• Nenhum resultado encontrado

O processo do jogo é exactamente este: uma configuração dinâmica de seres humanos cujas acções e experiência se interligam continuamente

Neste capítulo, discutiremos a partir dos filmes “Invictus” e “Olympia”, aspectos relacionados à vertigem, a tensão e excitação, e, ao paradoxo. Recorremos a alguns autores como Merleau-Ponty (2004b, 2011) e Benjamin (2002), para fundamentar a experiência estética que existe no jogo; Elias (1992) e Welsch (2001), para compreender como no esporte é possível viver ao mesmo tempo o autocontrole e o descontrole das emoções na perspectiva de deslocamento do ético para o estético; e Mauss (2003), para entendermos que o atleta imbuído de técnicas corporais vive a prática esportiva de forma tradicional e dinâmica.

Refletindo sobre a doação do homem ao mundo, afetado pelas coisas que estão entregues ao contado do corpo, e aberto aos sentidos, nos apoiamos no pensamento de Merleau-Ponty (2011), o qual mostra a participação efetiva do corpo no envolvimento com as coisas no mundo, revelado como primazia para o conhecimento que se manifesta ao sujeito por meio da existência. Assim ele afirma: “O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 14).

A concepção sobre o mundo vivido pensada pelo filósofo nos faz compreender que no encontro do atleta com o esporte há uma comunicação entre corpos, a qual é capaz de movê-los numa sinergia de múltiplas sensações, que expande a existência para novos horizontes, revelando uma experiência fluida que arrebata os sentidos e gesta novas formas de vida e convivência.

Assim, é o mundo vivido no esporte, o mundo o qual o corpo abarca, é abarcado por ele e se interpenetram como parte de uma mesma existência, de um mesmo tecido.

Esporte e atleta não são mundos distantes, mas horizontes que existem em unicidade, em que o sensível é a expansão da expressão criativa e perceptiva. E nesse processo, o saber é construído na medida em que experiencia-se o corpo no esporte e vive-se a dor, o sacrifício, o confronto, as regras, mas também a leveza, a graça e o fascínio de ser atleta.

Isto porque, no esporte, o atleta se funda em sensações e emoções decorrentes das experiências ali vividas, ou seja, no corpo que joga. Corpo que se machuca, que chora, que obedece, que padece, que sente, que vive e que se comunica intensamente, ascendendo e reascendendo seus sentidos, escrevendo

sua história nele, mas, simultaneamente, sendo marcado por ele. E isso se manifesta como uma abertura do corpo ao esporte, que dá ao atleta sentido àquilo que ainda não tinha, visando significações que transcendem o mundo biológico.

Se o pensamento fenomenológico de Merleau-Ponty reflete sobre a experiência originária de nosso engajamento existencial no mundo por meio do corpo, e considera a existência como fundante da experiência humana e não o pensamento conceitual, entendemos que há no corpo um núcleo de significações em que ele é um contínuo movimento de transcendência43 ao mundo.

Assim, a experiência estética vivida no contexto esportivo retira o corpo da explicação causal e o arrebata para um outro mundo. Segundo Merleau-Ponty (2011, p. 248),

A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime, instala- o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente, arranca os próprios signos – a pessoa do ator, as cores e a tela do pintor – de sua existência empírica e os arrebata para um outro mundo.

Nessa perspectiva, podemos compreender o esporte como malha que liga o atleta ao mundo, aos outros e a si mesmo, permitindo que ele se encontre com as intrínsecas condições da dor e do prazer, da harmonia e do conflito, do conhecer e do sentir, além de construir sua singularidade em torno da experiência vivida, em meio à multiplicidade de sentidos criados e recriados no mundo esportivo.

É nesse cenário que a estética do esporte tenciona valores sensíveis e educativos numa perspectiva que prima pela espetacularização da performance corporal, mas também pelos sentidos e idiossincrasias que ele manifesta nos jogadores e nos seus apreciadores.

Como mostra Mafessoli (1996), é o enlace sensível, portanto, estético, que produz o amálgama social. Logo, as estruturas culturais, sejam elas religiosas, artísticas ou esportivas, certamente transcorrem da abordagem estética, assim, “integrar o sensível na análise social é dar prova de lucidez” (MAFFESOLI, 1996, p. 73).

43

O transcendental aqui pauta-se na perspectiva do corpo numa imanência em relação às experiências, ao acontecimento, ao mundo vivido, em que ele passa por uma modulação existencial com a sua realidade circundante (MERLEAU-PONTY, 2004b, 2011).

Entretanto, o que se percebe é a negligência do debate estético no esporte, sobretudo no que diz respeito a uma melhor compreensão dessa manifestação cultural, que ultrapassa a dimensão pessoal ao ancorar-se no contexto mais amplo, o social (WELSH, 2001).

Nesse pensamento, acreditamos que os enredos sociais que configuram o esporte apresentam significações estéticas peculiares que extravasam os campos esportivos para difratar-se no conjunto cultural, fazendo-o emergir como prática corporal prazerosa, relativamente dependente e autônoma. E é nesse intuito que buscamos indícios na formação social, para refletirmos sobre o esporte dentro de uma estrutura social mais ampla, configurado dentro de um dispositivo de regulação estrutural e cultural, capaz de afetar o corpo e alargar o horizonte do atleta no mundo, expandindo a existência para uma vida que se constrói a partir dos princípios do educar-se por meio do sensível.

Para isso, utilizaremos duas produções cinematográficas como indicadoras do debate, pelo entendimento de que mesmo que elas recaiam sobre tempos distintos de sua criação, ambas podem formular a representação do imaginário pessoal e social como uma maneira ontológica de existir e de educar-se pelo jogo.

Vertigem

No esporte a ordem e a desordem estão presentes. É na tensão, na incerteza, na imprevisão e na ousadia que as ações dos atletas se desenvolvem. E há, sim, a valorização de condutas para obtenção do sucesso e da vitória. Todavia, é preciso reconhecer que nele não há só ordem imposta, existe também uma desordem que é gerida por essa dominação.

Nessa perspectiva, ele se constitui entre a ordem dada e a desordem gestada. É preciso o devaneio para o jogo acontecer. Corre, ataca, receba a bola, arremessa, volta, defende, passa a bola, corre... O jogo é dinâmico, ele não para! O corpo se move, cria, modifica, comunica e significa.

O ambiente do jogo é essencialmente complexo, aberto, dinâmico e não linear, o que permite ao jogador gerir a ordem e a desordem, numa relação de

complementaridade e antagonismos, ou seja, que não estão totalmente entrelaçados, mas são irredutíveis.

Nesse diálogo, há a necessidade de uma constante reorganização das situações decorrentes do jogo. O que imprime ao jogador uma organização desenvolvida entre a ordem, que são regras, regulações e os padrões de movimento do esporte que pratica, e a desordem que integra a modalidade jogada ao jogador como fonte geradora de toda ação ali realizada.

Assim, diante da necessidade de conseguir responder às emergências do jogo, o atleta vive a vertigem como uma maneira sempre nova de jogar. Com ela, a sua existência é colocada em xeque, exigindo novas formas de equilíbrio e de desequilíbrio, de idas e de vindas, de aproximações e de fugas, uma experiência na qual surge uma nova realidade e o atleta transforma as indeterminações em movimentos de vida.

Porpino (2012), ao refletir sobre o corpo, a experiência e a existência por meio do mundo da arte, ou melhor, da experiência vivida a partir dela, convida-nos a reconhecer o corpo como existência, mesmo sabendo que qualquer relato sobre a experiência vivida jamais pode ser confundido com a própria experiência.

Tomando como campo estético de reflexão para seu texto algumas obras de arte44, a autora parte deliberadamente da experiência sensível frente a elas, tematizando sobre a vertigem que as mesmas proporcionam na apreciação. A vertigem permite, a partir desse momento, modificações na existência, reforçando a impressão de que é preciso reaprender a ver a cada instante.

Pensamos que de modo semelhante ocorre com o atleta no âmbito esportivo. Assim como acontece com o apreciador diante das obras de arte, o atleta em jogo tem a sua existência fundada no vislumbre da sensibilidade que se abre a cada vez que ele se dispõe a jogar. Uma existência capaz de levá-lo à compreensão não apenas daquele contexto, mas dele mesmo, dos outros e do mundo.

Nessa perspectiva, é possível dizer que a prática esportiva causa vertigem, pois ela coloca o atleta a espreita do inesperado, frente aos antagonismos e às instabilidades provocadas na experiência. Afinal, o jogo muda o instante, exige um reordenamento das técnicas e do corpo, incluindo rupturas e fragmentações. Um

44

estado vertigionoso que permite vivê-lo simultaneamente entre a rigidez e a sensibilidade. Ou seja, a prática esportiva pode ser vivida como jogo em si, no sentido liberal e dinâmico do jogar, pois antes das modalidades serem esportes institucionalizados, elas são, sobretudo, jogo jogado. Assim como esclarece Knijnik e Knijnik (2004, p. 109): “Mais do que categorias separadas em um continuum estanque, a brincadeira vira jogo que se transforma em esporte, que pode vir a ser uma brincadeira novamente”.

Nesse sentido, o caráter organizacional do esporte revela, portanto, uma vertigem desafiadora. Os corpos de formato firme também são sensíveis ao que se passa ao seu redor e em si mesmo, absorvendo o jogo e permitindo um diálogo com as coisas que afetam o mundo da experiência vivida.

Na prática esportiva, nossa existência é confrontada, e a partir desse momento não somos mais da forma que fomos no último instante. O corpo muda, exigindo novas formas de equilíbrio, de desequilíbrio, de correr, de parar, de avançar e de retroceder. Ela nos ensina a reaprender a ver o mundo e a nós mesmos, modificando nossa existência a cada momento, ao modo como Serres (2004, p. 129) se remete ao corpo e ao mundo vivido:

Essa vertigem corporal, testemunho da passagem contínua de um estado de equilíbrio rígido para um segundo estado paradoxal e refinado, depois para outro e mais outro que, de outra forma, permaneceriam estáveis por movimentos imprevistos, nós a experimentamos a cada entrada em um mundo que nos desorienta e a cada encontro com uma nova e inesperada lógica que aparentemente interpreta às avessas nossas atitudes, mas que, no entanto, descobre e perpetua os habitus complexos do corpo.

O esporte modifica a existência com sua rigidez ou com sua abertura, fazendo o atleta, paradoxalmente, dependente e livre. Pois, de uma forma ou de outra, ele delibera e ressoa como um ato que integra e reanima a vida, modifica o homem e permite que ele o modifique, inaugurando formas de habitar o mundo, atualizadas pelas situações nele encontradas. E isso é o que se pode observar no filme “Invictus”.

Nele, dois personagens se destacam. Mandela, presidente da África do Sul, busca no esporte a possibilidade para acabar com o fosso da segregação racial entre negros e brancos existente no país. E, François Pienaar, capitão dos

Springboks, sonha ganhar a copa do mundo, mesmo diante do descrédito dos torcedores e das sucessivas derrotas que sua equipe vinha sofrendo.

Na obra, o poder ideológico, a competição exacerbada, a exaltação da virilidade e a força perpassam o esporte, sem, no entanto, ofuscarem o universo do agir, pensar e mover dos atletas dado pela dimensão ontológica do corpo, em sua condição sensível de existir.

O esporte mostrado, o rúgbi, vai ganhando novos contornos no desenrolar da trama. Vinculado à tenacidade e atrelado a uma ideia de vigor, também dialoga com uma forma de jogar que desconstrói a eficiência moldada pelos ideais olímpicos. Isto porque, a máxima olímpica do “mais alto, mais forte e mais veloz”, no filme, é acrescida de valores estéticos como afetação, sensibilidade e significação, os quais não estão retidos em conceitos, mas no fazer e refazer da experiência, dando sentidos às coisas vividas e mostrando que “O sensível desafia as análises do corpo, do espaço e do tempo em sua objetualidade. Desenhamos o espaço, vivemos no tempo, por isso criamos gestos como os gestos do esporte” (MELO; NÓBREGA, 2006, p. 37).

A relação ideológica entre esporte e política caminha atrelada ao projeto de integração e coesão social, potencializando valores e legitimando a experiência estética do atleta no jogo.

Certamente, o filme gera formas diversas de pensar o esporte para além do escopo utilitário e político, uma vez que, evidencia, a partir das demandas dos

Fotografias 11 e 12: Nelson Mandela e François Pienaar Fonte: Invictus. Cena 5 (2009)

jogadores, uma vivência que versa sobre o atleta e esporte, como fenômenos entrelaçados por meio da estesia, como forma de expansão do corpo sensível para uma experiência estética dele com esse mundo.

Na produção cinematográfica, o esporte acoplado tanto à ideia de inclusão como de vigor, aceitação do outro, resiliência, catarse e união, também dialoga com as sensações dos atletas.

O rúgbi aparece como um jogo empolgante para os jogadores. Ele combina força, tática e velocidade em um espetáculo agressivo e ao mesmo tempo virtuoso, pautado pela habilidade e pela beleza das performances45 técnicas dos atletas.

As disputas durante os jogos remetem-nos à polidez/virilidade, intensidade/suavidade, júbilo/choro, numa cumplicidade de sentidos, ao mesmo tempo harmoniosa e conflituosa em todo contexto esportivo.

Em campo, os movimentos são fluidos, no vai e vem da bola, os corpos jogam, o jogo torna-se jogado e jogante. E, o que parece previsível, desaparece, trazendo uma indeterminação resultante dessa relação, em sua possibilidade de expandir o corpo na dimensão do sensível e eclodir os sentidos a correnteza de significações antes latente.

Mais do que jogo previsto é o inesperado que vemos. Ações, ritmos e expressões que ousam o corpo numa dança que liberta e cativa, que silencia e comunica, evidenciando, pelas expressões dos atletas, gestos que eclodem na entrega do corpo aos sentidos efervescentes desse mundo vivido.

Os movimentos dos jogadores, especialmente em meio ao cansaço, vão além das ordenações da técnica esportiva. Os atletas conseguem nuançar os gestos padronizados com a potência sensitiva do jogo, fazendo fluir, por intermédio da experiência estética, uma nova atitude corporal.

Tal caminho pode ser percebido nas últimas cenas do filme. No final da copa do mundo, todo determinismo se desfaz e novos caminhos vão sendo traçados por ambas as equipes. Enquanto os All Blacks (equipe neo-zelandesa) mostram sua eficiência com a virilidade dos jogadores, a ampla experiência da equipe e as técnicas padronizadas do esporte, os Springboks, distante disso, buscam a superação de si mesmos, fazendo de cada jogada um universo de elaborações de

45

A performance aqui não diz respeito ao desempenho do corpo para alcançar um determinado fim, mas ao desempenho imprevisível do corpo em movimento vivenciado através da experiência estética.

acordo com o ritmo do corpo que se mexe e se contorce por intermédio do fervor esportivo.

Em campo, o jogo é tenso, termina empatado e vai para a prorrogação. A inquietude é geral. De um lado, uma forte equipe, do outro, um time aguerrido, incentivado pela autoconfiança do capitão que incentiva sua equipe dizendo: “Levantem a cabeça, olhem nos meus olhos, estão ouvindo? Ouçam o seu país [...] Sete minutos. Temos sete minutos! Defesa, defesa, defesa! É isso aí, vencer é o nosso destino. Vamos bokke! Vamos! Vamos ser campões do mundo”.

Fotografias 15 e 16: Equipe Sprinboks Fonte: Invictus. Cena 22 (2009) Fotografias 13 e 14: Equipe All Blacks Fonte: Invictus. Cena 22 (2009)

A câmera, sob diversos ângulos, em imagens lentas, demonstra a efervescência estética da experiência sensível que se revela nos corpos desses atletas, explodindo uma comunicação ardente a qual contagia o ambiente pelo viés da sensibilidade e do fazer de suas ações.

Esses fatores compõem as últimas cenas do filme, tomando maior amplitude pelo contexto em que o jogo é mostrado, a saber: faltam sete minutos para acabar a partida e os africanos perdem por três gols.

O que se vê são os africanos correndo pelos campos da sensibilidade e da expressão criativa para tentar ganhar a competição. E o corpo jogando para o mundo da criação, do fazer estético embalado pela experiência sensível do movimento, ganha amplitude, dimensiona a expressão corpórea, germinando, dos movimentos antes insólitos, inusitados sentidos e significados a experiência do jogar.

A abertura às multiplicidades dos corpos em movimento, mostrados por intermédio da ética, da cultura e dos sentidos creditados ao esporte, também pode ser verificada em produções cinematográficas que têm dado visibilidade a sua valorização estética sem esquecer seu enredo mesmo que ele tenha um sentido plural.

Tomemos como exemplo, também, a produção “Olympia”. Feito por solicitação de Adolf Hiltler, o filme é por vezes criticado em virtude da ideologia que

Fotografias 17 e 18: Capitão Pienaar incentivando sua equipe Fonte: Invictus. Cena 24 (2009)

veicula. Isto porque, nesse evento, o líder alemão promoveu uma intensa mobilização para demonstrar a superioridade física da raça germânica em relação aos demais povos. Todavia, essa obra ultrapassa a política para se transformar em um triunfo artístico das proezas atléticas e do corpo humano em movimento, revelando “uma realidade nuançada pelo conflito e pela beleza que caracterizam os Jogos Olímpicos como cenário político e estético” (MELO; NÓBREGA, 2006, p. 26).

Marco do documentário esportivo mundial, encontramos neste filme uma maneira bastante artística de mostrar o virtuosismo do espetáculo esportivo e a beleza estética dos esportistas em movimento. Ele começa como uma simulação do Olimpo, exibindo as ruínas de Atenas, as estátuas de deuses gregos e o clima de perfeição e pureza preconizadas pelo ideal olímpico. Posteriormente, aparece o Discóbulo, que se vivifica e completa o movimento aprisionado da estátua, surgindo em seguida os atletas com suas movimentações, performances artísticas e com a aclamada passagem da tocha olímpica até o estádio para a cerimônia de abertura.

Fotografias 19 e 20: Deuses gregos

As imagens se abrem e se dissolvem, num ritmo suave e ondulado, em tons claro e escuros, em direções e sequências que, num contínuo temporal, vão ganhando forma expressiva para se transformar a dramaturgia em uma projeção do real em vida.

Fotografias 23 e 24: Performance e passagem da tocha olímpica Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 3 (1938)

Fotografias 21 e 22: Discóbulo vivificando Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 2 (1938)

Com uma rica produção de imagens, sons e movimentos, “Olympia” retira do real as expressões e as técnicas realizadas pelos atletas para fazer aparecer à expressiva e potente força da competição, da beleza dos corpos e do ideal olímpico. Como afirma Almeida (2006, p. 83), a interação das cenas à sintaxe da edição exibe neste filme um “conjunto de partes em movimento que, em ideologia técnica e estética, visual e sonora, conduz e imerge o espectador, ao longo da projeção do filme, na ‘ideia olímpica’, ao mesmo tempo em que trabalha sua memória e a refaz”.

A referida produção apresenta os interesses políticos e econômicos de corporações dentro do esporte, e o uso dele para sacramentar a ideia de corpo como perfeição, como o triunfo de um regime e de uma ideologia. Mas em meio a tudo isso, também se mostra como vagaroso deleite de atletas masculinos e femininos desnudos e de uma plasticidade gestual e expressiva que falam através do silêncio dos corpos em movimento, remetendo-nos a uma colocação no filme a um só tempo ideológica e estética, assim como assegura Melo (2005, p. 58):

Esse filme, um dos mais polêmicos da história do cinema, já despertou debates das mais diversas naturezas, indo desde a questão política do envolvimento de cinema e esporte com determinados regimes totalitários, passando pelas questões éticas do papel dos cineastas no forjar de representações sociais, chegando também às questões estéticas, pois Leni teve de criar mecanismos técnicos para permitir capturar em toda a plenitude os gestos esportivos, bem como inovou nas tomadas de planos inusitados.

As imagens seduzem o olhar, que parece vagar com as lentes da câmera e pousar no estádio, como se estivéssemos vendo junto com ela. O atleta se torna perceptível e sua móvel forma de ser aparece por meio da expressão da dor, do cansaço, da alegria, dos exercícios ritmados, do equilíbrio do corpo, dos recordes alcançados, das técnicas gestuais e do fluxo vertiginoso da competição.

Tal vertigem pode ser vista no atletismo, quando Jesse Owens, americano e negro, conquistou quatro medalhas de ouro (provas de 100m, 200m, 4x100m e no salto em distância), além de quebrar dois recordes mundiais na competição. Em um

Documentos relacionados