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instituição social que sobredetermina a sua relação com o texto.

3.1 De textos beletristas às narrativas populares

3.1.3 Fabulários

Assim como os contos de fadas, as fábulas constituem narrativas que, recolhidas do imaginário popular, foram registradas em muitos momentos da história. Quintiliano (1944), no século I da era cristã, ao tratar de Exemplos Poéticos no corpo de suas Instituições Oratórias, dedica às fábulas poéticas um parágrafo o qual intitula Fábulas Esópicas. Embora as denomine como pertencentes a Esopo – um fabulista que viveu na Grécia Antiga por volta do século VI a.C –, o retórico reconhece a origem desse gênero em Hesíodo, no fim do século VIII a.C. Desde então, as narrativas exemplares como A Cigarra e a Formiga, A

raposa e as Uvas, O Lobo e o Cordeiro vêm correndo o mundo sob várias penas.

O educador brasileiro Lourenço Filho71, numa época em que a produção literária

infantil no Brasil ainda se mostrava incipiente, assumiu na década de 20 do século passado, em substituição a Arnaldo de Oliveira Barreto, a organização da Coleção Biblioteca Infantil, da editora Melhoramentos. Durante a ocupação do cargo administrativo, lançou, juntamente com muitas obras do gênero infantil, dois livros que contam histórias sobre o fabulista grego. Em Esopo, o Contador de Histórias, o livro se inicia afirmando que “o mais famoso contador de histórias, que se conhece, viveu há mais de dois mil anos. E até hoje, em toda a parte, nas escolas e nas casas, repetem-se as interessantes e sábias histórias que êle inventou”. Já em Novas Histórias de Esopo, mostra que o contador de histórias era escravo do filósofo Xantus. Nos volumes 96 e 97 da Coleção Biblioteca Infantil, aparecem os nomes de Ofélia e Narbal Fontes72 como autores; no entanto, logo abaixo vem inscrito “Orientação do Prof.

Lourenço Filho”. Isso demonstra a preocupação do educador com a leitura e sua disseminação no país, tanto no que se refere à produção de quanto à produção sobre literatura voltada para o público infantil73.

Seguindo uma sistematização cronológica, depois da de Esopo, temos a versão mais tradicional de Jean de La Fontaine74, no século XVII, já inspirada em outros autores.

71 A respeito de Lourenço Filho, o MEC, através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais –

Inep, lançou em 2001 Por Lourenço Filho: uma biobliografia. O livro tem como objetivos, segundo seus organizadores, Carlos Monarcha e Rui Lourenço Filho, “estabelecer exaustiva e sistematicamente o conjunto da produção intelectual de Lourenço Filho [...] e servir de instrumento de pesquisa, com natureza de obra de referência, que estimule a realização de estudos compreensivos a respeito do sentido histórico, social e intelectual da obra lourenciana [...]”.

Disponível em http://www.publicacoes.inep.gov.br/arquivos/biobibliografia_v1_204.

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O casal Fontes é autor de uma vasta obra para crianças, sendo a maior parte de cunho didático (ZILBERMAN e LAJOLO, 1988).

73 A respeito da produção de Lourenço Filho nesse campo, consultar trabalho apresentado no 16º COLE:

BERTOLETTI, Estela Natalina Mantovani. Literatura Infantil Entre 1940 e 1960: A Produção de Lourenço Filho. In Anais do 16º COLE. Este trabalho é resultado de sua Tese. Ver BERTOLETTI, Estela Natalina Mantovani. A

produção de Lourenço Filho sobre e de literatura infantil e juvenil (1942-1968): fundação de uma tradição, 2006.

Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, São Paulo.

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Werner (1999), ao apontar a genealogia e os contextos históricos dos contos populares, mostra que La Fontaine, enquanto passeava pelas margens do Sena em Paris na década de 1660, encontrou um livro de autoria de Bidpai, um lendário sábio brâmane a quem foi atribuído o Panchatantra, coletânea de setenta contos compilada por volta do século VI a.C., obra que se tornou uma das fontes de inspiração para o fabulista francês compor suas próprias fábulas.

Segundo Arroyo (1990), para quem a obra “dirigia-se tanto a adultos como a crianças e trazia um pormenor muito curioso: era todo ilustrado com gravura de madeira”, provavelmente a primeira impressão das fábulas de Esopo, o Isopete Historiado, foi traduzida por um impressor alemão no ano de 1489 na Espanha a pedido do Infante Don Enrique de Aragon. Em tradução portuguesa desconhecida, aparece em Portugal com o título de Livro de Esopo ou Esopete, descoberta por J. Leite de Vasconcelos que a publicou em 1906 depois que a encontrou na Biblioteca Palatina, de Viena.

Assim como Perrault, La Fontaine é um intelectual de prestígio da França do século XVII que resgata antigas histórias na memória popular. E assim como o primeiro, que se vale de leituras de narrativas poéticas ou lendárias dos gregos e dos latinos, Fontaine se vale também de outras fontes documentais da Antiguidade: Na Grécia, com as Fábulas de

Esopo, e, em Roma, com as Fábulas de Fedro – que viveu no século I d.C. A essas fontes aliam-se também as parábolas bíblicas, as coletâneas orientais e narrativas medievais ou renascentistas.

Durante vinte e cinco anos, trabalhou na busca e no cotejo desses textos antigos e os reelaborou em versos, dando-lhes a forma definitiva literária –

Fábulas de La Fontaine – que, há séculos, vêm servindo de fonte para as

mil e uma adaptações que se espalham pelo mundo todo (COELHO, 2003, p. 22).

Com os acréscimos, cortes e todas as variantes naturais a uma obra que subsistiu através do conhecimento oral em várias tradições, as fábulas ainda contribuíram na formação de uma literatura voltada para a criança, uma vez que seus temas lúdicos, aliados a uma pedagogia moralizante, configuravam instrumentos suficientes para atrair esse público e ao mesmo tempo educar. Apresentando-se como um instrumento de educação ou de entretenimento, essas narrativas imitadas ou transformadas em diversos gêneros e materialidade, continuam atraindo adultos e crianças.

Com o projeto de criar uma literatura nacional voltada para as crianças, Monteiro Lobato reescreve as velhas histórias exemplares de Esopo e La Fontaine, criando, em 1922,

Fábulas, envolvendo a turma do Sítio do Picapau Amarelo, em que se reconhece o mérito

das narrativas curtinhas. Em Reinações de Narizinho, Pedrinho, Narizinho e Emília, transportados pelo pó de pirlimpimpim, visitam o País das Fábulas, onde se encontram com Esopo e La Fontaine a discutir as origens das fábulas. Nesse Mundo das Maravilhas, os personagens e acontecimentos das narrativas curtas convivem com as escrituras constantes do fabulista francês e as interferências da boneca Emília, que tenta mudar o rumo das histórias a ponto de salvar um burro da condenação do rei dos animais, trazendo-o para o

sítio e transformando-o em Burro Falante. Assim como La Fontaine que as utilizou como denúncia das misérias e das injustiças do Dezessete, Lobato, em sua época, igualmente as recria para mostrar às crianças, através de alegorias, as injustiças e as tiranias de que podemos ser vítimas.

No contexto de recriação das fábulas, no mundo contemporâneo Millôr Fernandes (2003) lhes dá um novo sabor de sátira e humor, de forma a refletir sobre os valores de nossa sociedade. Trabalhar o processo de reescritura de textos parece ser lugar comum na vida desse autor, já que em sua vasta produção encontram-se traduções e adaptações de clássicos estrangeiros, romances e peças teatrais, de Shakespeare, Cervantes, Molière, Aristófanes, Sófocles, Racine, entre outros, bem como de obras nacionais, a exemplo da recriação de "Memórias de um sargento de milícias" em peça (FERNANDES, 2003), que, juntamente com a obra oitocentista de Manuel Antonio de Almeida, deram origem em 1995 a um Especial televisivo.

Para o leitor mirim específico, outra forma de leitura dessas narrativas foi transportada para o universo de um novo suporte: os quadrinhos infantis. A Turma da Mônica, criada por Maurício de Sousa na década de 1960, estreando pela Editora Continental, passando pela Editora Abril de 1970 a 1986, pela Editora Globo de 1987 a 2006, e a partir de 2007 sendo publicada pela Panini Comics, além de criar suas próprias histórias, se apropria de clássicos da literatura revitalizando-os para as Histórias em Quadrinhos. A produção dessas histórias extrapola o gênero quadrinhos, pois a Turma da Mônica já rendeu filmes e desenhos animados, conquistando leitores e expectadores não só no Brasil mas também em diversos outros países. A adaptação de Maurício para o clássico

Romeu e Julieta, de Shakespeare, por exemplo, chegou ao teatro e à televisão em 1978,

mesmo ano em que o quadrinho foi lançado pela primeira vez. Uma nova edição de Romeu

e Julieta, recriada em tom de sátira por Maurício de Sousa, será republicada este ano em

edição de luxo. Na versão da Turma da Mônica, Romeu e Julieta conta a história do amor impossível e muito divertido de Romeu Montéquio Cebolinha e Julieta Monicapuleto.

Dessa maneira, Maurício de Sousa, extrapolando o drama em que a história de Shakespeare foi criada originalmente, ou se apropriando de narrações de outros autores, alcança outras produções midiáticas quando se utiliza das personagens da Turma da Mônica, herança do estilo lobatiano, para protagonizar, citando, parafraseando ou parodiando essas histórias, como é o caso dos almanaques Mônica fábulas, Cascão fábulas e Magali fábula. O quadrinista brasileiro também se vale dos contos de fadas, como fez com “Mônica em Chapeuzinho Vermelho”75, em que suas personagens participam, muitas vezes,

como protagonistas dessas narrativas universalmente conhecidas. As produções de

75

Maurício de Sousa demonstram que é possível retomar esses velhos clássicos através de novos suportes, valendo-se, inclusive, da apropriação do desenho para atrair o público infantil, artífício igualmente seguido por Chico Buarque em Chapeuzinho Amarelo, que teve sua história ilustrada por Ziraldo. Assim, percebe-se nas releituras que não somente a história é retomada mas também boa parte do recurso gráfico utilizado em edições de Perrault e Grimm.