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A indestrutibilidade do texto, supondo que seja atingida, não significa que devam ser destruídos os suportes particulares, historicamente sucessivos, através dos

5.1 Do mercado editorial

Não seria possível examinar-se o panorama das adaptações no Brasil sem que se voltasse a atenção para quem as produziu e as fez circular entre os leitores. Desde o surgimento da atividade editorial em nosso país, oficialmente implantada em 1808, com a imprensa Régia, as reescrituras de obras estrangeiras são produzidas em terras brasileiras, e os editores, naturalmente, não ficaram inertes ao novo filão mercadológico, estimulado, inclusive, no entre-séculos, por uma nova categorização profissional que aqui se formava: o de escritor voltado para o corpo discente das escolas reivindicadas como necessárias à consolidação do projeto de um Brasil moderno (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985). Segundo Marisa Lajolo, o surgimento de livros para crianças, ocorrido entre os séculos XIX e XX, foi tardio no Brasil, o que significa um atraso de pelo menos duzentos anos em relação à Europa. Para a autora,

nesse período de formação de nossa literatura infantil se definem os canais que, em nosso país, agilizam a circulação e o consumo da literatura destinada a crianças. Um deles é o Estado Todo Poderoso. Se não o Criador do Céu e da Terra, pelo menos o Distribuidor de Livros e Agenciador de Leitores. Outro é a Escola. E quando a Escola escapa do Estado ao qual serve e do qual é um aparelho ideológico, cai nas malhas da indústria editorial. O equilíbrio é mais do que precário; quer como instrumento do Estado, quer como instrumento do Capital, a escola é entreposto compulsório do livro infantil brasileiro que quiser abandonar a poeira das estantes e chegar às mãos dos leitores (LAJOLO, 1996, p. 44). As formas de mecenato da literatura que outrora vigoravam, presidindo as relações do escritor com seu patrocinador, passaram por uma mudança cultural no modo de sua

produção. Com o complexo estado capitalista em que o país se firmava no século XX, apoiado pela livre iniciativa, os setores que produziam bens culturais se diversificaram e se fortaleceram no mercado consumidor de livros. As editoras, nos anos 50, durante o governo de Juscelino Kubitschek, encontrando as primeiras providências que favorecem a produção nacional de livros, como a redução e isenção de taxas para a importação do papel, acabam modernizando a indústria e o comércio livreiros. Somados a tais incentivos, encontram-se os investimentos governamentais no que concerne ao patrocínio, verbas destinadas a compras de livros a fim de atender aos programas de leitura, fortalecendo, dessa forma, esse mercado. A produção literária brasileira, mesmo se constituindo de iniciativa privada, manteve-se ligada a instituições ou órgãos do Estado, que legitimavam seu acervo à medida que o fazia circular no universo escolar. A respeito da literatura que circula nesse universo, Lajolo e Zilberman (1988, p.11) afirmam que, dada à especificidade dos textos literários infantis, aos quais estenderíamos também os juvenis, “sua articulação social impõe-se de maneira ostensiva, na medida em que sua produção e circulação costuma ser mediada por uma das instituições que com maior nitidez incorpora e reproduz a estrutura social de uma certa formação histórica: a escola”. Assim, as editoras se beneficiando das políticas públicas, e, dentro de uma concepção bem mais moderna de política cultural cada vez mais facilitada pelas novas técnicas da indústria do livro, dirigem e divulgam seu acervo diretamente nas escolas, onde se encontram seus maiores consumidores.

Considerando a perspectiva desta pesquisa, voltada para a relação histórica entre adaptação, leitura e escola, observa-se esta instituição como responsável pela prática de leitura por meio de reescrituras e intervenção editorial de clássicos literários, o que a torna uma prática legítima. Em vista disso, assim como o Estado brasileiro, em seu ordenamento político educacional, a indústria editorial promove campanhas ou cria projetos de incentivo à leitura, ao promover uma maior produção e extensa circulação de livros, criando um público cada vez mais amplo de leitores. Nessa perspectiva, ambos os segmentos apostam no crescimento e difusão da leitura, incluindo na escolha o corpus de obras pertencentes ao cânone. Por razões diferentes, tanto um quanto outro funcionam como instâncias de poder que determinam os textos veiculados no mercado editorial, servindo como mediadores na aquisição e utilização desse bem cultural. No que se refere às adaptações, parece haver uma espécie de concordância silenciosa entre a escola e as editoras sobre a escolha das mesmas obras, dos mesmos títulos, se levarmos em conta a lista homogênea de livros que aparecem nos catálogos anualmente, encarregados de divulgar e fazer circular os livros no universo escolar.

O mercado editorial constitui as condições sociais de produção e de circulação dos produtos até o consumidor. Por outro lado, dentro da instância educacional, é a escola, através de convenções e códigos atribuídos à leitura “legítima”, mediada pelo discurso da

academia, dos documentos oficiais e do próprio marketing das editoras, que impõe a legitimação do discurso dos livros autorizados. Se o mercado se encontra no campo do domínio dos instrumentos de bem cultural, a escola, ao absorver o produto, acaba ratificando as escolhas. Na relação entre mercado/capital e escola, existem tensões, naturalmente, porque há, no intercâmbio de circulação de mercadoria e de sua validação, uma relação de poder e autoridade, de força econômica e cultural. As tensões, no entanto, não param aí. Na destinação final da mercadoria, está o consumidor – o leitor, que não se isenta dessa relação, pois, embora se reconheça que o leitor escolar não possua tamanha liberdade de escolha das leituras, ficando à mercê dessa instituição e da indústria livresca, ainda lhe compete a decisão da permanência ou não das escolhas no campo da leitura e das formas materiais literárias. De qualquer forma, esta razão influencia o mercado no momento em que se publicam textos voltados para uma comunidade de leitor especificada.

O crítico Fernando Azevedo, no seu artigo A formação e a conquista do público

infantil (In: LAJOLO e ZILBERMAN, 1988), afirma que ainda que consideremos que são os

pais, parentes ou amigos, as escolas ou o Estado que “escolhem” e compram os livros por esses leitores, ou seja, mesmo postas tais leituras pelas mãos dos adultos ou das instituições, são estes [os leitores] que

“consagram” ou desaprovam os livros, interessando-se por eles ou rejeitando-os, mas esse “peneiramento” pelas crianças, não se faz senão entre livros já previamente escolhidos pelo julgamento dos adultos, conforme a “sua” razão, isto é, as suas concepções de vida, suas idéias e seus sentimentos (LAJOLO e ZILBERMAN, 1988, p. 334-341).

Posição semelhante é compartilhada por Jerônymo Monteiro, em um artigo intitulado

Leituras para menores (In LAJOLO e ZILBERMAN, 1988, p. 320-321)129, fazendo referência à

literatura ideal para as nossas crianças, quando afirma: “nós sabemos algumas coisas, mas as crianças sabem positivamente o que querem e o de que mais gostam”. Nesse esteio, é válida ainda a opinião de Candido (In LAJOLO e ZILBERMAN, 1988, p. 329)130 que afirma ser

a história para crianças talvez o mais difícil de todos os gêneros literários porque é um “gênero ambíguo, em que o escritor é forçado a ter dois planos: que precisa ser bem escrito e simples, mas ao mesmo tempo bastante poético para satisfazer um público mergulhado nas visões intuitivas e simplificadoras.” O crítico segue afirmando que “as histórias que apelam para a nossa imaginação agem sobre nós como as que encantam as crianças de tal forma que se nem todo livro de adulto serve para menino, todo livro de criança serve para adulto” (IBID, IBIDEM).

129

Artigo publicado originalmente em O Estado de São Paulo, no ano de 1941.

130 Trata-se do artigo de Antonio Candido “Sílvia Pélica na Liberdade” para o livro homônimo de Alfredo Mesquita,

De Candido (2000) cabe ainda acrescentar a tríade autor, obra, público sobre a qual, segundo ele, se apoia o sistema literário, e são elementos indissoluvelmente ligados à produção. Do crítico, tomamos por aproximação a tríade mercado-escola-leitor, em que a escola representa um elo fundamental dessa cadeia. Não se pode ignorar que os mecanismos formadores dessa tríade não funcionam isoladamente nem hegemonicamente, pois há nessa relação agentes que produzem, que legitimam e que apreciam os produtos culturais. Assim, por mais que o mercado tente assegurar os lucros e a escola tente homogeneizar os leitores, determinando as formas e a leituras “adequadas”, existe também grande possibilidade de o leitor não ler o que lhe é imposto, o que significa que esses têm o poder de acatar ou rejeitar os produtos. Afinal, eles apresentam conhecimentos desiguais, e, mesmo os que se nivelam no conhecimento, fazem uso diferente das leituras em materialidade e sentido. A esse respeito, Chartier (1999a, p. 8), ao mesmo tempo que afirma que o “livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem no interior da qual ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu a sua publicação”, destaca os artifícios de que lançam mão os leitores para se confrontarem com todo o conjunto de regras conferido por editores, livreiros, autores, censores, entre outros.

Não adentraremos nas questões relacionadas ao funcionamento das editoras ou a respeito do monopólio ou de privilégios concedidos pelo Governo que faz compras milionárias de livros. Ainda que se trate, também, de um sistema corporativista político reforçado, inclusive, pelo Estado, esse mecanismo de natureza político-econômica extrapola nossas discussões acerca do assunto. Dessa forma, julgar o poder coercitivo do mercado livresco ou o que ele e a escola (às vezes, de maneira avessa) instituem como modelo único, é postular uma igualdade generalizada entre ambos e, ao mesmo tempo, reduzir a variedade e a diferença de/entre leitores, ignorando os efeitos neles provocados pelas formas materiais. As adaptações, nesse sentido, implicam outras formas de se ler, estabelecendo sentido entre texto e leitor em virtude de sua materialidade, possível pela nova produção cultural, pela reescritura. Tal fato corrobora a posição defendida por Chartier, que perpassa na maioria de suas obras, ao tratar das práticas de leitura, dos livros e dos materiais impressos, de que o texto não atua sobre o leitor por si só, mas através de uma materialidade que contribui no processo de construção de sentido do leitor.

Capital, preço, lucro e mercado são palavras de ordem na indústria mercadológica editorial. Não podemos ignorar o princípio de que o livro é uma mercadoria industrializada como as demais produzidas para a formação cultural, em outros suportes, como as artes plásticas, o teatro, o cinema, a música e as novas tecnologias da mídia. O julgamento absoluto de que por esses meios veiculem textos cujo julgamento lhes atribua a

classificação de boa ou má cultura pode estar associada ao epíteto mais característico da indústria cultural, de que tudo o que se produz não é boa leitura.

No século XIX, José de Alencar, em “Benção Paterna”, no prefácio a Sonhos d’ouro (1872), alude para o processo de inserção do escritor ao sistema de produção industrial, quando se defende da acusação de seus textos serem fruto da “musa indústria do Brasil”: “não faltará quem te acuse de filho de certa musa industrial, que nesse dizer tão novo, por aí anda a fabricar romances e dramas aos feixes”. Revelando a relação entre o escritor e o inevitável aparato industrial, “Alencar foi o escritor que, dentre os de sua geração, mais dividendos recebeu na qualidade de remuneração pelo trabalho intelectual” (ZILBERMAN, 2007, p. 7). Segundo a autora, as menções à leitura ou às reações da audiência mediadas pela alusão a dinheiro, salário, remuneração, profissionalização e comercialização são questões pertinentes à História da Leitura.

a pesquisa dos modos de leitura e de recepção da literatura, desde a perspectiva como os próprios artistas representam a questão, recupera a materialidade do processo literário. De uma parte, incide na reflexão sobre o funcionamento do sistema, enquanto organismo que inclui diferentes sujeitos responsabilizando-se, cada um, por uma tarefa específica que, combinada, movimenta a engrenagem da literatura. De outra, desvela os mecanismos de criação literária, enquanto resposta às possibilidades de acolhida do público e integração com o mercado tanto produtor, quanto consumidor (ZILBERMAN, 2007, p. 10).

A visão romântica da arte literária distanciada das questões atinentes ao mundo social e econômico deixou há tempos de vigorar. A republicação sob forma de livro dos romances de folhetim, em sua maioria formados por traduções, tão divulgados nos jornais no século XIX no Brasil, constituía também uma estratégia para o comércio editorial, prática bastante comum entre os franceses e imitada pelas editoras brasileiras. E isso evidenciava, naturalmente, propósitos comerciais. A aspiração de viver da própria pena pode ainda ser vista em Rousseau, mesmo numa época em que o sistema de mecenato ainda se firmava. Visando reivindicar privilégio econômico da escrita de La Nouvelle Héloïse, o iluminista francês vendeu a obra várias vezes, “uma vez sob pretexto de que se tratava de uma adaptação para a censura francesa, uma outra porque lhe adicionou um prefácio. Para ele, era a única maneira de poder rentabilizar um pouco a escrita”. (CHARTIER, 1999, p. 65).

No começo do século passado, Monteiro Lobato já se dava conta não somente da necessidade de ampliar o mercado de livro no Brasil mas de ampliar os pontos de venda do produto, o que configura esse bem cultural como uma mercadoria como outra qualquer, conforme se registra em sua famosa carta circular:

Vossa Senhoria tem o seu negócio montado, e quanto mais coisas vender, maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada "livros"? Vossa Senhoria não precisa inteirar-se do que essa coisa é. Trata-se de um

artigo comercial como qualquer outro; batata, querosene ou bacalhau. É uma mercadoria que não precisa examinar nem saber se é boa nem vir a esta escolher. O conteúdo não interessa a V.S., e sim ao seu cliente, o qual dele tomará conhecimento através das nossas explicações nos catálogos, prefácios etc. E como V. S. receberá esse artigo em consignação, não perderá coisa alguma no que propomos. Se vender os tais "livros", terá uma comissão de 30 p.c.; se não vendê-los, no-los devolverá pelo Correio, com o porte por nossa conta. Responda se topa ou não topa (HALLEWELL, 1985, p.245)131.

Essa empreitada rendeu a Lobato uma rede de quase dois mil distribuidores espalhados pelo Brasil. Lajolo (1986) faz referência ao tratamento do escritor acerca do livro, que o toma como objeto sem aura, deixando transparecer tal concepção em muitas metáforas com que ele fala dos livros nas cartas ao fidelíssimo Rangel. Não se pode separar, pois, a produção de livros da questão mercadológica, afinal o texto se encontra entre o autor, o editor e seu destinatário. Na discussão sobre essa relação, Chartier (1999) afirma que a figura do editor hoje é a mesma fixada no século XVIII, quando foi institucionalizado o direito da propriedade literária, ou seja, “trata-se de uma profissão de natureza intelectual e comercial que visa buscar textos, encontrar autores, ligá-los ao editor, controlar o processo que vai da impressão da obra até a sua distribuição”. Encontramos no Brasil exemplos desses empreendedores intelectuais que lidaram com essa atividade. Hallewell (1985) retrata com precisão o desenvolvimento das editoras comerciais brasileiras até a década de 80 do século passado. Dentre estes se destaca a figura de Monteiro Lobato, que atuou como editor, cuja atividade se fez em igualdade com a de escritor, durante boa parte do século XX. Para Lobato (1959, p. 239), “o nosso sistema não é esperar que o leitor venha; vamos onde ele está, como o caçador. Perseguimos a caça. Fazemos o livro cair no nariz de todos os possíveis compradores desta terra”132.

A motivação econômica na indústria livresca, porém, não é sempre o único elemento necessário na produção. Aliado a esse, outros procedimentos podem influenciar a leitura de uma obra. Na produção industrial de qualquer mercadoria, é importante antever as atitudes e as expectativas dos consumidores. Na criação literária, especificamente no caso das adaptações, os adaptadores, juntamente com os ilustradores e toda a equipe de edição, re- criam a obra tendo em vista as “possibilidades de acolhida do público”, ou seja, são textos reescritos para leitores que não têm, ainda, maturidade cognitiva de leitura suficiente para se acercarem das obras integralmente. Esse setor infanto-juvenil, no movimento editorial do

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Laurence Hallewell esclarece em nota que Lobato fez pelo menos duas tentativas na redação da famosa circular. Uma apareceu na revista Leitura de setembro de 1943; a outra foi citada na biografia Monteiro Lobato,

vida e obra, de Edgard Cavalheiro, editada pela Brasiliense. Segundo o autor, ambas as cartas coincidem na

substância, mas diferem no estilo; esta versão baseia-se em ambas, mas sobretudo na última.

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país, se apresenta como um mercado consumidor numeroso e rentável, o que por si só pode imprimir a essas obras uma feição de mercadoria.

Wellershoff (1971), discorrendo sobre a relação entre literatura, mercado e indústria cultural, afirma que não gostamos de ver esses conceitos lado a lado como que denunciando uma relação suspeita. Segundo o autor, sabemos que uma obra literária é também uma mercadoria que o escritor vende ao editor, este ao livreiro, que, por sua vez, vende ao público, mas somente o assumimos como característica periférica e acidental que não atinge o seu conteúdo ideário, ou, quando o fazemos, é porque se trata da literatura trivial, diluída, então, em mercadoria. Caso contrário, evita-se fazê-lo, conforme cremos, por meio de critérios artísticos e espirituais que lhe são imanentes. Ao que parece, a reivindicação da velha ideologia cultural de que fala Wellershoff continua vigorando quatro décadas depois, conforme assinala:

Ninguém parece interessado no esclarecimento das relações porque talvez se esperem perturbações imprevistas: o escritor não deseja começar a suspeitar de seus impulsos, os leitores temem por ventura uma turvação da fruição artística. Estes vagos receios assentam no pressuposto de que a relacionação duma obra artística e espiritual com os condicionalismos sociais respectivos significa já por si um rebaixamento, limitação, talvez até um desmascarar e refutar da obra (WELLERSHOFF, 1971, p.1).

É comum a alegação de que a indústria cultural trata a literatura com banalização. Por outro lado, há os que a tratam como um objeto sagrado e intocável. Antunes e Ceccantini (2004) chamam a atenção para os extremos desse tratamento, justificando que, sob o véu do fetiche, todo clássico passa a ser alvo de qualquer adaptação, lido a todo custo, enfim, banalizado. Por outro lado, sacralizado, o “clássico” não pode ser “adulterado”, o que o transforma em objeto de descomedida veneração, e que de modo igual deve ser lido. Assim, para estes autores, no afã de se defender o “clássico”, recomendam que

é preciso estar atento para o perigo de se acabar por fetichizá-lo, reificá-lo, transformá-lo apenas numa mercadoria entre tantas outras, esvaziada de qualquer sentido humano mais profundo. O risco aí é o de se ir para um Guimarães Rosa, por exemplo, com a mesma leveza de intenções com que se escolhe uma roupa de grife ou a caneta da moda. Ou seja, a literatura, nesse caso, deixa de valer por si, para assumir apenas o valor simbólico que confere prestígio a seu “possuidor” (ANTUNES e CECCANTINI, 2004, p. 89).

Transformando em valor absoluto, em que sua leitura deve ser feita independentemente do contexto do leitor, a obra literária corre o risco de se converter em objeto sagrado, que só pode ser lido por poucos. Transvestidas de aparatos editoriais, as adaptações podem garantir a acessibilidade de uma obra para uma determinada categoria de leitor, o que não significa, necessariamente, ferir ou anular as possibilidades sonoras e os efeitos estéticos da obra. Admitindo-se que, se se perde numa adaptação parte das

possibilidades sonoras e os efeitos linguísticos do texto primeiro, ainda assim se evocam sensações, formas e atributos que são universais na transmissão de ideias numa determinada hierarquia em que tudo encontra seu lugar, porque, se o leitor deixa de adentrar no mundo dos clássicos devido à impossibilidade da leitura, perde a chance de conhecer uma narrativa que atravessou séculos e chega aos nossos dias, com certas modificações, sim, mas que, democraticamente, se oferece a ele graças aos recursos da adaptação. Afinal, será que os adaptadores não possuem quaisquer critérios ou perspectivas, exceto a produção de uma mercadoria rentável? Ou o fato de a obra literária motivar a economia na