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4 DESPOTENCIALIZAÇÃO DO SUJEITO E AUMENTO DE SUA

4.2 Expressabilidade, linguagem maximal e sujeito universal – o eixo motriz

4.2.1 Expressabilidade universal frente ao realismo e ao antirrealismo

Neste subtópico nossa proposta será apenas apresentar uma das teses mais fortes sustentadas pela FSE de Puntel, a saber, a tese da expressabilidade universal; entretanto, para isso, será imprescindível voltarmos rapidamente ao debate engatado, que mais se apresenta como um ‘beco sem saída’, entre o realismo e o antirrealismo. Compreender que o comprometimento com uma dessas correntes sempre desembocará em problemas atinentes ao que se pressupõe, ofertar-nos-á uma formulação mais rica – o que não significa que seja isenta de problemas – de como Puntel se posiciona de modo inovador frente ao debate.

Na monumental obra de M. Loux, Metaphysics: A contemporary introduction, consta uma passagem esclarecedora que corrobora para nossa empreitada de duas maneiras, primeiro porque o que dissemos anteriormente está de acordo com o que ele sustenta na passagem e segundo porque ela versa de modo bem específico quanto à caracterização do que seja realismo e antirrealismo; ei-la:

De acordo com uma visão tradicional, existe um mundo independente da mente sobre o qual formamos crenças e fazemos declarações; essas crenças/declarações são verdadeiras apenas no caso de corresponderem ao mundo de que tratam; e a correspondência que é a verdade é uma propriedade que pode transcender nossa capacidade de determinar se a obtemos ou não. A visão tradicional pode ser chamada de realismo (com um “R” maiúsculo). Oposto ao realismo é a visão de que o que chamamos de “o mundo”, o que chamamos de “realidade”, é constituído em parte por nossas atividades conceituais ou pelas ferramentas conceituais que empregamos em nossa investigação. Hoje em dia essa visão é chamada de anti-realismo. O anti-realismo é originalmente o produto das críticas do realismo dos séculos XVIII e XIX. No contexto da recente filosofia anglo-americana, as críticas anti-realistas do realismo se concentram em questões semânticas. 175

As alegações acerca do realismo e do antirrealismo assumidas por Loux desembocam numa relação de oposição entre uma concepção tradicional do que fora denominada metafísica, enquanto consideramos a realidade/mundo enquanto tal (enquanto independente da mente), e uma concepção mais moderna que considera que a única tematização metafísica verdadeiramente digna de nota é aquela que se ocupa com as estruturas conceituais que constituem a realidade. Loux prossegue asseverando que aqueles que endossam a última visão devem rejeitar a concepção metafísica assumida pela tradição, já que aqueles acham que é possível acessarmos um mundo que existe independentemente de nossos meios de conceituá- lo ou conhecê-lo; estes negam que isso é possível. Os antirrealistas atestam que o melhor que

175 LOUX, Michael J. Metaphysics: A contemporary introduction. New York and London: Routledge, 2006

os tradicionais metafísicos poderiam fazer é identificar e descrever as coisas à medida que são conceituadas por nós – nas palavras de Kant, tematizar como utilizamos nosso(s) esquema(s) conceitual(is) 176.

Ora, isso sugere que a oposição entre essas duas concepções está enxertada numa oposição bem mais profunda: na relação entre nosso pensamento/espírito/linguagem e o mundo/realidade ou ainda na relação entre semântica e ontologia que decorre daí 177. Endossamos provisoriamente certas objeções contra o abismo entre essas duas dimensões no tópico anterior; mas admitimos que a questão subjacente da conectibilidade entre o pensamento e o mundo é uma questão que precisamos abordar com mais ênfase 178.

Puntel considera que de certa maneira o antirrealismo resguarda alguns enunciados teóricos acertados desde que bem interpretados, como é o caso da ideia de que não é possível supor um mundo em absoluta independência de nossos esquemas conceituais, tal como o realismo o faz, e isto porque na medida em que afirmamos, por exemplo, ‘o mundo é absolutamente desconectado da esfera da conceitualidade’ já estamos articulando essa afirmação no âmbito de nossos esquemas conceituais (Cf. EeS, p. 500, 501). Assim, a pretensiosa tese que o realismo endossa parece se contradizer na medida em que é asserida. Entretanto, Puntel adverte-nos acerca dos erros da postura antirrealista, isso já foi bastante detalhado no tópico precedente. Não obstante, podemos observar que tanto realistas quanto antirrealistas se deparam com problemas de pressupostos incontornáveis, cabendo aos teóricos que lançam mão dessas concepções apenas pensar qual das duas posturas propõem mais coerência e menos problemas para as teses que visam estruturar ou articular.

Puntel pretende ir na contramão dos teóricos que compatibilizam suas teses aos pressupostos estruturadores do realismo e do antirrealismo na medida em que pretende apresentar uma posição bem singular que cinge com ambas as posturas cuja denominação, expressabilidade universal, permite-nos vislumbrar o amplo alcance da tese formulada que nos fornece uma saída para o debate e aporias geradas entre realismo e antirrealismo. Ele sustenta que

Não será possível aclarar fundamentalmente nenhuma questão referente [...] a posições como o realismo, antirrealismo etc., caso não se defenda explicitamente a seguinte tese ontológica central: o que quer que venha a ser

176

LOUX, Michael J. Metaphysics: A contemporary introduction. p. 259, 260.

177

Num significativo texto de M. Dummett há uma ideia bem interessante para entendermos o que aqui é dito, a saber, o filósofo afirma que todo externalismo semântico está comprometido com uma ontologia que defenda a existência de um mundo objetivo real, isto é o que caracterizaria um realismo semântico. Cf. DUMMETT, M.

Truth and other enigmas. Harvard University Press, 1978. p. 248.

178 Ainda nesta seção, ao defendermos a tese da expressabilidade universal, faremos uma apologia argumentativa

aquela dimensão que se costuma chamar ‘sistema’, ‘mundo (universo, ser)’ ou similar, em qualquer hipótese ela possui uma estruturalidade

(genuinamente ontológica) imanente fundamental, isto é: expressabilidade

completa. (EeS, p. 482)

A tese da expressabilidade é empregada na medida em que Puntel assume a ligação intrínseca e inabalável da semântica e da ontologia e, assim sendo, da linguagem e da realidade. Para tanto, ele sustenta que o que denominamos ‘mundo’, ‘sistema’, ‘realidade’ possuem uma condição intrínseca para ser o que são, isto é, expressáveis. Não obstante, não se poderia caracterizar uma dimensão como expressável sem se conceber a ideia de que haja algo que seja como que uma instância expressante. No sentido indicado, o que é expressável é a realidade, o mundo, o universo, o ser como tal e em seu todo; a condição expressante, então, não é senão a linguagem que não é entendida como nossa linguagem já que como nós, nossas teorias etc. são coisas puramente contingentes sem as quais a realidade existiria, como de fato, existiu (Cf. EeS, p. 482). Há para Puntel uma similaridade entre as dimensões do mundo e da esfera conceitual, e por isso mesmo, a expressabilidade é um momento estrutural tanto dos entes quanto do Ser 179 e somente engendrando essa tese podemos sair ilesos do debate sem saída travado por realistas e antirrealistas.

Para conceituar e alcançar a realidade mesma é preciso assumir que a semântica e a ontologia, enquanto teoria dos entes e do ser, situam-se numa relação de reciprocidade radical, fundamental, estrutural etc.; o que emerge dessa relação é o fato de sempre atingirmos o status ontológico da dimensão semântica e o status semântico da dimensão ontológica, isto é o mesmo que dizer que semântica e ontologia são os dois lados de uma mesma moeda ou, ainda, afirmar que é impossível cindir linguagem e realidade. Na verdade essa tentativa, conforme demonstramos, está condenada a aporias duais em seus próprios pressupostos, pois da mesma forma que é ininteligível e inaceitável a afirmação de um realista de que ‘há um mundo encapsulado em si, independente da linguagem’, também não podemos inteligir e aceitar a afirmação de um antirrealista que conclama a ideia de que ‘nossas teorias não alcançam o mundo, a realidade etc.’. Nessas duas concepções aparta-se a dimensão ontológica do mundo e a dimensão da linguagem na medida em que se concede primazia a uma delas e não se reconhece como fora demonstrado que ambas se implicam mutuamente.

A tese defendida pela FSE parece desarticular realismo e antirrealismo porque atesta que a estruturalidade ontológico-semântica é identificada como a estrutura da própria realidade, e assim, não é uma construção teórica meramente humana, ela é resultado do

próprio ‘expressar-se’ do mundo, da realidade, do universo ou do ser como tal e em seu todo. Puntel argumenta que o realismo parece inteligir algo bem especifico da realidade e “mesmo que a postura realista [metafísica] não costume ser formulada nesses termos, pode-se entendê- la no sentido de reconhecer a expressabilidade como um momento estrutural imanente, isto é, genuinamente ontológico das coisas mesmas” (EeS, p. 500). O argumento fulcral de Puntel que o justifica em relação ao que é asseverado neste subtópico é formulado por ele assim:

Expressabilidade é um momento estrutural imanente do mundo (do universo), sendo, em consequência, coextensional com ele. A fundamentação para essa assunção ou tese central consiste em que ela é pressuposta por todo e qualquer passo teórico, por menor e mais insignificante que ele seja. Caso não se assumisse de antemão que aquilo a que se refere um enunciado teórico é expressável, este simplesmente não teria nenhum sentido; ele seria completamente despropositado. A

expressabilidade ontológica universal constitui um fundamento irremovível

para todo e qualquer empreendimento teórico. Este consiste justamente em

trazer à luz a expressabilidade do mundo ou, dito de outra maneira: elevar a

expressabilidade [Ausdrückbarkeit] à condição de expressado

[Ausgedrücktheit]. (EeS, p. 501)

O modo mais acertado de compreender isso é interpretar esta alegação no sentido de reconhecer que o mundo em sua integralidade, isto é o ser como tal e em seu todo, se reveste de linguagem na medida em que se expõe a si mesmo, aqui está enraizada a compreensão que torna inteligível a existência de uma relação estrutural e mútua entre as dimensões semântico- ontológicas. Contudo, vale salientar que a linguagem que temos em vista não pode ser de modo nenhuma uma linguagem “como um produto humano puramente contingente com alcance bastante restrito” (EeS, p. 501), mas deve ser uma linguagem que possa se adequar à expressabilidade universal, podemos dizer: uma linguagem universal direcionada ontologicamente às coisas mesmas. Puntel afirma que “à expressabilidade universal deve corresponder uma linguagem igualmente universal” (EeS, p. 549). Esta temática será abordada no próximo tópico.