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4. O CAMPO DE PESQUISA

4.2 O surgimento da clínica psiquiátrica

4.2.1 Experiências de reforma psiquiátrica

Antes de relatar a evolução histórica do tratamento da doença mental no Brasil que culmina com adoção da abordagem psicossocial como política pública de atendimento ao portador de sofrimento mental, vamos relatar algumas experiências de reformas psiquiátricas realizadas em outros países que exerceram muita influência sobre o processo de reforma psiquiátrica realizado no Brasil. De acordo com Amarante (1995), as experiências de reforma psiquiátrica se iniciam com propostas que visam transformar a instituição psiquiátrica; tornando-a novamente um local de cura, como a comunidade terapêutica, na Inglaterra, e a psicoterapia institucional, na França. A psiquiatria de setor, realizada na França, e a psiquiatria preventiva, nos Estados Unidos representam um nível de superação das reformas restritas ao espaço asilar, uma vez que contemplam a participação dos

familiares e da comunidade no processo terapêutico. Por fim, a antipsiquiatria, na Inglaterra e a desinstitucionalização na tradição de Franco Basaglia, na Itália, procuraram romper com a lógica manicomial.

A seguir passamos a uma descrição dessas experiências, baseando-nos em Amarante (1995) e Desviat (1999):

- Comunidade terapêutica: iniciou-se na Inglaterra, no período pós-guerra, chamando a atenção da sociedade para a realidade dos manicômios onde a situação dos internos lembrava aquela verificada nos campos de concentração, abominadas pela Europa naquele momento. Foi um processo restrito ao hospital psiquiátrico onde se procurava implementar medidas administrativas, democráticas, participativas e coletivas, objetivando uma transformação da dinâmica institucional asilar. A idéia de comunidade provém da tentativa de quebrar a estrutura hierarquizada e segregadora do hospital, possibilitando que todos, funcionários e pacientes, executassem de modo igualitário as tarefas pertinentes ao funcionamento da instituição. Além disso, Maxwell Jones, principal autor e operador desta técnica, de acordo com Amarante (1995), promove uma aproximação entre hospital psiquiátrico e sociedade ao demonstrar, na Inglaterra, a possibilidade de alguns doentes serem tratados fora do hospital. De acordo com Amarante (1995), apesar de importante, a comunidade terapêutica não atinge a questão fundamental da reforma psiquiátrica, uma vez que não discute as causas externas, não necessariamente da enfermidade mental, mas da reclusão dos doentes no asilo.

- Psicoterapia institucional: O processo que deu origem a psicoterapia institucional se iniciou na França, durante a Segunda Guerra Mundial, quando François Tosquelles assumiu a direção de um hospital psiquiátrico do interior, o Hospital Saint-Alban. Ao assumir a direção do hospital, Tosquelles encontrou os internos em condições degradantes e iniciou uma série de transformações visando o resgate do potencial terapêutico do hospital psiquiátrico. Entendia-se dessa forma que em conseqüência do mau uso das terapias e da administração e,

ainda, do descaso e das circunstâncias político-sociais, o hospital psiquiátrico desviou-se de sua finalidade precípua, tornando-se lugar de violência e repressão. Tosquelles acreditava que com os hospitais reformados, eficientes e dedicados à terapêutica, a cura da doença mental poderia ser alcançada e o doente devolvido a sociedade. A psicoterapia institucional preconizava também que a própria instituição tem características doentias que devem ser tratadas. Por isso, era necessário manter um questionamento permanente da instituição psiquiátrica enquanto espaço de segregação, do poder médico e da verticalidade das relações intra-institucionais. De acordo com Amarante (1995), a psicoterapia institucional recebeu muitas críticas em função de não questionar a função social da psiquiatria, do asilo e dos técnicos.

- Psiquiatria de setor: Ao contrário das abordagens anteriores, a psiquiatria de setor apresenta-se como um movimento de contestação da psiquiatria asilar, onde o hospital psiquiátrico corresponde a apenas uma etapa do tratamento, destinando o principal momento para a própria comunidade. Com isso, prioriza-se a assistência ao paciente em sua própria comunidade. Seu surgimento está situado historicamente na França do pós-guerra, originando-se nos setores mais críticos e progressistas da sociedade e terminando por ser adotada, a partir dos anos 60, como política oficial. Para implementar essa política ocorreu uma divisão territorial, os setores, cada um com uma população não superior a 70 mil habitantes, onde o atendimento era feito por uma equipe constituída por psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais. Além disso, foram criadas instituições que tinham por objetivo assegurar o tratamento, a prevenção e a pós-cura das doenças mentais. - A psiquiatria preventiva ou comunitária - na sua versão contemporânea, a psiquiatria preventiva nasce nos Estados Unidos, na década de 1960, no Governo de John Kennedy, e demarca um novo território para a psiquiatria: a promoção da saúde mental, sendo esta inferida como um processo de adaptação social. O projeto da psiquiatria preventiva determina

que as intervenções devem se dar no meio social de forma que se evite a formação de condutas patológicas. Nesse sentido, ao longo do tempo, o hospital psiquiátrico se tornaria desnecessário. Com o modelo preventivista instaura-se a crença de que todas as doenças mentais podem ser prevenidas, se detectadas precocemente, e que, então, “se a doença mental significa distúrbio, desvio, marginalidade, pode-se prevenir e erradicar os males da sociedade” (Amarante, 1995, p. 37) . De acordo com Amarante (1995), o modelo preventivista tem como marco teórico uma concepção linear do processo saúde/enfermidade e uma evolução ‘a-histórica’ das doenças. Com a adoção deste modelo pelos Estados Unidos, organismos sanitários internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, e países do então chamado Terceiro Mundo desenvolveram projetos inspirados no modelo preventivista. Dentre o conjunto de medidas implantado pelo projeto, estava o da desinstitucionalização psiquiátrica que visava reduzir o ingresso ou a permanência de pacientes em hospitais psiquiátricos e ampliar a oferta de serviços extra-hospitalares. Dessa forma, apesar de significar uma nova forma de controle da ordem social, o preventivismo prepara o terreno para a instauração dos vários modelos assistenciais e propostas de desinstitucionalização que norteariam a reforma psiquiátrica.

- Antipsiquiatria: surge na década de 1960, na Inglaterra, em meio aos movimentos

underground da contracultura como psicodelismo, misticismo, pacifismo e movimento hippie.

O movimento foi formado por um grupo de psiquiatras, com experiência em psiquiatria clínica e psicanálise, que formularam uma crítica radical às práticas psiquiátricas no trato com a loucura, principalmente, em relação à esquizofrenia. A antipsiquiatria critica a nosografia da doença mental que define o que é ser neurótico ou depressivo, por exemplo; denuncia a cronificação da instituição asilar e não prevê tratamento químico ou físico. Nesse sentido, propõe como terapia a valorização do discurso e do delírio do louco. “O louco é

acompanhado pelo grupo, seja através de métodos de investigação, seja pela não repressão da crise, psicodramatizada ou auxiliada com recursos de regressão” (Amarante, 1995, p. 44) - Psiquiatria democrática italiana e a tradição de Franco Basaglia: a tradição iniciada por Franco Basaglia e continuada pelo movimento da psiquiatria democrática italiana procuram rever as relações a partir das quais o saber médico funda sua práxis. O movimento Psiquiatria Democrática é um movimento político constituído, a partir de 1973, com o objetivo de construir bases sociais para a viabilização da reforma psiquiátrica na tradição basagliana em todo território italiano. A reforma psiquiátrica na perspectiva de Franco Basaglia tem início na década de 1960, no manicômio de Gorizia (Itália), através de um trabalho de humanização que se baseava no modelo de comunidade terapêutica. Com o tempo, este modelo se revelou incapaz de alterar a conexão intrínseca entre os interesses sociais mais amplos e a psiquiatria que funda uma estrutura social excludente. Dessa forma, a crítica do movimento ao modelo psiquiátrico tradicional se fundamenta em três pilares: “a ligação de dependência entre psiquiatria e justiça, a origem de classe das pessoas internadas e a não-neutralidade da ciência” (Barros41, apud Amarante, 1995, p. 48). Nesse sentido, a reforma psiquiátrica proposta por Franco Basaglia é, antes de tudo, um movimento político que denuncia a impossibilidade, historicamente construída pela modernidade, de trato com a diferença e os diferentes onde o manicômio seria uma metáfora da exclusão que se opera na sociedade. Em função disso, atribui uma centralidade às relações econômicas e sociais e valoriza o papel dos movimentos sociais A proposta de desinstitucionalização na tradição de Franco Basaglia se distingue daquela proposta pela psiquiatria preventiva nos Estados Unidos, pois não se restringe e nem se confunde com desospitalizar. A desinstitucionalização é compreendida em um sentido mais amplo e complexo “das práticas e saberes que produzem determinadas formas de perceber, entender e relacionar-se com os fenômenos sociais e

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BARROS, D. D. Jardins de Abel: desconstrução do manicômio de Trieste. São Paulo: Ed. USP/Lemos, 1994, p. 60.

históricos” (Amarante, 1995, p. 49) enquanto desospitalizar significa a extinção de organizações hospitalares e manicomiais.

Quando chegou em Trieste, em 1971, Basaglia iniciou a construção de novos espaços e formas de lidar com a loucura que exerceram grande influência sobre os idealizadores do projeto de reforma psiquiátrica brasileira como centros de saúde mental, residências assistidas e cooperativas de trabalho.