentesco, em que os sujeitos poderiam se reco- nhecer, como afirma Adler (1985), como tramping brother.

relações mais íntimas com os sujeitos com os quais realiza suas trocas, seu processo de aprendizagem. E se, para algumas culturas de ofício, o trabalhador deve permanecer quatro ou cinco anos em trânsito para ser reconhecido como mestre (ADLER, 1985), é desne- cessário dizer que em tal experiência o registro do tempo é vivido de outra maneira. Considerando a dinâmica de interação e a extensa duração da viagem, marcas substanciais da instituição laboral em questão, é que podem surgir elementos para pensar o diálogo entre a prática tramping e as viagens backpackers. Desses dois aspectos estruturantes, assim, é que talvez se possa apontar a qualidade se- minal do trabalho de J. Adler para se pensar tais deslocamentos.

No entanto, outro ponto apresenta-se, no que tange à minha opinião, também merecedor de destaque: ele diz respeito à relação entre viagem e aquisição de conhecimento, algo que parece estar claro, uma vez que me reporto a uma instituição laboral, mas que poderia ser um pouco mais trabalhado. Tratando-se de uma comuni- dade de ofício, pode-se pensar que o conhecimento adquirido nos processos de deslocamento é meramente técnico. Porém, mais uma vez ultrapassando essa definição – instituição laboral –, é possível notar uma atividade que não está apartada do mundo; em cada ci- dade visitada, portanto, o sujeito viajante cumpre um estágio de aquisição de conhecimento no que Adler (1985) chama de o “colégio do mundo”. Isso é presente, como será visto em outros momentos dessa pesquisa; em inúmeros “discursos backpackers”, a noção de conhecimento será muitas vezes chamada à baila como justificativa para o empreendimento de viagens de longa duração.

Da pontuação acima, da articulação entre viagem e conhecimento na experiência tramping, depreendo ainda mais um vínculo com a ex- periência backpacker, esse sim mais restrito à dimensão do trabalho ou, mais especificamente, da economia; para permanecer tempos alar- gados em trânsito, como já assinalado, alguns backpackers precisam exercer um bom domínio no que concerne ao seu orçamento – é, inclu- sive, por isso que também são conhecidos como fit tourists ou budget

travelers –; contudo, mesmo poupando, evitando gastos desnecessá-

rios, optando por hospedagens e refeições menos custosas, o montante destinado à jornada muitas vezes não é suficiente, sendo bastante

comum o trabalho temporário desses sujeitos viajantes no sentido de sair de determinadas situações de penúria (como as de não ter dinheiro para comer ou pagar hospedagem) ou ainda, como dito, para simples- mente estender seus itinerários. Como, para muitos, existe disponibili- dade de tempo e vontade de se cruzar fronteiras, “fazer dinheiro” na estrada significa materializar essas possibilidades.

Embora o sistema de viagem tramping tenha declinado, como afirma Adler (1985), a partir do início da Primeira Guerra Mundial, desestabilizada, sobretudo, pelo intenso processo de industriali- zação e mecanização experimentado à época – o que colocava as habilidades artesanais como algo não mais necessário para os pro- cessos de produção –, tais experiências ainda apresentam-se como uma importante fonte de interlocução para se compreender não so- mente a história, mas também os traços vívidos de algumas práticas de viagem como, nesse caso específico, a viagem backpacker. Nesse sentido, é que as experiências passadas de pessoa para pessoa, se quisermos chamar Benjamin (1992) ao diálogo, ou melhor, de artesão para artesão, não podem ser consideradas “ações em baixa”. Ao con- trário, continuam sendo possibilidades de comunicar práticas de viagem que informam e repercutem em processos de deslocamento contemporâneos, como o que aqui figura como matéria de reflexão.