NATAL/RN 2014
LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA
Esporte
como experiência
estética e educativa:
u ma abordagem
fenomenológica
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CIDNCIA E TECNOLOGIA
ESTRATÉGIAS DO PENSAMENTO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
LIEGE MONIQUE FILGUEIRAS DA SILVA
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Silva, Liege Monique Filgueiras da.
EsForte como exFeriência estética e educativa: uma abordagem fenomenológica/ Liege Monique Filgueiras da Silva. - Natal, RN, 2014.
189 f. : il.
Orientadora: Profa. Dra. Karenine de Oliveira PorFino.
Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais AFlicadas. Programa de Pós-graduação em Educação.
1. EsForte – Tese. 2. Educação física - Tese. 3. Estética – Tese. 4. CorFo – Tese. I. PorFino, Karenine de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
Esporte como experiência estética e educativa:
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
uma abordagem fenomenológica
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.
Aprovado em: _____ / _____ / _____
BANCA EXAMNNADORA
___________________________________________________
Dra. Karenine de Oliveira Porpino – UFRN (Presidente da banca)
_______________________________________________________ Dra. Terezinha Petrucia da Nóbrega – UFRN (Examinadora interna)
_______________________________________________________ Dr. José Pereira de Melo – UFRN (Examinador interno)
_______________________________________________________ Dr. Iraquitan de Oliveira Caminha – UFBP (Examinador externo)
_______________________________________________________ Dr. Edilson Fernandes de Souza – UFPE (Examinador externo)
_______________________________________________________ Dr. Eduardo Anibal Pellejero - UFRN (Suplente interno)
Ao quebrar o silêncio a linguagem realiza o que o silêncio pretendia e não conseguiu obter.
Embora a elaboração de uma tese seja, pela sua finalidade acadêmica, um trabalho autoral, esta escrita está longe de ser o resultado de uma atividade individual. Certamente, ela se concretizou com a colaboração de inúmeras pessoas, que, de modos diferentes, foram importantes para que eu conseguisse chegar até aqui. E, por essa razão, desejo expressar os meus sinceros agradecimentos:
A Deus, por me amparar nos momentos difíceis, por me mostrar os caminhos nas horas incertas e por me haver proporcionado a felicidade de encarar com coragem e determinação a concretizaçãodeste sonho.
A painho, Luiz Silva, homem valente que nos últimos anos lutou pela vida. Obrigada por todo investimento e toda dedicação que, em sua capacidade de amor maior, proveu a mim o seu melhor. Viva muito que nossa estrada é longa. À mainha, Rosário Sena, sua valentia em não desistir dos seus sonhos e audácia diante da vida são exemplos para mim. Obrigada por sua alegria, sabedoria e palavras de incentivo que contagiam meu coração e iluminam meu caminhar. Eu amo vocês!
Aos meus familiares e amigos, que, entendendo minhas ausências em muitos momentos, sempre incentivaram meus estudos e a concretização desta tese. E ainda, meus filhos peludos, Romeu e Kika, por alegrarem os meus dias e me fazerem companhia quando, inevitavelmente, eu precisava estar somente com vocês.
Ao meu grande mestre e amigo, professor Flávio Tinôco, por ter me possibilitado descobrir a beleza e o prazer de jogar handebol. Às minhas parceiras de quadra, pelos momentos compartilhados, pelos confrontos e pelas alegrias. E não menos importante, a todos os clubes onde atuei, técnicos com que convivi, os torcedores dos mais diversos e a todas as adversárias, pois, mesmo sem saber, vocês marcaram a minha existência e me fizeram escrever esta tese.
Às professoras Ceiça Alves, Maria Pinto, Ana Maria, Rosinete e Dalvanir da Escola Municipal Angélica Moura e do CMEI José Carlos, pela amizade e pelo apoio inestimável na realização desta pesquisa.
mesma acreditava. Hoje, fechamos juntas um ciclo de trabalho que certamente, permanecerá aberto à amizade e às novas parcerias que daqui para a frente espero estarem abertas para nós. Amo você!
À professora Petrucia Nóbrega, pessoa que admiro pelo conhecimento, profissionalismo e generosidade em compartilhar tudo o que sabe. Obrigada por ter mudado minhas concepções e ter transformado meus objetivos profissionais ainda no início da graduação e por ter contribuindo sempre na minha formação. Certamente, você faz parte desta escrita. Aos professores Iraquitan Caminha e José Pereira, pelas desveladoras contribuições ao longo desse processo. Esta escrita também tem muito de cada um de vocês. E ainda, aos professores Edilson Costa, Eduardo Pellejero e Elaine Costa pela disponibilidade em compartilhar comigo esta escrita. Sinto-me privilegiada.
Ao Grupo ESTESIA e ao laboratório VER do Departamento de Educação Física da UFRN, na figura da professora Rosie Marie, pelo apoio nessa caminhada, pela infraestrutura, pelo acesso à leitura diversa e pela oportunidade de participar das valiosas atividades tão significativas na minha formação e tão necessárias para a elaboração desta tese. E, ainda, aos demais parceiros institucionais pelos seminários realizados na UFRN com professores Jacques Gleyse (Université de Montpellier) e Carmem Soares (UNICAMP) e na UFPB com os demais colegas e professores, os quais consistiram em uma parte muito importante do desenvolvimento desta tese. Muito Obrigada!
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em especial, ao Programa de Pós-graduação em Educação, alunos, funcionários e professores, pelo compromisso, credibilidade e seriedade na formação de mestres, doutores e pesquisadores.
À Capes, pela bolsa de estudos que possibilitou o apoio financeiro necessário para a realização desta tese.
À Andreia e a Fernando, pelo brilhante serviço profissional na revisão e arte do trabalho.
Este trabalho trata do esporte como possibilidade de vivência do sensível e defende a tese de que a prática esportiva é uma experiência estética e educativa, em que se opera o sensível pelas sensações reverberadas no corpo do atleta, na dimensão do vivido. Buscamos responder nesta pesquisa as seguintes questões: O que sensibiliza o atleta na vivência do esporte? Quais são os sentidos e os significados vividos no esporte que fazem o atleta vivenciar essa prática? Como a experiência do atleta pode ser pensada como educação? Objetivamos discutir o esporte a partir da dimensão do vivido, buscando compreender os significados conferidos à prática esportiva e à experiência estética do atleta como educação. Para traçarmos essa argumentação, o enfoque da tese é de natureza teórico-filosófica, pautada em pensamentos como os de Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss e Friedrich Schiller. Para tal, apoiamo-nos na fenomenologia do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, tendo como referência o mundo vivido do atleta e a experiência da prática esportiva como campo do sensível. Iniciamos a reflexão com a narrativa de experiências esportivas, a partir de cinco elementos estéticos: tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar no contexto esportivo, o contato com o adversário, a vitória e a derrota e o gesto técnico. Junto a isso, fizemos uma apreciação estética dos filmes “Olympia” e “Invictus”, por meio dos quais discutimos três categorias temáticas: a sensibilidade, as emoções e o paradoxo do jogo. Posteriormente, apresentamos o esporte como potencializador de uma educação sensível, manifesta nos processos corporais, do corpo em movimento. Conforme ficou evidenciado ao longo deste estudo, buscamos o alcance de uma reflexão sobre o esporte centrada no corpo do atleta como abertura ampla dos sentidos para as coisas do sensível, cujo viver estético transpõe qualquer concepção determinista, que resuma o mundo esportivo à mercantilização, à disciplinarização e ao mecanicismo. Esse entendimento aponta caminhos para a Educação Física, que, tendo como um dos conteúdos o esporte, pode permitir aos alunos o prazer de participar dos gestos construídos, coletivamente, por todos que se colocam em jogo, incorporando a capacidade do repetir, do refazer e do brincar como campo de possibilidades de uma educação que é móvel, sensível e se inscreve no corpo em movimento.
This paper deals with sport as a possibility of disclosing the sensible, and defends the idea that being a sportsperson equals living an aesthetic and educative experience in which one can interacts with the sensible by the athletic body’s reverberation of sensations in the dimension of the experienced. We try to answer, in our work, basically three questions: what moves the athlete when practicing a sport? Which are the meanings and motivations for the practice of sports? At what measure the athlete’s experience gains an educational character? Sport is debated in this work as an extension of the living, as long as it tries to understand the meanings inherent to sport itself as well as to the sportive experience as a kind of education. In support of our argument, we give a theoretic and philosophical approach to our thesis, based on thinkers like Maurice Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss and Friedrich Schiller. For this purpose, we get support on the phenomenology of the French philosopher Maurice Merleau-Ponty. Our reference is the living world of the athlete and his experience as a field of the sensible. Our point of departure is the analysis of the narratives of sport experiences, including five aesthetic elements; time and space of the body in the sports courts; the look on the sportive context; the contact with the adversary; victory and defeat; the technical gesture. Besides it, we worked out an aesthetic evaluation of the movies “Olympia” and “Invictus”, what let us discuss three thematic categories: sensibility, emotions and the play paradox. Subsequently, we point sport as an optimizer of the sensible education, present on the body’s processes, like the body in movement. It was also made clear along this paper that we tried to accomplish an analysis on sports centered in the athlete’s body as an outfit of the senses to things related to the sensible, whose aesthetic experience overpasses any deterministic conception that should sum up the sportive world to mercantilization, discipline practices and mechanicism. This approach franchises gateways to a Physical Education which, containing sports as one of its support, let pupils enjoy the pleasure of constructing common objectives, incorporating the capacity of replicating, re-making and playing as a field of possibilities offered by an education characterized as being moving, sensible and fitful to a body in movement.
El presente trabajo trata sobre el deporte como posibilidad de vivencia del sensible y defiende la tesis de que la práctica deportiva es una experiencia estética y educativa en la cual se opera lo sensible por medio de las sensaciones reverberadas en el cuerpo del atleta, en la dimensión del vivido. El estudio busca responder a las siguientes cuestiones: ¿Que cosa sensibiliza el atleta en la vivencia del deporte? ¿Cuáles son los sentidos y los significados vividos en el deporte que hacen los atletas tener vivencia de esas prácticas? ¿Como la experiencia del atleta puede ser pensada como educación? Discutimos sobre el deporte desde la dimensión del vivido, tratando de comprender los significados conferidos a la práctica deportiva y a la experiencia estética del atleta como educación. Para impulsar ese argumento, nuestra tesis presenta un enfoque de naturaleza teórico-filosófica, asentado en pensamientos de Merleau-Ponty, Walter Benjamin, Marcel Mauss y Friedrich Schiller. Para ello nos basamos en la fenomenología del filósofo francés Maurice Merleau-Ponty, teniendo por referencia el mundo vivido del atleta y la experiencia de la práctica deportiva como campo del sensible. Comenzamos la reflexión con la narrativa de experiencias deportivas desde cinco elementos estéticos: tiempo-espacio del cuerpo en la cuadra, la mirada en el contexto deportivo, contacto con el adversario, la victoria y la derrota, y el gesto técnico. Junto a eso hicimos una evaluación estética de los filmes “Olympia” e “Invictus”, y por medio de ella hemos discutido sobre tres categorías temáticas: la sensibilidad, las emociones y el paradojo del juego. Después presentamos el deporte como potenciador de una educación sensible, manifiesta en los procesos corporales, del cuerpo en movimiento. Como ya se ha señalado en el curso de este estudio, buscamos el alcance de una reflexión sobre el deporte centrada en el cuerpo del atleta como apertura amplia de los sentidos para las cosas del sensible cuyo vivir estético transpone cualquier concepción determinista que resuma el mundo deportivo a la mercantilización, la disciplinarización y al mecanicismo. Ese entendimiento apunta caminos para la Educación Física que, tiendo como uno de sus contenidos el deporte, pueda permitir a los estudiantes el placer de participar de los gestos construidos colectivamente por todos que se ubican en juego, incorporando la capacidad del repetir, del rehacer y del jugar como campo de posibilidades de una educación que es mueble, sensible y se inscribe en el cuerpo en movimiento.
Palabras-claves: Deporte. Educación. Cuerpo. Estética.
Fotografia 01 – Infinidade de lembranças
Fonte: Arquivo da autora, 1998 --- 37
Fotografia 02 – Tempo-espaço do corpo
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 42
Fotografia 03 – O olhar que habita o jogo
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 50
Fotografia 04 – Contato com as adversárias
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 62
Fotografia 05 – O peso da derrota
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 71
Fotografia 06 – Pan-americano 2001
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 72
Fotografia 07 – A leveza da vitória
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 73
Fotografia 08 – Gesto técnico do arremesso
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 82
Fotografia 09 - Expressões do arremesso
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 83
Fotografia 10 – Salto para o gol
Fonte: http://www.cbdu.org.br, 2011 --- 84
Fotografias 11 e 12 – Nelson Mandela e François Pienaar
Fotografias 15 e 16 – Equipe Sprinboks
Fonte: Invictus, Cena 22, 2009 --- 101
Fotografias 17 e 18 – Capitão Pienaar incentivando sua equipe
Fonte: Invictus, Cena 24, 2009 --- 102
Fotografias 19 e 20 – Deuses gregos
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 1, 1938 --- 103
Fotografias 21 e 22 – Discóbulo vivificando
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 2, 1938 --- 104
Fotografias 23 e 24 – Performance e passagem da tocha olímpica
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 3, 1938 --- 104
Fotografias 24 e 25 – Atleta negro Jesse Owens
Fonte: Olympia. Festa do povo, cena 9, 1938 --- 106
Fotografias 26 e 27 – Provas na terra
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 5, 1938 --- 107
Fotografias 28 e 29 – Provas no ar e nas águas
Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 11, 1938 --- 108
Fotografias 30 e 31 – Lampejos de emoção
Fonte: “Olympia”, Festa do povo, cena 6, 1938 --- 108
Fotografias 32 e 33 – Espectadores brancos e negros
Fonte: “Olympia”, cena 5, 2009 --- 114
Fotografias 34 e 35 – Atuação coletiva dos esportistas e dos espectadores
Fotografias 38 e 39 – Gestos de contenção e evasão
Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 4, 1938 --- 117
Fotografias 40 e 41 – Duelo dos barcos e das luvas
Fonte: “Olympia”, Festa da beleza, cena 10, 1938 --- 118
Fotografias 42 e 43 – Atleta mobilizado pelo jogo
Fonte: “Invictus”, cena 25, 2009 --- 128
Fotografias 44 e 45 – Roupas, técnicas e equipamentos da época do filme “Olympia”
1.
Entrando em quadra
______________________________________ 15Início do jogo --- 17
Regras do jogo --- 24
2.
Primeiro tempo - a experiência do jogar
___________________ 33 Tempo-espaço do corpo em quadra --- 40O olhar no contexto esportivo --- 48
Contato com o adversário --- 56
A vitória e a derrota – leveza e peso --- 68
Gesto técnico – a potência criativa do corpo --- 79
3.
Intervalo – o jogo como devaneio
_________________________ 92 Vertigem --- 96Tensão e excitação --- 112
Paradoxo --- 126
4.
Segundo tempo – Esporte: a educação como jogo
_______ 1415.
Apito final
______________________________________________ 1686.
Equipe
__________________________________________________ 177Entrando
O homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga.
I
nício do jogo
O jogo é fundamental, já dizia Schiller (1995)1. A experiência do jogar permite ao homem uma passagem da sensação ao pensamento e do pensamento à sensação, não como limitação da sensibilidade e da razão, mas como totalidade ontológica da existência, imbricada com as coisas do nosso fazer, do pensar, do sentir e do movimentar.
Assim, como numa experiência que jamais se repete, o início do jogo e todo seu contexto transportam o atleta para um cenário no qual, diante dos seus olhos, acontecimentos da vida e do mundo se desenrolam, de forma tão intensa como se fosse a primeira vez. Um misto de sentimentos despertados pelo universo sensível do jogo, o qual alarga a sua existência, e transborda sobre a razão objetiva, uma corrente de sentidos2 que lhe insere esteticamente no mundo.
A prática esportiva envolve o atleta no mundo, sempre refazendo a vida cotidiana, como uma nova forma de existência por intermédio do “eu posso” e não de um “eu penso”. Uma unidade mente-corpo capaz de ampliar a experiência vivida numa subjetividade fundada no poder de sentir e movimentar o corpo.
Nessa perspectiva, os horizontes se abrem e o atleta, confrontando o mundo que habita, vai se constituindo por meio dos movimentos e da atuação do corpo no mundo, instaurando nesse processo uma comunicação entre o dado e o evocado. Aliado à performance que lhe é exigida, o corpo se funda em sensações, emoções e criações que vão além daquilo que é ditado pelos técnicos e pelas regras, sendo o contexto esportivo um espaço fecundo para a constituição de novas formas de sentir e habitar o mundo.
Esta pesquisa tem como foco principal a dimensão estética do esporte, tendo como referência o mundo vivido3 do atleta e a prática esportiva como campo do sensível.
1
Não se trata aqui de uma semelhança conceitual entre jogo e esporte, mas sim algumas relações que fazem com que, se o primeiro pode se transformar no segundo, o esporte também pode vir a ser um jogo, sobretudo, por meio da dimensão sensível, no fazer estético do corpo. Nessa relação, compreendemos que o esporte é apenas uma das manifestações de jogo, dentro de um contexto bastante socializado e universal.
2
Em Merleau-Ponty (2011) os sentidos se referem à capacidade do corpo sentir. Uma comunicação sensível que expande a existência e dimensiona o homem consigo mesmo e com o mundo.
3
Partimos da compreensão de que no esporte os atletas constituem uma racionalidade não determinada pelos padrões instituídos pela lógica formal, mas uma razão sensível, que se constitui na apreensão dos sentidos e na sua comunicação do corpo com o mundo esportivo.
Dessa forma, o esporte pode ser compreendido como fenômeno estético e o atleta como existência constituída pelo logos estético4, o qual é capaz de explicar as experiências do corpo, da emoção e do vivido nele.
Nessa direção, podemos refletir sobre o esporte a partir do mundo vivido do atleta, sendo possível pensá-lo como experiência estética e educativa por meio das relações que ele estabelece com o corpo na prática esportiva.
Para isso, nos apoiamos na fenomenologia do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, o qual compreende o homem a partir da experiência vivida, na sua entrega ao mundo e nas relações nele constituídas.
Afirmamos a tese de que a prática esportiva é uma experiência estética e educativa, em que se opera o sensível pelas sensações reverberadas no corpo do atleta, na dimensão do vivido. Experiência na qual o sensível é apreensão de sentidos e possuidor de significados.
Esse posicionamento implica uma perspectiva de compreensão do esporte não pelos aspectos estruturais ou pelas suas categorias explicativas, mas pelo viés do atleta, por aquele que vivencia e que se refaz em cada instante ali vivido.
Trata-se de uma compreensão fenomenológica da prática esportiva, uma experiência com técnicas e gestos próprios, configurados por uma estrutura rígida. Mas que atravessa os recônditos do corpo, criando em cada atleta um estilo próprio de jogar que educa através do sensível dos movimentos e da gestualidade.
Consideramos que o atleta não é somente um mero receptor ou simplesmente um sujeito passivo diante do mundo esportivo. Ele interfere naquele meio constantemente e o habita, e isso possibilita que ele invente e reinvente aquilo que lhe é proposto ou imposto, dando-lhe um significado a partir de sua experiência
Merleau-Ponty (2011). De acordo com esse o filósofo, o termo está relacionado ao mundo pré-objetivo do ser, ou seja, aquele que antecede à reflexão, a totalidade das percepções vividas.
4
corporal, criando um mundo próprio, no qual o esporte não é um objeto, ou seja, um mero exercício físico, um passatempo ou elemento de representação pessoal, mas uma prática existencial, em que o atleta encontra sentido.
O esporte gera sentidos que não se restringem à instrumentalização do corpo, ao consumo ou ao mercantilismo, mesmo quando envolvidos com aspectos relacionados ao rendimento, ao instrumentalismo e ao tecnicismo. Os atletas rompem a lógica determinista do esporte criando e recriando formas de existência social e pessoal para além daquilo que foi previsto ou predeterminado.
Essas ações constantes, invenção e reinvenção, partem das relações vividas no mundo esportivo e emergem no corpo, atando o atleta ao esporte através da experiência estética. O significado dessa prática não se encontra pronto, mas se constitui no movimento, de forma inacabada, sempre em composição para o esportista.
Certamente, não podemos negar algumas peculiaridades do universo esportivo, tais como as exigências técnicas, a potencialização do consumo, a instrumentalização e o trato severo com o corpo, referências importantes e que devem ser consideradas na análise das práticas esportivas5. No entanto, acreditamos que, além desses aspectos, os quais não podemos descartar, outras dimensões precisam ser levadas em consideração na análise do esporte, pois a prática esportiva também apresenta dimensões relacionadas à experiência do sensível6.
Nesse sentido, cabe ressaltar que nos apoiamos na compreensão de estética de Merleau-Ponty para a realização deste estudo, a qual se constrói na relação imanente entre sujeito e objeto, homem e mundo, entre esporte e atleta.
5
A teoria crítica do esporte, derivada da escola de Frankfurt, por exemplo, se propôs a pensar e criticar as práticas esportivas por elas mesmas, em sua estrutura interna e nas condições que faziam com que o esporte acontecesse, ou seja, na sua lógica de dominação, repressão e a alienação por ele reforçada. Esses pensamentos e essas críticas ao esporte da escola frankfurtiana influenciaram vários autores brasileiros, como Valter Bracht (2003), Alexandre Fernando Vaz (2003) e Elenor Kunz (2003), que direcionaram suas reflexões acerca do esporte pautado nas características do corpo dominado, da disciplina, da violência, da normatização, da competição exacerbada e da espetacularização.
6
Em seu pensamento, a estética não se define apenas pelo belo artístico, mas como vivência do sensível, na experiência do corpo com as coisas, com os outros e com o mundo. Logo, não há conceitos definidos ou modelos preestabelecidos, mas uma dialética entre o homem e o mundo através dos sentidos que transpassam essa relação, abarcando o corpo. Essa experiência: “nos abre para aquilo que não somos” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 156), colocando-nos em contato com o incomum, com o inesperado e com o novo, fazendo-nos adentrar em outros mundos e permitindo que essa experiência nos sensibilize e nos modifique.
Entrelaçado a isso, alarga-se a compreensão do corpo como objeto, para incluir, entre outras questões, a dimensão do sensível como realidade essencial do humano, sendo fundamental para a compreensão da ontologia do corpo proposta por Merleau-Ponty (2009) a estesia, cuja natureza é sensível, capaz de sensação7.
Quando Merleau-Ponty menciona o corpo estesiológico, refere-se ao corpo capaz de sensação, mas também de comunicação, de expressão, de criação. É o corpo que se abre para o exterior, envolvido e afetado pelos sentidos e entrega corpórea ao universo da experiência estética, impulsionada por sua relação com o mundo. Uma comunicação marcada pelos sentidos que a sensorialidade e a historicidade criam, numa síntese sempre provisória, numa expressão existencial que move um corpo humano em direção a outro, expandido a vida para novas elaborações construídas pelo mundo da experiência vivida (NÓBREGA, 2010).
Nessa relação, o homem educa e é educado, não pela sistematização do conhecimento ou pelo ensino formal, mas pela experiência sensível, construída na vivência do corpo, como na concepção fenomenológica de educação, a qual não se resume a métodos prontos, visando objetivos determinados, mas abarca o ser humano pelo universo dos sentidos, da sensibilidade e da criação.
Nessa direção, a estesia enquanto conhecimento sensível é expressa nesta pesquisa pelo atrever-se do corpo à experiência estética no esporte. O que possibilita uma reflexão capaz de conduzir ao espanto como condição de reaprender a ver a prática esportiva por meio da educação sensível, que considera a experiência vivida um educar aberto à transformação, à inovação, ao sensível.
7
Assim, referimo-nos às experiências que os atletas vivenciam no esporte como conhecimento sensível, as quais não estão separadas pelo entendimento, mas entrelaçadas na reversibilidade dos sentidos8, na dimensão estética.
Assim, o corpo do atleta, longe de remeter a qualquer fisiologismo, é de onde irão emergir os sentidos fundamentais dessa experiência, no entrelaçamento dele com o mundo esportivo. Um encontro que permite fruir sentidos, que conduzem a outros modos de existir e que admite a criação de outras linguagens gestuais e novas formas do corpo jogar, educar e se sensibilizar.
Pautamos a estética como linguagem sensível que se constitui no corpo, enquanto processo de sentido que se dá através da experiência vivida e das relações construídas no mundo. Logo, podemos compreendê-la em suas relações com o esporte, como configuração do mundo da criação e do conhecimento.
Para traçarmos essa argumentação, o enfoque da tese é de natureza teórico-filosófica, tendo Maurice Merleau-Ponty como referência para pensarmos a dimensão estética do ser atleta, bem como discutirmos os sentidos criados pela experiência vivida no âmbito das práticas esportivas.
Somando-se ao filósofo Merleau-Ponty, outros autores também deram suporte as nossas discussões, entre eles: Benjamin (1989, 2002, 2012), Mauss (2003) Elias (1992) e Schiller (1995), para afirmar o esporte como experiência estética e educativa.
Buscamos responder, no decorrer da construção da tese, as seguintes questões: O que sensibiliza o atleta na vivência do esporte? Quais são os sentidos e os significados vividos no esporte, que fazem o atleta vivenciar essa prática? Como a experiência do atleta pode ser pensada como educação?
Seguimos com o objetivo de discutir o esporte a partir da dimensão do vivido, buscando compreender os significados conferidos à prática esportiva e à experiência estética do atleta como educação.
Compreender a prática esportiva com enfoque numa educação sensível, através dos seus sentidos e das sensações que são reverberadas nele, torna-se uma reflexão importante para entender que o atleta não se restringe a determinadas
8
ações de movimento ou de pensamento, mas vive o esporte, educa e se educa ao criar e recriar movimentos, modos de fazer no jogo, de se relacionar com o outro e de posicionar-se diante do mundo. Nesse movimento, amplia a capacidade de apreensão dos gestos, das coisas e do mundo, reorganiza-se em novas sensações e acrescenta-se em novos sentidos através da experiência íntima e social do corpo.
Nesse trânsito, encontramos nos espaços acadêmicos algumas produções que se aproximam de nosso objeto de estudo, trabalhos significativos para se pensar a relação entre o esporte e a educação. Nesses espaços de produção do conhecimento, encontramos seis teses de doutorado e três dissertações de mestrado defendidas em programas de Pós-graduação na área da Educação e da Educação Física que, assim como este trabalho, discutem o esporte a partir do mundo vivido do atleta91011.
Evidenciamos, também, contribuições de estudos sobre a temática em questão, tais como as pesquisas desenvolvidas na UFRN pelos professores Allyson de Carvalho de Araújo (2006)12 e Antônio de Pádua dos Santos (2008)13 , e ainda os
9
Fizemos uma busca geral das dissertações e teses publicadas no Banco de Teses da Capes, defendidas a partir de 1987, segundo o termo “Esporte, Educação, Atleta”, sendo assinaladas “todas as palavras” como critério de busca para o assunto pesquisado. Nessa busca, considerando uma abordagem quantitativa dos dados obtidos, existem 98 dissertações e 30 teses, com a presença desse termo, no referido período. No entanto, nem todas se aproximam do nosso trabalho.
10
Dissertações de mestrado próximas ao nosso objeto de estudo: “Processo de formação e treinamento do atleta de elite no Brasil: dos jogos aos jogos”, de Lila Maria Peres Silva, dissertação defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UGF; “Pedagogia da dor: sobre o esporte, a vitória e a derrota na arena” de Luciano do Amaral Dornelles, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da ULBRA; “Técnica, dor, feminilidade: educação do corpo na ginástica rítmica”, de Patrícia Luiza Bremer Boaventura, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC.
11
Teses de doutorado próximas ao nosso objeto de estudo: Tese de Antonio de Pádua dos Santos, intitulada “Imaginário radical: trajetória esportiva de corredores de longa distância”, defendida Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN; Tese de Fátima Maria Pilotto, intitulada “Educação corporal de atletas na ginástica artística”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFRS; Tese de Gabriela Aragão Souza de Oliveira, intitulada “Trajetória de mulheres-referência no esporte nacional como atletas e gestoras”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UGF; tese de Giuliano Gomes de Assis Pimentel, intitulada “Risco, corpo e sociabilidade no voo livre”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UNICAMP; Tese de Paulo Cesar Montagner, intitulada “A formação do jovem atleta e a pedagogia da aprendizagem esportiva”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação Física da UNICAMP; Tese de Simone Meyer Sanches, intitulada “Prática esportiva e resiliência”, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação da USP.
12
Dissertação: “Um olhar estético sobre o telespetáculo esportivo: contribuições para o ensino do esporte na escola” (PPGED/UFRN).
13
artigos14 produzidos no Grupo de Estudos Corpo e Cultura de Movimento (GEPEC-UFRN), Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento (ESTESIA-UFRN) e do Laboratório de Imagens do Corpo e da Cultura de Movimento (VER-UFRN), do qual faço parte, como referências significativas para a reflexão do atleta não como um corpo dominado, mas um ser que dinamicamente escreve sua história no mundo esportivo e nele encontra um sentido existencial.
Nessa direção, percebemos que o esporte, sob ponto de vista do atleta, ainda tem sido pouco discutido nas pesquisas acadêmicas. Isto porque, a maioria desses trabalhos parte do processo de formação, da resiliência, bem como do olhar externo e explicativo do esporte, fazendo-se necessário ampliar os estudos que contemplem a experiência sensível e o sentido estético dado pelo atleta.
Seguindo esse fio condutor, buscamos aproximar os significados da prática esportiva da experiência vivida, em sua relação com a experiência estética e a educação, para falar dos aspectos que fundamentam a vivência dos atletas nesse contexto e que fazem sentido em sua existência. O sentido se faz para os atletas através da própria existência, a partir da entrega do corpo e da excitação vivida no esporte. E nesse movimento, de modo participativo, criando e recriando, vivendo e habitando de modo dinâmico esse mundo, o corpo produz conhecimento, saberes produzidos pela experiência humana no mundo vivido. Uma via dupla, na qual o sentir e o educar estão presentes na mesma existência, na dimensão sensível, tecida no entrelaçamento do corpo com o mundo, com os outros e com a cultura. Relação encarnada, de experiência, de sensação, de criação e de renovação.
Nessa direção, apresentamos elementos que contribuam para pensar a relação entre educação e esporte como uma realidade de aprofundamento sensível que os constituem, centrada no corpo e na experiência estética como modos de educar.
14
MELO, José Pereira de; NÓBREGA, Terezinha Petrucia da; Beleza e conflito em Olympia. Paidéia,
Para investigar a temntica abordada buscamos caminhos de compreensão
que não tivessem dado ou forma acabada, mas uma aproximação do vivido com o
sensível, pela dialogicidade do atleta com o mundo esportivo, sempre construindo
novas formas de habitn-lo.
Com esse intuito, apresentamos a atitude fenomenológica de Maurice
Merleau-Ponty como sendo essa referência metodológica, por acreditar que esse
viés de pensamento estn diretamente ligado ao modo como compreendemos o
fenômeno pesquisado, a saber: numa perspectiva corporal e estética associada à
educação dos sentidos.
A Fenomenologia não é um método fechado ou algo exterior, onde o
pesquisador vai buscar respostas em algum lugar ou em algum objeto. Ao contrnrio,
ela é um constante recomeçar, um movimento que parte da experiência vivida e do
mundo para se pensar o fenômeno estudado.
Trata-se de uma atitude de pensamento ancorada na vida, que visa
compreender as coisas15, colocando o conhecimento como centro das experiências vividas. Uma atitude que não propõe a explicação definitiva dos fenômenos, mas um
“chegar às coisas mesmas” pela descrição, anterior a qualquer formulação científica,
abstrata ou tradicional. O que significa considerar que, antes de qualquer realidade
objetiva, hn um indivíduo que a vivencia; antes da objetividade, hn um mundo
preestabelecido; e, antes de todo conhecimento, hn uma vida que o fundamenta.
O foco de sua atenção é centralizado no desvelamento da experiência vivida,
interrogando-a, para tentar compreender a dimensão sensível do mundo,
procurando manter o rigor. Não o da precisão numérica, mas um caminho reflexivo
sempre aberto a novos dinlogos e novos questionamentos. Para tal, ela ancora-se
na experiência vivida, penetrando na facticidade que é histórica, social e subjetiva.
Uma referência para o conhecimento revelado pelos sentidos que fundam a
existência individual e coletiva do “ser no mundo” como uma dimensão à qual ele
15
não deixa de se situar, ademais, “o homem estn no mundo e é no mundo que ele se
conhece” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 6).
Porém, esse relato do mundo, do tempo e do espaço vivido, não pretende
construir ou reconstruir o real, mas descrevê-lo a partir do campo perceptivo16. Nesse caso, nosso olhar sobre o fenômeno esportivo.
Assim, sendo a percepção uma atitude corpórea, ela sempre se faz em torno
do núcleo do sensível, pela sintonia dada no corpo, pelo seu movimento fruidor e, ao
mesmo tempo, aberto, em que perceber: “[...] se opõe a imaginar, não é julgar, é
apreender um sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo”
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 63).
Tendo como pressupostos bnsicos a noção de percepção, a relação de
imanência entre sujeito e objeto, a facticidade e as experiências vividas, a
Fenomenologia de Merleau-Ponty põe em suspensão o mundo natural, sem romper
com o seu vínculo. Para isso, recorre a três momentos, que ocorrem de forma
inseparnvel: a descrição, a redução e a compreensão.
É pertinente destacarmos o papel da percepção, da consciência e do sujeito
no ato da descrição. A descrição, como apreciação, relata o percebido na
percepção, no fundo onde esta se dn, sem fazer julgamentos ou avaliações, mas
apontando para o percebido, descrevendo o sentido e a experiência como vivida
pelo sujeito, para visualizar, de modo, compreensivo, a realidade (BICUDO, 2000).
Logo, a necessidade da redução fenomenológica como artifício para que
possamos alcançar os objetivos pretendidos, ainda que não se possa esquecer que
a maior característica da redução fenomenológica é que esta nunca é completa,
especialmente, pela relação homem-mundo. Assim, sabendo que essa familiaridade
nunca sern totalmente rompida, e que se deve sempre partir do princípio de que:
O maior ensinamento da redução é a impossibilidade da redução completa [...] Se fôssemos o espírito absoluto, a redução não seria problemntica. Mas porque, ao contrnrio, nós estamos no mundo, jn que o mesmo nossas reflexões têm lugar no fluxo temporal que elas procuram captar (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 10-11).
16
A redução põe em evidência a intencionalidade da consciência voltada para o
mundo, distanciando a realidade como a concebe o senso comum, fazendo aparecer
o que é essencial no objeto e percebendo como se produz o sentido do fenômeno,
por meio da percepção e da descrição. Sendo, portanto, uma síntese unificadora e
provisória, e não a compreensão comum que usualmente se tem.
A compreensão ampliada da intencionalidade proposta por Merleau-Ponty
(2011) se distingue da intelectualização, que se limita à natureza imutnvel. A
intencionalidade é uma relação dialética onde surge o sentido, ela torna possível o
contato da percepção com o mundo, em que a consciência se vê no mundo agindo,
realizando operações e atribuindo significado aos objetos.
Nessa direção, para transitar nos conceitos da Fenomenologia, enfatizamos
como trajeto metodológico neste trabalho a narrativa do mundo vivido e a apreciação
estética de filmes no sentido de constituir um dinlogo com destaque para as cenas
significativas a partir da ideia de complementaridade, e não de hierarquia entre a
minha experiência vivida e as produções fílmicas.
Com relação à narrativa, considero minha experiência como atleta de
handebol, cuja visibilidade nesta pesquisa pode ser dada através de fotografias de
treinos e de competições nacionais e internacionais.
Como atleta, conheci o handebol ainda na adolescência, inicialmente na
escola17. Posteriormente, as boas performances em competições regionais em nível escolar levaram-me à seleção norte-rio-grandense, que me possibilitou participar de
competições nacionais, e a partir disso, ter a oportunidade de ser atleta profissional,
contratada pelo Clube de Regatas Vasco da Gama18 e pela Seleção Brasileira de handebol19.
Com o retorno a Natal, sem filiação e desenvolvendo outras atividades, fiquei,
um pouco afastada das quadras. Mas, durante a realização desta pesquisa, com o
intuito de sentir e incorporar novamente as sensações vividas no mundo esportivo,
17
Instituto Sagrada Família, situada no município de Natal, no bairro do Alecrim.
18
Clube esportivo situado no município do Rio de Janeiro no qual permaneci, no período de 2000 a 2002, como atleta profissional de handebol.
19
retornei ao handebol a fim de reviver situações que poderiam balizar meus
pensamentos para esta escrita.
Convidada para jogar no Centro Universitnrio FACEX, em 2011, voltei a atuar
em competições nacionais, desta vez, nos Jogos Universitnrios Brasileiros (JUBs)20.
Nessa competição, dialoguei com as demais jogadoras, anotei falas, registrei
minhas impressões dinrias, fiz fotografias e fui fotografada. Essa experiência
desencadeou lembranças de fatos ocorridos em momentos anteriores vividos no
esporte. Com isso, passei a perceber a importância das situações do jogo e delimitei
minha narrativa às experiências vividas em quadra, evocadas pelas experiências
dessa competição. Parti das minhas relações construídas com os elementos que
compõem o esporte, ou seja, a quadra, os companheiros de equipe, os adversnrios,
o resultado final, as técnicas e as regras do jogo. Por meio desses elementos
surgiram os elementos estéticos como tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar no contexto esportivo, contato com o adversário, a vitória e a derrota – leveza e peso, e, gesto técnico – a potência criativa do corpo.
Inicio narrando minhas experiências em jogo, numa perspectiva existencial,
desvelando o vivido, relevando sentimentos, e, ao mesmo tempo, construindo e
reconstruindo através do meu campo perceptual da narrativa, o esporte na minha
existencialidade como experiência estética e educativa.
Benjamin (2012), filósofo alemão, tinha a experiência como centro de sua
filosofia, e a narrativa, como um acontecimento infinito, no qual é possível refletir a
experiência humana.
Para o autor, a narrativa é uma dimensão existencial do homem, pois, de
certa maneira, o ato de contar e ouvir uma experiência envolve um eu-outro-mundo,
uma relação de intersubjetividades, dada pela articulação de um passado com o
presente, apoiado por uma situação que expressa a profusão de sentidos que
constituem o ser na sua existencialidade, isso porque, segundo Benjamin (2012, p.
230), “quem escuta uma história estn em companhia do narrador; mesmo quem a lê
partilha dessa companhia” .
20
No estudo O narrador (2012) Benjamin examina as narrativas de Nikolai Leskov21 e elabora importantes reflexões sobre o ato de narrar. O autor, ao refletir alguns elementos próprios dos relatos orais presentes em certas narrativas
marcados pela violência e pelos absurdos da Primeira Guerra aponta possíveis
causas da falência da arte de narrar. Para ele, a faculdade de intercambiar
experiências começa a desaparecer com o rnpido desenvolvimento do capitalismo, o
qual foi distanciando os grupos humanos, fazendo com que as gerações e as ações
de experiência entrassem em declínio. Entretanto, afirma a importância da narrativa
exatamente por ela refletir a experiência humana, ser uma forma de comunicação, e
principalmente, manter as tradições e as conservarem.
Nesse contexto, o sentido da vida dito na narração não se encerra, mas
perpassa o tempo e se reconstrói à medida em que é narrada, aproximando os
ouvintes da experiência vivida tal como ela é, contada pelo narrador. Isto porque,
ela mantém os valores e percepções presentes na experiência narrada,
conservando e desenvolvendo o sentido da vida. Em outras palavras: “O narrador
retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros” (BENJAMIN, 2012, p. 217).
A partir do pensamento de Benjamin, compreende-se que a narrativa não se
interessa em transmitir, informar ou explicar as coisas, mas mergulha na vida do
narrador, retirando dela o vivido, o existencial, levando a experiência vivida a uma
maior amplitude. E isso supõe uma dimensão fenomenológica, ou seja, a
experiência do homem no mundo, imbuída pelas relações, afetos e valores de uma
vida que reflete e transcende o mundo em que ele estn envolvido. Mundo aberto,
não acabado, mas profundo em sentidos, como são as histórias narradas e o
homem em sua existencialidade.
Segundo o autor,
O narrador pode: recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador infunde a sua substância mais íntima também naquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contn-la inteira (BENJAMIN, 2012, p. 221).
21
Nesse pensamento corpóreo, mutnvel, narrativo e descritivo, o corpo
embala-se no ritmo daquilo quer embala-se quer conhecer, surgindo assim a compreensão em
conjunto com a interpretação:
Observa-se que a compreensão só se torna possível quando o pesquisador [...] assume o resultado da redução como um conjunto de asserções significativas para ele, pesquisador, mas que aponta para a experiência do sujeito, isto é, que aponta para a consciência que este tem do fenômeno. A esse conjunto de asserções denomina-se, aqui, unidades de significados (MARTINS, 1992, p. 60).
Desse modo, o mundo dado da consciência é sempre a intencionalidade, não
pertencendo nem ao sujeito nem ao objeto, mas como uma vinculação
homem-mundo, ou seja, um modo de pensar na constituição do objeto de conhecimento na
consciência, expresso na vida.
Para tanto, como horizonte de expressão para o estudo social do esporte,
buscamos produções cinematogrnficas que tratassem sobre o esporte no
Laboratório de Imagens do Corpo e da Cultura de Movimento (VER)22. Dentre tantas possibilidades, escolhemos os filmes “Olympia”, um documentnrio23lançado na Alemanha, em 1938; e “Invictus”, um longa metragem produzido nos Estados
Unidos, em 2009. Enfatizamos que a escolha por essas produções se deu
intencionalmente por elas traduzirem aproximações estreitas com a temntica e com
os objetivos aqui propostos.
Mesmo sendo de séculos distintos, ambos trazem contribuições relevantes
para refletirmos o fenômeno esportivo. Isto porque, sem fugir da espetacularização e
das demandas estruturais do esporte, apontam para o seu conhecimento na
perspectiva de deslocamento do ético para o estético, ancorando-se na valoração de
referências sensíveis, lúdicas e autônomas partilhada pelo vínculo e pela
experiência corporal do atleta com o mundo esportivo.
Os filmes analisados, “Olympia”, da diretora alemã Leni Riefenstahl, que
retrata os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, ocorridos em pleno regime nazista, e
“Invictus”, dirigido por Clint Eastwood, que retoma a história da equipe sul-africana
22
Laboratório instalado no Departamento de Educação Física da UFRN e é integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento (ESTESIA).
23
de rúgbi e sua chegada à final da Copa do Mundo, no ano 1995, trazem o poder
ideológico e a dimensão ontológica do corpo como perspectiva de entrelaçamento
do pessoal com o cultural, o que possibilita, na complexidade da relação corpo e
mundo, reinterrogar o vivido.
Destacamos que nossa annlise sobre os filmes encontra-se descrita nos
anexos e que, na perspectiva de termos uma visão geral películas, consideramos
em cada ficha de annlise: a técnica cinematogrnfica (argumento geral do filme, foco
narrativo, cennrio e figurino, trilha sonora, fotografia e câmera), sobre o corpo e a
cultura de movimento neles apresentados, e, ainda, as palavras-chaves
encontradas24.
Assim, realizamos uma apreciação estética das obras tendo como fator
preponderante o entrelaçamento do contexto tratado com meu mundo vivido,
destacando “cenas significativas” de cada filme nas quais fosse possível identificar
aspectos relacionados aos elementos estéticos e educativos do esporte. Assim nos
aproximamos de imagens e dinlogos da nossa intencionalidade com o fenômeno
pesquisado, no sentido de que muitos aspectos poderiam ser analisados, sendo
necessnrio se fixar naquelas que atendessem as nossas questões de pesquisa. A
partir desse processo destacamos três temas para discussão: a sensibilidade, as
emoções e o paradoxo do jogo.
É pertinente destacarmos que nos aproximamos do conceito de “cenas
significativas” desenvolvido por Bicudo (2000) em suas pesquisas, no intuito de
compreendermos o agir com rigor em pesquisas que fazem uso de filmes como um
meio de registro. O termo foi apresentado como possibilidade metodológica nas
referências de pesquisas qualitativas. O autor apresenta a cena como um recurso
metodológico que parte do pensamento de que a compreensão da mesma possibilita
vnrios sentidos possíveis. As “cenas significativas” são as unidades de significado.
Logo, elas não seguem ditames impostos, marcando um encadeamento linear dos
sujeitos, não sendo, portanto, um fragmento, mas uma possibilidade de
compreensão do fenômeno, um modo de poder revelar o sentido percebido na
experiência vivida.
24
As cenas transpõem as estruturas lineares de início, meio e fim, transitando
umas pelas outras, complementando-se, dialogando e se redefinindo por meio dos
sentidos e significações dados na apreciação estética, afinal, “[...], participar da
criação de um objeto estético é também criar a si mesmo, é poder retornar sempre a
um começo repleto de horizontes ilimitados e poder apreender a simbiose entre
vnrios fenômenos da existência” (PORPINO, 2011, p. 113).
Diante disso, os sentidos e os significados perceptíveis se definem, se
desfazem e se refazem diante dos múltiplos olhares possíveis, a partir da
experiência vivida de cada apreciador e da constante reatualização feita no
momento da apreciação.
Destarte, a experiência estética na narrativa e na apreciação fílmica se faz na
complexidade da relação entre corpo e mundo, levando em consideração a
reversibilidade dos sentidos e sua capacidade de reinterrogar o vivido.
Nessa direção, para compor esta escrita25, organizamos a seguinte estrutura textual: a introdução e a metodologia são nomeadas, respectivamente de, entrando em quadra e regras do jogo; os três capítulos são denominados de primeiro tempo, intervalo e segundo tempo, em alusão à estrutura de um jogo de handebol.
No primeiro tempo – a experiência do jogar (capítulo 1), a experiência estética
do corpo no esporte tem como referência a narrativa de minha experiência e a
linguagem corpórea como elemento sensível no mundo esportivo. Neste capítulo,
pautamos nossa reflexão a partir de alguns autores como Merleau-Ponty, Calvino e
Serres, com o intuito de pensarmos sobre o sensível, os saberes e as técnicas
corporais como dados significativos para uma educação sensível, manifesta nas
criações e aprendizagens tecidas nas experiências vividas do atleta com os
elementos esportivos.
No intervalo: o jogo como devaneio (capítulo 2), fizemos um dinlogo da prntica
esportiva com as narrativas cinematogrnficas que tematizam o esporte, a saber:
“Olympia” e “Invictus”. Assim, por meio de autores como Merleau-Ponty, Benjamin,
Elias e Mauss foi possível fazer um dinlogo epistemológico, entrelaçando os
conceitos de jogo, catarse-mimese e técnicas corporais a partir da apreciação
25
fílmica, como conhecimentos necessnrios para pensarmos o esporte no contexto
social.
No segundo tempo – Esporte: a educação como jogo (capítulo 3),
apresentamos o jogo para compreensão da prntica esportiva como experiência
estética e educativa. Tal compreensão se configura, no âmbito esportivo, por meio
do mover do corpo e das suas criações, aprendidos pelo educar do jogo. Um
aprender que imprime-se sobre o corpo do atleta e se constitui como conhecimento
aberto e sensível da experiência vivida no mundo. Encaminhamos a discussão a
partir de Schiller, Merleau-Ponty e Elias considerando o jogo estético, a
intencionalidade do movimento, o corpo como obra de arte e o papel social do
esporte, na perspectiva de pensn-lo como manifestação cultural sempre aberto à
Primeiro
Tempo
Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento rememorado é sem limites, pois é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.
Neste capítulo, o foco da discussão é a prática esportiva como potencializadora de um conhecimento sensível, que se manifesta nos processos corporais, do corpo em movimento, revelado pela sensibilidade do atleta em quadra.
Para isso, considera-se a experiência estética do corpo no esporte, tendo como referência o meu mundo vivido e a linguagem corpórea como campo da experiência sensível26 no mundo esportivo. Trago cinco elementos estéticos para essa compreensão: tempo-espaço do corpo em quadra, o olhar no contexto esportivo, contato com o adversário, a vitória e a derrota e gesto técnico, como uma forma de apresentar argumentos teóricos consistentes sobre eles, para compreender o esporte por meio de uma estética que envolve o atleta e configura a experiência educativa.
Para fundamentarmos nossa discussão, Merleau-Ponty se faz um pensador importante, por trazer o sensível como uma realidade constitutiva do homem e do conhecimento. Outros pensadores também foram utilizados, como Serres e Calvino, para podermos compreender que, a profusão dos sentidos encontrados na experiência do corpo no esporte são dimensões que lhes servem de suporte.
Para Merleau-Ponty (2011), é o sensível que afeta o homem, chega aos sentidos e recebe destaque, revelando a impossibilidade de distinção outrem, eu-mundo, sentiente e sensível, pois, conforme o autor, “uma certa maneira de ser no mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que nosso corpo retoma e assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma comunhão” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 286).
Ao centralizar sua reflexão na crítica às análises empiristas e intelectualistas que dão ao corpo à ideia de transmissor de mensagens, como um sistema físico de estímulos definidos por propriedades físico-químicas, o filósofo explica que o sensível não é definido como um efeito imediato de um estímulo exterior, em que o aparelho sensorial desempenha o papel da transmissão, mas uma condição humana modelada pelo contexto do mundo, uma via dupla – condução-codificação – que, sem separação, alude todo o corpo em sentido: “O sensível é aquilo que se
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apreende com os sentidos, mas nós sabemos agora que este com não é simplesmente instrumental, que o aparelho sensorial não é um condutor, que mesmo na periferia a impressão fisiológica se encontra envolvida em relações antes consideradas como centrais” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 32).
Na concepção de Merleau-Ponty (2011), o sensível não pode ser pensado como respostas codificadas dos órgãos dos sentidos e a sensação um estímulo físico que se esquiva. Pois os processos corporais entendidos como elementares, provenientes do corpo, e superiores, vistos como mentais, mantêm relações que não são ordenadas fisiologicamente, mas movimentos de um constante interpretar entre o objeto e o sujeito da percepção.Logo, a qualidade do sensível e as determinações do percebido imbricam-se, imprimindo certa atitude ao corpo e um engajamento dele com o mundo:
A função do organismo na recepção dos estímulos é, por assim dizer, a de "conceber" uma certa forma de excitação. Portanto, o "acontecimento psicofísico" não é mais do tipo da causalidade "mundana", o cérebro torna-se o lugar de uma "enformação" que intervém antes mesmo da etapa cortical, e que embaralha, desde a entrada do sistema nervoso, as relações entre o estímulo e o organismo. A excitação é apreendida e reorganizada por funções transversais que a fazem assemelhar-se à percepção que ela vai suscitar (MERLEAU-PONTY, 2011, p.114).
O sensível excede seu significado elementar; o sensorial isolado. Por meio da atitude corpórea o estímulo arrebata as emoções, as reações fisiológicas e todo o ser, levando o homem a um movimento de busca, de entrega, assim como ocorre entre o pintor e o quadro, um conjunto de relações, estímulos sensoriais que constitui um todo:
O pintor deve ser transpassado pelo universo e não querer transpassá-lo [...] o que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 22).
Por isso, considera-se pertinente para se pensar o fenômeno pesquisado o sujeito que percebe e dá sentido ao ser-no-mundo, como fonte significativa para refletimos a dimensão do sensível no esporte.
Convém trazer neste momento a minha experiência vivida no esporte, no seu fazer estético, no fazer e refazer do corpo, pelos quais minha vida tem significação.
Assim, no corpo sensível das experiências vividas é que, enquanto atleta reinstalo-me no cenário esportivo para embarcar na experiência estética do corpo no esporte. E, retornando à minha memória, busco expressar as palavras silenciadas e os sentidos que atravessam as múltiplas facetas e as inúmeras significações que nele subjazem.
Retomar essa experiência estética foi um meio de acessar um mundo de imagens, uma infinidade de lembranças enraizadas no corpo, uma transfiguração temporal em que, misturada pelo presente e pelo passado, fui transportada a um porvir de cores, de sons, e de acontecimentos que estão penetrados nas esferas do ontológico e na expressividade do meu ser.
Olhar minhas fotografias no esporte possibilitou reinstalar-me na experiência esportiva, revivê-la no meu corpo quando jogo, interrogando-a novamente para poder acessar elementos contidos em sua estética. Abrigado por outros corpos, pelo tecido do universo que lhe é constituído e pelo mundo esportivo, meu corpo vai se configurando por intermédio dessa experiência, uma vida e um mundo.
Ao transportar-me através dessas imagens, encontro-me aberta ao esporte e às sutilezas por ele reveladas. Um mundo atado ao meu corpo. Sentidos
Fotografia 01: Infinidade de lembranças
entrelaçados que foram impressos em minha vida. Afinal, a experiência vivida imprime sentidos e é instituída por essa relação, permitindo ao vivido uma significação no mundo.
Há um verdadeiro entrelaçamento do meu ser com o mundo esportivo, o qual se relaciona com a minha forma de compreender as coisas e de me envolver com elas. Isto porque, a compreensão é eminentemente corporal, e se dá a partir das experiências vividas, do contato do corpo, com os outros e também com o mundo (MERLEAU-PONTY, 2011).
O esporte sempre despertou meus sentidos e minhas emoções. A princípio irrefletidos, mas mesmo assim, na medida em que eu ia me envolvendo, as sensações e tudo que o envolvia criavam laços em mim cada vez mais nítidos, mais fortes e existenciais. Ao longo de dezenove anos como atleta, as sensações reverberadas, o sensível e o emocional experimentados através do esporte, são sentidos que sempre tiveram fortes significações em minha existência. Uma existência em que o esporte não aparece como um objeto distante, mas como mundo em que habito, pautado pela fluidez do movimento do esporte e da vida.
Vivenciar o esporte como atleta é poder senti-lo e compreendê-lo com um sentido singular, que se manifesta no corpo. E, para nós atletas, ele nem sempre possui o mesmo significado que o demando ou o padronizado pela mídia, pela política ou pela sociedade. Isto porque, vivê-lo é habitá-lo, descobri-lo através de suas nuances, suas formas, seus sons e suas faces, é projetar horizontes que estão ancorados no corpo e em seus movimentos, os quais se fundem, adquirindo um sentido existencial, uma abertura que: “[...] supõe que o mundo seja e permaneça horizonte, não porque minha visão o faça recuar alem dela mesma, mas porque de alguma maneira, aquele que vê pertence-lhe e esta nele instalado” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 101).
Desse modo, experienciar o handebol intensamente, em treinos, competições, viagens, vitórias, derrotas, gritos, alegrias, tristezas, dores e sacrifícios diversos, nos mistos de sentimentos e acontecimentos proporcionados por ele, tornou-o indispensável em minha vida, sendo ainda uma referência de sucesso pessoal e de formação educacional.
minhas sensações mais íntimas eram reveladas, ascendendo e reascendendo muitas vezes, o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, a ansiedade e a serenidade, a emoção e a frieza, o sorriso e o choro, num vínculo paradoxal.
Na prática esportiva os sentidos são sempre provisórios e inacabados, tendo no corpo sua abertura para o sensível. A experiência estética possibilitada pela presença corporal do atleta transpõe qualquer determinação ou definição prévia para ele, constituindo-se, portanto, em um mesmo contexto, uma experiência sempre renovada. “É a ciência do corpo humano que nos ensina, posteriormente, a distinguir nossos sentidos. A coisa vivida não é reconhecida ou construída a partir dos dados dos sentidos, mas se oferece desde o início como centro de onde estes se irradiam” (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 130).
É a partir das experiências vividas que o homem aprende sobre si e sobre seus sentidos, aprendendo, ao mesmo tempo, o mundo através deles. Os sentidos do corpo não se realizam por determinações externas entre eles, mas se faz espontaneamente entre os elementos envolvidos, quando algo é significativo, os sentidos são aguçados e a existência humana é transformada.
Pelas sensações do corpo vivo o esporte e, em seus movimentos, entrego-me ao mundo e ao universo do sensível. Essa experiência ocorre no corpo, na sua relação com o mundo e com o outro.
Na perspectiva do filósofo Merleau-Ponty (2004b), o sujeito da experiência estética é um sujeito que é corpo, que escreve sua história nele e por meio dele. Logo, faz a sua história por meio de tudo aquilo que vive e sente. O corpo que se movimenta no esporte, se refaz a cada instante, revelando, a cada experiência vivida, um novo mundo de sentidos e significados. Assim, compreendo-o como fenômeno em que a experiência estética é vivida. Em cada sensação, expressão, gesto ou comunicação vivida nele, adquiro e produzo saberes que dão sentido à minha existência. Não por representação ou por determinação, mas pela experimentação sensível do corpo, pelo movimento por vezes indeterminado, pelo gesto imprevisível e pelo fazer e refazer de cada experiência vivida.