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Motivado não unicamente pela “quebra” da rotina, mas também pela possibilidade de praticar esportes como surf e snowboard, é que o carioca Marc montou os roteiros de duas de suas viagens de longa duração sobre as quais mais conversamos. Na primeira, o litoral, ob- viamente, foi referência para visitação. Contudo, Marc esforçou-se por empreender uma jornada que proporcionasse a experiência de surfar não uma onda qualquer, mas lugares “consagrados” para a prática do esporte. Sua jornada, como se vê na figura a seguir,95 co-

meça pelo lugar considerado a “meca do surf”, segundo suas pró- prias palavras, o Havaí. A experiência no arquipélago, um dos 50

94 A partir de trabalho de campo efetuado na Espanha e na Índia, D´Andrea (2007) busca compre- ender a instituição de uma rede globalizada de experiências contraculturais que tomam forma a partir da adoção de um estilo de vida baseado em noções como as de espiritualidade, cosmo- politismo e individualismo. O trânsito de sujeitos “expatriados”, termo do próprio autor, entre os dois países, motivado pelo cenário da música eletrônica, é tomado como empiria privilegiada para se pensar aquilo que ele denomina de “neonomadismo” ou “nomadismo global”. 95 Nos mapas que representam os trajetos percorridos pelos interlocutores apresentados neste

livro, o balão verde indica a localidade em que a viagem se inicia, e o vermelho, por seu turno, sinaliza o lugar de término do deslocamento.

estados que compõem os Estados Unidos, foi tão significativa que o

bartender e professor de inglês tatuou um mapa, representando as

ilhas que o formam, em seu ombro. Dos oito meses em que passou em trânsito, quase quatro foram vividos no lugar.

O desembarque de Marc no estado do Havaí se deu após um curto período entre outros estados norte-americanos, onde o carioca procurou revisitar amigos que fez durante seu período de intercâmbio. Após tais reencontros, o surfista tomou um voo da Califórnia para Honolulu, capital do estado a ser visitado, e, a partir daí, começou seu périplo pelas demais ilhas em busca dos “picos”96 que anteriormente

só “conhecia” por meio de filmes e fotografias de surfistas famosos.

Figura 1 – Roteiro de Marc pelo Havaí

96 Por “pico” os surfistas entendem o lugar onde ondulações que favorecem a prática do surf podem ser localizadas. Uma localidade, bem como uma mesma praia, pode ser possuidora de vários “picos”, que diferencia-se entre si pela direção das ondas e pelo fundo do mar (pedra, recife ou areia), por exemplo. “Picos”, por vezes, são motivos de disputa, expressando uma reivindicação por exclusividade territorial que opõe “surfistas locais” e “sufistas de fora”. Alguns “Picos” são considerados secretos e tendem a permanecer assim pelo esforço dos poucos que os conhecem e a eles têm acesso; no jargão dos surfistas esses lugares escondidos são os secret spots.

Terminados os quase quatro meses em que Marc permaneceu envolvido pela atmosfera havaiana, o carioca resolveu dar continuidade a sua jornada, uma vez mais procurando estabelecer como destinos prioritários praias com constantes ondulações. Desse modo, a Austrália apresentou-se como destinação seguinte. O primeiro ponto de desem- barque naquele país foi a cidade de Sidney, mas depois de alguns dias ela foi “preterida” em prol de outra famosa região para a prática do surf: a Gold Coast.97 Passadas várias semanas em Queensland, Marc resolveu

visitar a cidade de Melbourne e depois retornou a Sidney para tomar um voo rumo à Auckland, capital da Nova Zelândia. Importante dizer que este país – por sua geografia diversa, composta de praias, montanhas e inúmeros rios e lagos – é considerado um paraíso para os amantes de esportes radicais, sendo o turismo advindo de tal reconhecimento uma das principais atividades econômicas da Nova Zelândia.98 A seguir,

mais um mapa representando a rota criada por Marc:

Figura 2 – Roteiro de Marc pela Austrália, Nova Zelândia e Indonésia

97 Assim como o Havaí, a Austrália é inquestionavelmente considerada um lugar privilegiado para a prática do surf e outros esportes aquáticos. Dentre seus variados destinos para prática desses esportes, a Gold Coast – localizada na região de Queensland – se destaca, sendo objeto de constantes publicações esportivas. Muito sugestivamente, a cidade comporta um subúrbio, que também é praia, chamado de Surfers Paradise, que se tornou destinação turística mun- dialmente conhecida.

98 A ideia de promover um “turismo mais ativo” é o carro-chefe das inúmeras agências turísticas presentes em solo neozelandês. Segundo Reis (2010), com mais de 30% de sua terra protegida em áreas de conservação e reservas florestais e detentora de uma topografia bastante diversa, de clima imprevisível, a Nova Zelândia, nos últimos trinta anos, vem tornando-se importante destino turístico do Pacífico. Interessante perceber é que “belezas naturais” do país e sua “vo-

Depois da experiência nos dois países da Oceania, Marc de- cidiu aproveitar a proximidade e explorar, especificamente, dois destinos localizados na Indonésia, país compreendido entre o citado continente e o sudeste asiático. As localidades escolhidas para visi- tação, como não poderia deixar de ser, novamente tinham relação com o surf, eram as províncias de Jacarta e Bali. A primeira, capital e maior cidade da Indonésia, na realidade, conforma-se quase que como uma parada obrigatória, haja vista que a maioria dos voos para o restante do país saem de lá. Bali, por seu turno, era o destino final para o carioca, uma ilha repleta de praias, segundo ele, com “ondu- lações perfeitas”. Bali também marca, para Marc, o término de sua primeira viagem de longa duração. Após o período em tal ilha, os deslocamentos são apenas os de retorno ao Brasil (Bali-Jacarta, Jacarta-Sidney e Sidney-Rio de Janeiro).

Embora os termos “novidade” ou “estranheza”, para alguns, não possam ser empregados à viagem de Marc de forma a não gerar ruídos – afinal, com a maturação dos meios de transporte e tecno- logia (O´REILLY, 2006) estas noções parecem ser difíceis de se sus- tentar –, a experiência do carioca levanta uma questão importante para se pensar a natureza do tipo de viagem em questão. Antes de apresentá-la, no entanto, não custa ressaltar mais uma vez a dispo-

sição criacional, o esforço inventivo, em relação ao roteiro, mobili-

zado pelo jovem surfista. Isso, por si só, já é considerado entre vá- rios sujeitos viajantes como uma forma distintiva presente em suas práticas de viagem, afastando-os do turista convencional ou institu- cionalizado ou ainda do turismo de massa (COHEN, 1972, 1973).

Feita tal menção, retorno à questão – por mim considerada de extrema importância – que a jornada de Marc suscita: a da relação entre o corpo e viagem. Conforme apontam MacCannell (1976) e Urry (1990), o turista até recentemente foi representado como um “con- templador”, um sujeito que consumia os lugares visitados apenas

cação para a aventura” são constantemente trabalhadas pelo trade turístico local, reforçado por políticas governamentais para desenvolvimento do turismo. Escaladas em rocha, caça e pesca, vela e mountain biking são apenas algumas das atividades apresentadas por uma plura- lidade de brochuras e anúncios criados por operadoras turísticas.

pela “observação”, pelo “olhar”. A disposição fotográfica e a passivi- dade diante dos monumentos podem ser consideradas, para J. Urry, exemplos dessa postura sightseer. No entanto, esse paradigma vi- sual, nas últimas décadas, vem dando lugar a um conjunto de refle- xões acerca das viagens e demais atividades turísticas que levam em consideração também a “corporeidade das práticas” (VEIJOLA; JOKINNEN, 1994). A jornada de Marc mobiliza sensações físicas, abre-se à busca do “extraordinário” em termos de sensibilidades cor- porais, faz-se calcada num ideal de atividade frente ao lugar e não de

passividade, o que impõe a citada relação – corpo e viagem – como

necessário objeto de reflexão.99

Em uma leitura apressada, a natureza poderia ser evocada como o único elemento de enlace entre o corpo e a viagem. Ou seja, o lugar-natureza seria privilegiado no sentido de estimular as di- mensões físicas e sensoriais dos sujeitos a partir, por exemplo, da caminhada por um relevo acidentado ou dos desafios propostos por esportes como o surf, caso de Marc, mas também montanhismo, canoagem etc. Entretanto, não gostaria de reproduzir aqui mais uma dicotomia: as experiências físicas e sensoriais também são elaboradas no lugar-cidade ou no lugar-urbano: é o que se verá debruçando-se sobre as narrativas de Benny e Ceci, a seguir. O que está em pauta, portanto, é um deslocamento de paradigma que cul- mina em apreciações sobre as atividades turísticas que igualmente

99 Para Reis (2010, p. 297), os estudiosos do turismo têm esquecido que “toda e qualquer experi- ência é vivida, sentida e apreendida por meio de nosso corpo”. Sendo a corporeidade uma parte fundamental da experiência humana, o turismo – de maneira alguma – poderia esquivar-se de refletir sobre questões concernentes ao corpo. Tal esquecimento, ainda conforme a autora, pode ser relacionado à manutenção de grandes dicotomias (sociedade/natureza ou sujeito/objeto) estruturantes do pensamento científico moderno. Assim, a apartação entre corpo e mente teria sido responsável pela posição de invisibilidade, até recentemente ocupada pelo primeiro termo. É importante destacar que a consideração da corporeidade no turismo acompanha o movimento reflexivo – iniciado ao final da década de 1960, com as críticas advindas do feminismo, da “revo- lução social”, do esporte e do body-art – que interpela a condição corporal dos sujeitos, pen- sando a corporeidade humana como um fenômeno social e cultural (LE BRETON, 2009b). Especificamente na seara dos estudos do turismo, é válido frisar que algumas reflexões sobre o corpo – como as promovidas por Hottola (2004) – também procuram relacioná-lo com as temá- ticas do gênero e da sexualidade. Tais enlaces conduzem a uma análise, por exemplo, dos encon- tros entre visitantes e locais que não se define apenas por relações econômicas.

reconhecem o corpo como elemento de dotação de significado no que se refere às experiências de viagem.