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Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento rememorado é sem limites, pois é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.

Neste capítulo, o foco da discussão é a prática esportiva como potencializadora de um conhecimento sensível, que se manifesta nos processos corporais, do corpo em movimento, revelado pela sensibilidade do atleta em quadra.

Para isso, considera-se a experiência estética do corpo no esporte, tendo como referência o meu mundo vivido e a linguagem corpórea como campo da experiência sensível26 no mundo esportivo. Trago cinco elementos estéticos para essa compreensão: tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar no contexto

esportivo, contato com o adversário, a vitória e a derrota e gesto técnico, como uma

forma de apresentar argumentos teóricos consistentes sobre eles, para compreender o esporte por meio de uma estética que envolve o atleta e configura a experiência educativa.

Para fundamentarmos nossa discussão, Merleau-Ponty se faz um pensador importante, por trazer o sensível como uma realidade constitutiva do homem e do conhecimento. Outros pensadores também foram utilizados, como Serres e Calvino, para podermos compreender que, a profusão dos sentidos encontrados na experiência do corpo no esporte são dimensões que lhes servem de suporte.

Para Merleau-Ponty (2011), é o sensível que afeta o homem, chega aos sentidos e recebe destaque, revelando a impossibilidade de distinção eu-outrem, eu- mundo, sentiente e sensível, pois, conforme o autor, “uma certa maneira de ser no mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que nosso corpo retoma e assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma comunhão” (MERLEAU- PONTY, 2011, p. 286).

Ao centralizar sua reflexão na crítica às análises empiristas e intelectualistas que dão ao corpo à ideia de transmissor de mensagens, como um sistema físico de estímulos definidos por propriedades físico-químicas, o filósofo explica que o sensível não é definido como um efeito imediato de um estímulo exterior, em que o aparelho sensorial desempenha o papel da transmissão, mas uma condição humana modelada pelo contexto do mundo, uma via dupla – condução-codificação – que, sem separação, alude todo o corpo em sentido: “O sensível é aquilo que se

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Em suas reflexões Merleau-Ponty (1989) busca compreender o homem a partir da sua experiência vivida, abrindo um imenso leque da relação do homem com seu corpo, com a cultura e com o mundo vivido. E, sobre isso ele esclarece que: “A partir do momento em que reconheci que minha experiência, justamente enquanto minha, abre-me para o que não é eu, que sou sensível ao mundo e ao outro, todos os seres que o pensamento objetivo colocado à distância aproximam-se singularmente de mim (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 136).

apreende com os sentidos, mas nós sabemos agora que este com não é simplesmente instrumental, que o aparelho sensorial não é um condutor, que mesmo na periferia a impressão fisiológica se encontra envolvida em relações antes consideradas como centrais” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 32).

Na concepção de Merleau-Ponty (2011), o sensível não pode ser pensado como respostas codificadas dos órgãos dos sentidos e a sensação um estímulo físico que se esquiva. Pois os processos corporais entendidos como elementares, provenientes do corpo, e superiores, vistos como mentais, mantêm relações que não são ordenadas fisiologicamente, mas movimentos de um constante interpretar entre o objeto e o sujeito da percepção.Logo, a qualidade do sensível e as determinações do percebido imbricam-se, imprimindo certa atitude ao corpo e um engajamento dele com o mundo:

A função do organismo na recepção dos estímulos é, por assim dizer, a de "conceber" uma certa forma de excitação. Portanto, o "acontecimento psicofísico" não é mais do tipo da causalidade "mundana", o cérebro torna- se o lugar de uma "enformação" que intervém antes mesmo da etapa cortical, e que embaralha, desde a entrada do sistema nervoso, as relações entre o estímulo e o organismo. A excitação é apreendida e reorganizada por funções transversais que a fazem assemelhar-se à percepção que ela vai suscitar (MERLEAU-PONTY, 2011, p.114).

O sensível excede seu significado elementar; o sensorial isolado. Por meio da atitude corpórea o estímulo arrebata as emoções, as reações fisiológicas e todo o ser, levando o homem a um movimento de busca, de entrega, assim como ocorre entre o pintor e o quadro, um conjunto de relações, estímulos sensoriais que constitui um todo:

O pintor deve ser transpassado pelo universo e não querer transpassá-lo [...] o que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 22).

Nessa perspectiva, o sensível mais do que aquilo que se vê, se ouve ou se toca, é aquilo que, ao se ver, ouvir ou tocar, conduz ao objeto, faz ser transpassados por ele, assim como o pintor com o quadro, o bailarino com a dança, o atleta com o esporte.

Por isso, considera-se pertinente para se pensar o fenômeno pesquisado o sujeito que percebe e dá sentido ao ser-no-mundo, como fonte significativa para refletimos a dimensão do sensível no esporte.

Convém trazer neste momento a minha experiência vivida no esporte, no seu fazer estético, no fazer e refazer do corpo, pelos quais minha vida tem significação.

Assim, no corpo sensível das experiências vividas é que, enquanto atleta reinstalo-me no cenário esportivo para embarcar na experiência estética do corpo no esporte. E, retornando à minha memória, busco expressar as palavras silenciadas e os sentidos que atravessam as múltiplas facetas e as inúmeras significações que nele subjazem.

Retomar essa experiência estética foi um meio de acessar um mundo de imagens, uma infinidade de lembranças enraizadas no corpo, uma transfiguração temporal em que, misturada pelo presente e pelo passado, fui transportada a um porvir de cores, de sons, e de acontecimentos que estão penetrados nas esferas do ontológico e na expressividade do meu ser.

Olhar minhas fotografias no esporte possibilitou reinstalar-me na experiência esportiva, revivê-la no meu corpo quando jogo, interrogando-a novamente para poder acessar elementos contidos em sua estética. Abrigado por outros corpos, pelo tecido do universo que lhe é constituído e pelo mundo esportivo, meu corpo vai se configurando por intermédio dessa experiência, uma vida e um mundo.

Ao transportar-me através dessas imagens, encontro-me aberta ao esporte e às sutilezas por ele reveladas. Um mundo atado ao meu corpo. Sentidos

Fotografia 01: Infinidade de lembranças Fonte: Arquivo da autora (1998)

entrelaçados que foram impressos em minha vida. Afinal, a experiência vivida imprime sentidos e é instituída por essa relação, permitindo ao vivido uma significação no mundo.

Há um verdadeiro entrelaçamento do meu ser com o mundo esportivo, o qual se relaciona com a minha forma de compreender as coisas e de me envolver com elas. Isto porque, a compreensão é eminentemente corporal, e se dá a partir das experiências vividas, do contato do corpo, com os outros e também com o mundo (MERLEAU-PONTY, 2011).

O esporte sempre despertou meus sentidos e minhas emoções. A princípio irrefletidos, mas mesmo assim, na medida em que eu ia me envolvendo, as sensações e tudo que o envolvia criavam laços em mim cada vez mais nítidos, mais fortes e existenciais. Ao longo de dezenove anos como atleta, as sensações reverberadas, o sensível e o emocional experimentados através do esporte, são sentidos que sempre tiveram fortes significações em minha existência. Uma existência em que o esporte não aparece como um objeto distante, mas como mundo em que habito, pautado pela fluidez do movimento do esporte e da vida.

Vivenciar o esporte como atleta é poder senti-lo e compreendê-lo com um sentido singular, que se manifesta no corpo. E, para nós atletas, ele nem sempre possui o mesmo significado que o demando ou o padronizado pela mídia, pela política ou pela sociedade. Isto porque, vivê-lo é habitá-lo, descobri-lo através de suas nuances, suas formas, seus sons e suas faces, é projetar horizontes que estão ancorados no corpo e em seus movimentos, os quais se fundem, adquirindo um sentido existencial, uma abertura que: “[...] supõe que o mundo seja e permaneça horizonte, não porque minha visão o faça recuar alem dela mesma, mas porque de alguma maneira, aquele que vê pertence-lhe e esta nele instalado” (MERLEAU- PONTY, 2009, p. 101).

Desse modo, experienciar o handebol intensamente, em treinos, competições, viagens, vitórias, derrotas, gritos, alegrias, tristezas, dores e sacrifícios diversos, nos mistos de sentimentos e acontecimentos proporcionados por ele, tornou-o indispensável em minha vida, sendo ainda uma referência de sucesso pessoal e de formação educacional.

O esporte mudou minha existência e me fez sentir emoções que eu jamais senti em outras experiências. Foi nas quadras que descobri, por exemplo, que

minhas sensações mais íntimas eram reveladas, ascendendo e reascendendo muitas vezes, o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, a ansiedade e a serenidade, a emoção e a frieza, o sorriso e o choro, num vínculo paradoxal.

Na prática esportiva os sentidos são sempre provisórios e inacabados, tendo no corpo sua abertura para o sensível. A experiência estética possibilitada pela presença corporal do atleta transpõe qualquer determinação ou definição prévia para ele, constituindo-se, portanto, em um mesmo contexto, uma experiência sempre renovada. “É a ciência do corpo humano que nos ensina, posteriormente, a distinguir nossos sentidos. A coisa vivida não é reconhecida ou construída a partir dos dados dos sentidos, mas se oferece desde o início como centro de onde estes se irradiam” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 130).

É a partir das experiências vividas que o homem aprende sobre si e sobre seus sentidos, aprendendo, ao mesmo tempo, o mundo através deles. Os sentidos do corpo não se realizam por determinações externas entre eles, mas se faz espontaneamente entre os elementos envolvidos, quando algo é significativo, os sentidos são aguçados e a existência humana é transformada.

Pelas sensações do corpo vivo o esporte e, em seus movimentos, entrego-me ao mundo e ao universo do sensível. Essa experiência ocorre no corpo, na sua relação com o mundo e com o outro.

Na perspectiva do filósofo Merleau-Ponty (2004b), o sujeito da experiência estética é um sujeito que é corpo, que escreve sua história nele e por meio dele. Logo, faz a sua história por meio de tudo aquilo que vive e sente. O corpo que se movimenta no esporte, se refaz a cada instante, revelando, a cada experiência vivida, um novo mundo de sentidos e significados. Assim, compreendo-o como fenômeno em que a experiência estética é vivida. Em cada sensação, expressão, gesto ou comunicação vivida nele, adquiro e produzo saberes que dão sentido à minha existência. Não por representação ou por determinação, mas pela experimentação sensível do corpo, pelo movimento por vezes indeterminado, pelo gesto imprevisível e pelo fazer e refazer de cada experiência vivida.

Nesse pensamento, compreendo que o esporte disponibiliza uma profundeza de sentidos, presente nos corpos dos atletas, que nos possibilita compreendê-lo a partir de sua relação com a estética e a educação, permitidas pelas diversas significações vividas no jogar.

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