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6 INFORMAÇÃO E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

6.2 Os sentidos da loucura

6.2.2 Representações sociais sobre a loucura

A discussão a respeito das concepções de diferentes grupos sociais, não técnicos, sobre a origem e a cura das doenças tem merecido a atenção de diversos estudos como Minayo (1994); Rabelo (1994); Alves (1994); Laplantine (1991); Guedes (1981); Pereira (2003). São estudos que procuram fugir do naturalismo médico dominante que concebe a

doença circunscrita ao biológico e procuram contemplar em suas análises as representações dos atores sociais decorrentes da experiência vivida com o doente e/ou a doença. A partir da leitura desses estudos, identificamos no conjunto das entrevistas dois modelos básicos de interpretação das causas da doença mental. O primeiro, relaciona a causa da doença mental e a sua cura ao sagrado e o segundo, ao orgânico, ao biológico, sem configurar, contudo, um reflexo das concepções organicistas que tem norteado o tratamento médico oficial da doença mental. Laplantine (1991), em um clássico estudo das relações entre o indivíduo doente e a sociedade onde discute as interpretações possíveis do contínuo saúde/doença/cura, identifica duas grandes variantes possíveis de interpretação religiosa da doença: doença-maldição e doença- punição.

a)

Doença – maldição:

No modelo interpretativo da doença como maldição, esta é tida como efeito de uma vingança gratuita que ocorre por acaso, por fatalidade, por acidente e do qual nada se pode fazer. O doente ou todo o grupo vive o que lhe acontece como um escândalo e uma injustiça, considerando-se uma vítima que padece de um mal que não provocou. Portanto, ele não tem responsabilidade pelo que lhe está acontecendo. Identificamos essa representação social na fala de quase todos os informantes quando apontam para a difícil compreensão da doença, a falta de perspectiva de cura e a resignação com que precisam enfrentar a fatalidade de ter um familiar doente. Essas representações apresentam como ponto em comum a concepção de que a doença mental é considerada totalmente estranha a quem dela padece: ela é o outro por excelência. O adoecimento se dá de forma inesperada, repentina: “ela adoeceu de uma hora pela outra (....) ficou violenta ... ficou diferente daquele dia para frente e tá até hoje” (informante no. 07). A doença mental é uma fatalidade que se abateu sobre a família e com a qual a mesma é obrigada a conviver; até porque “se não interna mais, o que é que se vai

fazer?” (informante no. 02). Além disso, a doença mental ainda é muito desconhecida, o que agrava o sofrimento da família e gera muitos conflitos: “Me lembro que meu pai ficava muito nervoso com isso... com a situação dela. Nervoso e preocupado porque era uma coisa que a gente não conhecia... uma doença que eu acho que ainda é muito escondida. As pessoas, às vezes, acham que é frescura... que a pessoa está com piti(sic)... alguma coisa desse tipo” ( Informante no. 06). Alem disso, a medicina também não oferece explicações satisfatórias: “A medicina não tem uma noção assim... é por isso que ela ficou doente” (informante no. 06).

A possessão por espíritos maus é uma forma de explicar o adoecimento mental que permeia, de forma explícita ou não, a fala de informantes de diferentes credos religiosos e perfis sócio-econômicos. Nos dois casos abaixo relatados, os informantes se referem a louco ou doente mental, no geral, e não em relação aos familiares dos quais são cuidadores. O informante no. 04 explica que o louco

“transmite muita coisa na cabeça dele... às vezes até por espírito contrário... espírito mal... que atua nas pessoas. Às vezes, tem hora que a pessoa está boa, normal, tranqüila... de um momento para o outro, ele muda o comportamento. Então, eu creio.... uns pode ter tratamento com remédio... outros eu creio que só por meio de oração porque... eu acho que assim tranqüiliza o espírito...aquela força adversária que está ali, na hora que as pessoas estão orando, se afasta...” (informante no. 04).

Já o informante no. 09, que se define como evangélico, relata que quando visitava o primo em um hospital psiquiátrico, em Juiz de Fora, percebia que “tem uns [doentes] que nem é doente mental, não. É possuído do diabo, mesmo, sabe... precisa de libertação espiritual.... mas, tem uns que é doença mesmo. É aquela mistura de endemoninhado com louco... é muito triste”. A possessão por demônios é uma explicação sobre o adoecimento mental que faz parte do imaginário sobre a loucura. Observamos em Foucault (2004), por exemplo, que antes mesmo do advento da loucura como uma preocupação médica essa já recebia uma explicação religiosa.

b)

Doença – punição:

Trata-se de um modo de interpretação do adoecimento mental diametralmente oposto ao anterior. Neste caso a doença é vista como conseqüência das ações realizadas pelo próprio indivíduo ou grupo. A doença é designada como uma punição resultante da transgressão a uma lei, a prescrições religiosas ou médicas; enfim, por uma falta cometida pelo indivíduo ou grupo em relação a uma ordem social. Nesse sentido, o sentimento de culpa, por ter recebido um castigo merecido, e as noções de responsabilidade, justiça e reparação dos danos causados estão subjacentes a esta representação. Além disso, a doença - punição se situa do lado endógeno: o próprio indivíduo ou grupo é responsável pelo mal que o aflige.

Identificamos 04 informantes que compartilham dessa concepção de que a doença mental pode ser uma punição para o próprio indivíduo ou para a família. O informante no. 09 explica o adoecimento do filho da seguinte forma: “(...) a gente sempre cuidou muito, deu muita proteção... depois ele assumiu muita responsabilidade de uma vez... que era emprego, estudava, fazia seminário...e os problemas do dia-a-dia. Ficou muito estressado.... deu a primeira crise”. De acordo com o informante, ele sofreu nova crise recentemente porque “ele mesmo interrompeu o tratamento”, não obedecendo à prescrição médica de continuar tomando os remédios. A família também pode se sentir responsável pela doença, gerando sentimentos de culpa e frustração. De acordo com o relato do informante no. 06, tais sentimentos foram reforçados pela postura do médico psiquiatra que atendia o seu familiar portador de sofrimento mental: “ele deu um atestado para ela ficar fora de casa... para ficar mais tempo longe... (...) Então, ficou parecendo que em outro ambiente, talvez ela melhorasse... mas não foi o que aconteceu”. Nesse sentido, a família foi levada a se ver como causadora do problema: “com a morte dele (o pai), o médico dela virou para gente e falou que o problema dela tinha acabado. Tirou todos os medicamentos dela de uma só vez”. Por fim, o

informante avalia “que durante todo esse tempo... foram acertos e erros que a gente cometeu de pensar que podia ser uma coisa e era outra ou... achar que o problema tava na gente.. a gente.... a família toda: os filhos, o marido...”.

O uso de substâncias alucinógenas ou entorpecentes como maconha, cocaína e álcool, é visto por alguns cuidadores como um dos causadores do adoecimento mental. Nesse sentido, o adoecimento mental seria um castigo a uma transgressão a lei ou a ordem. Para o informante 01, o filho adoeceu “depois que eles deram droga [álcool e maconha] para ele”. Já o informante no. 08 relata da seguinte forma o adoecimento do filho: “acabou se envolvendo com drogas [maconha e cocaína]. Depois de um susto que ele passou com um colega [quando estavam usando drogas] ele entrou em depressão profunda. Ficou uns 06 meses assim....Muito deprimido”.

c)

Concepções biológicas da loucura

Não se verificou no grupo de informantes da pesquisa a presença do discurso dominante no tratamento da doença mental que é de cunho organicista. Outras pesquisas realizadas com familiares e portadores de sofrimento mental, como Tsu & Tofolo65 apud Pereira (2003) e Pereira (2003), também apontam para a pequena penetração desse discurso. Nos sujeitos estudados para esta pesquisa se verificou em apenas um informante, cujo filho já passou por várias internações em hospitais psiquiátricos e tem cerca de 30 anos de adoecimento, a presença de uma concepção de doença mental vinculada ao biológico. No entanto, o informante não se refere, em nenhum momento, a uma questão que sempre embasou esse discurso que é a hereditariedade. Segue o relato do informante no. 05 sobre o adoecimento do filho:

65

Ele ficou doente quando ele tinha 14 anos... Ele tomou um tombo de cima da casa... e a avó dele estava lavando roupa numa bacia... aí ele caiu dentro da bacia... Aí, ele assustou muito... Aí no outro dia ele amanheceu com o rosto todo inchado. Amanheceu com o rosto inchado e eu levei ele ao médico. Ele deu problema na urina. Fiz o tratamento dele.... Aí, depois ele começou a ficar assim... com a cabeça ruim... Depois ele pegou a ficar agressivo... Aí ele continuou. A gente internava ele em Belo Horizonte... depois trazia. Internava nos hospitais aí... ele tomava a comida da gente... quando a gente tava comendo... ele pegava o prato de comida da gente e jogava tudo fora. (E) Com 14 anos é que ele começou a ficar agressivo? Ah, ficava assim... esquisito assim... depois que ele ficou com mais idade.... assim com uns 16 anos é que ele começou... aí ele começou a ficar agressivo mesmo. Ficava muito agressivo... Batia no pai dele, bateu em mim também....

Apesar do discurso do informante remeter a idéia de defeito, que está presente numa concepção organicista da doença mental, ele deixa claro que tal fato aconteceu em função de um acidente: “ele caiu dentro da bacia”. Nesse sentido, a representação social do informante parece estar vinculada às suas angústias e ao seu cotidiano sofrido: é uma pessoa de baixa renda, idosa, tem 65 anos e muitos problemas de saúde. Dessa forma, a sua explicação para o adoecimento do filho, principalmente, para os seus surtos, pode estar relacionada a uma vida de privações, inclusive, de alimentos, como demonstra o relato abaixo:

...Eu acho que isso é uma fraqueza também.... Pode ser uma fraqueza que ta ali na mente .... e não encontraram ainda um remédio para a pessoa tomar para curar aquela fraqueza... porque ele....quando ele tá assim... ele fica fraco... Leva ele para o hospital... para o Pronto Socorro, eles aplica o remédio injetável, mas aplica no soro... Então, ele toma soro lá... Ele vem mais melhor... Quer dizer que é uma fraqueza... Tem vez que ele ta muito fraco... Ele sente mesmo.Ele fala assim: Ah, eu tô fraco...Eu não agüento comer comida fraca... Ele não gosta de comer sem carne de jeito nenhum....Diz ele que é comida fraca... sem carne...Aí ele come comida só forte... quando não tem uma carne... eu frito um ovo para ele... comida forte para ele, né!... aí ele sente mais forte. Se ele comer comida fraca, ele fica fraco.

Nas minhas interações com familiares na Clínica Psicossocial, ouvi um relato que me levou a acreditar que a explicação do informante 05 talvez não seja uma exceção. Um

senhor, com cerca de 60 anos de idade, cuja esposa adoeceu há 28 anos, relatou-me o seguinte: “acho que esse negócio dela é por que ela teve muitos filhos... teve 11 filhos... a gente era pobre... não se alimentava direito... então ficou fraca e adoeceu”.

d)

Loucura não é só tristeza

Como o morango tem gosto de morango, a vida tem gosto de felicidade, escreve Comte – Sponville (1997), para ressaltar que a vida também tem um amargor essencial de cerveja. Dessa forma, o sabor, a um só tempo doce e amargo, é o próprio sabor da vida. Em outros termos, diríamos que é preciso aceitar a existência como ela é – com que o ela tem de prazer e sofrimento; de felicidade e infelicidade; e ser feliz. Essa possibilidade de felicidade, apesar da dor, dos conflitos e da dificuldade de conviver e cuidar de um portador de sofrimento mental é o que verifica Vianna (2002), em um estudo com familiares de portadores de sofrimento mental, pertencentes à Associação Franco Basaglia (AFB), em São Paulo, que defende o tratamento psicossocial. A posição contrária, onde o adoecimento mental é visto apenas como sinônimo de sofrimento e dor, é verificada, nesse mesmo estudo, na postura dos familiares pertencentes à Associação de Amigos, Familiares e Doentes Mentais do Brasil (AFDM), que defendem o tratamento dessa doença em hospitais psiquiátricos.

Nesse sentido, a representação social da doença mental como alguma coisa que pode ser também positiva foi identificada na fala do informante no. 10. Ele destaca que, às vezes, tem momentos engraçados, que aprende com o filho que é portador de sofrimento mental. Para esse informante, loucura é uma possibilidade de qualquer um: “loucura, às vezes, é o que a gente vive no dia-a-dia. Arriscando..” Além disso, “loucura é algo natural de conviver. É alegria também. Não é só tristeza, medo, não!... É alegria, também”.