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instituição social que sobredetermina a sua relação com o texto.

3.2 Migração de gêneros

Desde que as formas escritas se desenvolveram mantendo impressos os registros de memória da humanidade, certos modelos de textos passaram a representar o padrão das Boas Letras, Belas-Letras, designado depois Literatura – termo utilizado inapropriadamente na época, já que não diferenciava a arte literária da ciência77. Prova

disso, temos a presença de poetas e filósofos nas Instituições oratórias, de Quintiliano (1944), mostrando que as artes poéticas e retóricas faziam parte da formação dos jovens, sem distinguir o que era Literatura de qualquer outro conhecimento, conforme já foi mencionado quando se citou o modelo das fábulas utilizado pelo retórico Quintiliano para ensinar, por meio de exemplos, a arte da eloquência.

Denominados modernamente literários, alguns textos passaram por um processo de migração de gênero, atendendo a comunidades de leitores diversos. As mudanças, no entanto, vão além das variações formais do objeto, uma vez que as migrações de gênero consubstanciam forma e conteúdo. Roche (2001a), ao discorrer sobre as práticas da escrita nas cidades francesas do século XVIII, mostra que práticas de leitura distintas, cuja circulação variava – “emprestado, tomado oficialmente, dado, revendido, trocado” –, sempre existiram sob diversas formas, desde os cestos ambulantes contendo os livros da

Bibliothèque bleue bem como os pasquins, até as brochuras de toda ordem, disponíveis nos

livreiros urbanos. Essa variedade dos gêneros estendida a todos os meios sociais demonstra que é possível a convivência dessa diversidade porque a clientela de leitores é igualmente vasta, logo a difusão do impresso preenche papéis diferentes, quais sejam: divertir, instruir, moralizar.

As antigas fábulas, recolhidas da tradição oral, conforme já apontadas, foram recontadas em quadrinhos por Maurício de Souza (século XXI), recriadas por Monteiro Lobato (século XX), inspiradas nas do francês La Fontaine (século XVII), que certamente se

76 O termo “migração de gênero” é utilizado no sentido apresentado por Chartier (1999, p. 133), ao tratar de

textos transformados em livros, a exemplo dos da Bibliothèque bleue. Para ele, as migrações degênero se dão quando “determinada forma se encontra investida de características que lhe são habitualmente estranhas ou de textos que geralmente se encontram noutros locais e sob outras formas”.

77 Abreu (2003), ao discutir a concepção do termo Literatura no século XVIII, define-a como conhecimento e não

inspirou nas do latino Fedro (século I d.C) que, por sua vez, se serviu da fonte do grego Esopo (século VI a.C.). Além desses, outros textos sofreram mudanças em sua forma, a exemplo dos reconhecidos clássicos universais a Ilíada e a Odisséia, cuja composição a tradição vai determinar a Homero no século VIII a.C., embora haja quem questione sua autoria em virtude das origens nebulosas. Em livro recente, Manguel (2008) reúne um farto material acerca da trajetória dos dois poemas homéricos, no qual se conclui que a maioria dos estudiosos atribui ao bardo cego as poesias épicas.

Nada sabemos sobre Homero. Acontece o contrário com seus livros. Num sentido muito real, a Ilíada e a Odisséia nos são familiares antes de abrirmos suas primeiras páginas. Antes mesmo de começarmos a acompanhar as mudanças de humor de Aquiles ou admirar a esperteza e a coragem de Ulisses, aprendemos a presumir que, em algum lugar nessas histórias de guerra no tempo e de viagem no espaço, nos será contada a experiência de toda a luta e toda a travessia humanas. Duas de nossas metáforas mais antigas nos dizem que toda vida é uma jornada; se Ilíada e

Odisséia beberam desse conhecimento, ou se essa sabedoria foi tirada da Ilíada e Odisséia, isso, afinal, não tem importância, uma vez que um livro e

seus leitores são espelhos que refletem um ao outro infinitamente (MANGUEL, 2008, p. 8).

Numa menção à obra A Odisséia, Monteiro Lobato (1959) em correspondência a Godofredo Rangel em 03/02/1908, confessa: “Só agora, neste interregno de 50 dias que me separam do casamento, reentrado nesta calmaria absoluta de Areias, é que tive oportunidade e mood de enfrentar o incomparável Homero”. Em uma outra carta, datada de 25/02/1908, o autor, também conhecido por traduzir e adaptar muitos clássicos estrangeiros, emite opinião sobre os textos de Homero:

Este mês de fevereiro foi o meu mês de Homero. Li a Ilíada e a Odisséia. Estou recheado de formas gregas, bêbedo de beleza apolínea. [...] finda a leitura, pus-me a pensar no quanto Homero influenciou e influencia ainda hoje o pensamento ocidental. Na linguagem corrente, quanto Homero, meu Deus! “Fulano é o meu mentor”, “o teu calcanhar de Aquiles”, “astuto como Ulisses”, a “teia de Penélope”, os “encantamentos de Circe”, “entre Sila e Caribdes”.

Advindos de uma tradição oral, as histórias dos deuses e heróis greco-romanos, atribuídas a Homero, ganharam ao longo do tempo várias formas e usos, traduções, adaptações nos suportes livros, cinema, quadrinhos etc., atingindo o público leitor de diversas épocas e idades, permitindo o acesso ao texto que formou a cultura ocidental. Nesse sentido, quando as obras literárias passam por um processo de reescritura pelas sociedades que as leem, percebe-se um indicativo de que a literatura é um objeto extremamente instável. Como defende Eagleton (2003), nenhuma obra e nenhuma

avaliação atual dela pode ser simplesmente estendida a novos grupos sem que, nesse processo, sofra modificações.

O “nosso” Homero não é igual ao Homero da Idade Média, nem o “nosso” Shakespeare é igual ao dos contemporâneos desse autor. Diferentes períodos históricos construíram um Homero e um Shakespeare “diferentes”, de acordo com seus interesses e preocupações próprios, encontrando-se em seus textos elementos a serem valorizados ou desvalorizados, embora não necessariamente os mesmos (EAGLETON, 2003, p. 17).

A maneira pela qual lemos um texto difere segundo critérios além do estético. As condições sociais de produção de uma obra diferem daquela do contexto de que nos apropriamos, razão pela qual a adaptação na nossa época, valorizando certos elementos em favor de outros, pode proporcionar o “encanto eterno” da obra. Nesse esteio, Manguel (2008, p. 9) acrescenta que “ninguém possui Homero, nem o melhor de seus leitores”. Sua justificativa se pauta na afirmação de que “cada uma de nossas leituras é feita através de camadas de leituras anteriores que se acumulam sobre a página como estratos sobre uma rocha, até que mal se pode ver o texto original (se alguma vez existiu coisa tão pura)”. Assim, a ilusão de certos discursos de que a obra literária é objetiva, fixa e eterna não se sustenta.

Além disso, diferentemente da atribuição única dada ao texto integral como valor estético, em uma leitura, mesmo que literária, o leitor pode desejar adquirir conhecimentos relativos à Etimologia, Sociologia, História, ou simplesmente ter interesse na história da arte ou da moda, ou ainda tão-somente no enredo, exercitando, dessa forma, sua liberdade conferida pela leitura, fato que demonstra que o sentido atribuído à obra literária não é infalível, fixo, porque, se assim fosse, não haveria espaço para as interpretações diversas.

As obras – mesmo as maiores, ou, sobretudo, as maiores – não têm sentido estático, universal, fixo. Elas estão investidas de significações plurais e móveis, que se constroem no encontro de uma proposição com uma recepção. Os sentidos atribuídos às suas formas e aos seus motivos dependem das competências ou das expectativas dos diferentes públicos que delas se apropriam. Certamente, os criadores, os poderes ou os

experts sempre querem fixar um sentido e enunciar a interpretação correta

que deve impor limites à leitura (ou ao olhar). Todavia, a recepção também inventa, desloca e distorce. (CHARTIER, 1999, p. 9)

A posição de certos letrados que defendem a leitura de certos textos, e de textos integrais, como a única possibilidade de leitura, talvez cumpra apenas uma função social pública, quando, na verdade, os leitores impõem sua autoridade em escolher determinados gêneros, obras e autores, em selecionar partes do texto ou simplesmente em reivindicar o sentido que ele julga apresentar tal texto. Ora, se um texto em sua versão integral não se investe de significação para o seu leitor, acaba perdendo seu status de texto, porque,

conforme defende Chartier (1999, p. 11), “um texto só existe se houver um leitor para lhe dar um significado”. Para tanto, certos leitores carecem de alguns dispositivos formais que os convidem à leitura, como acontece com as adaptações.

Essa constatação se assemelha à de Bourdieu (2001a), em um debate com Chartier por ocasião de um encontro sobre leitura em Saint-Maximin, quando afirma que pensamos “que ler um texto é compreendê-lo, isto é, descobrir-lhe a chave. Quando de fato nem todos os textos são feitos para serem lidos nesse sentido". Ele ainda defende que, além da crítica dos documentos que os historiadores sabem fazer muito bem, parece necessário fazer uma crítica do estatuto social do documento. Para tanto, apresenta as seguintes indagações: “para que uso esse texto foi feito? Para ser lido como o lemos, ou então, por exemplo, como uma instrução, isto é, um escrito destinado a comunicar uma maneira de fazer, uma maneira de agir?” Dessa abordagem, ele chega à conclusão de que “há toda espécie de texto que pode passar diretamente ao estado da prática, sem que haja necessariamente mediação de uma decifração no sentido em que a entendemos”.

A esse respeito, outra posição nos é dada por Chartier no mesmo debate, quando discute que os protocolos de leitura inscritos nos textos são dispositivos indicadores de certas leituras e certos leitores. Para ilustrar tal posicionamento, ele faz a seguinte afirmação:

Um livro de 1530 não se apresenta como um de 1880 e há evoluções globais que atingem toda a produção impressa em suas regras e seus deslocamentos. Mas é certo também que nessas transformações colocam- se intenções de público ou, mais ainda, intenções de leitura. Quando um texto passa de um nível de circulação a outro, mais popular, ele sofre um certo número de transformações, das quais uma das mais claras é a fragmentação operada ao pôr-se em livro, seja no nível do capítulo, seja no nível do parágrafo, destinada a facilitar uma leitura nada virtuosística (CHARTIER, 2001a, p. 236).

Nessa perspectiva, entendemos que os textos não apresentam a mesma função para todos os leitores, posto que o consumo do livro nem sempre atende às finalidades estéticas e eruditas. Entre estas, determinadas leituras podem ser, para seus leitores, meramente utilitárias ou tão-somente prazerosas. No caso dos clássicos literários, os textos integrais concorrem, convivem com os adaptados, o que demonstra que a diversificação crescente nos gêneros, através do suporte, amplia as práticas de leitura. O importante é que a história da posse do impresso acompanha maneiras as quais individualizam o leitor, que parece se negar à vontade dos que pretendem imortalizar uma única forma de ler.

Machado (2002, p. 11), em justificativa acerca da leitura dos clássicos universais desde cedo, defende que hoje em dia, em virtude de o ensino ser diferente e o mundo ser outro, “não se concebe que as crianças sejam postas a estudar latim e grego, ou a ler

pesadas versões completas e originais de livros antigos – como já foi de praxe em várias famílias de algumas sociedades há um século”. Nessa perspectiva, voltando às obras de Homero, independente das questões relativas às origens incertas das obras do rapsodo, das quais podemos questionar a noção de texto original dado a Homero, suas obras sobreviveram, quer tenhamos lido ou não o Homero em verso integral. Da repetição dos cantos de memória recitados oralmente por ele, ou anotados para a posteridade por outros, impressos em versos hesâmetros distribuídos em 24 cantos, as epopeias ganharam estruturas em prosa, e suas edições modernas ganham até hoje considerável espaço no mercado editorial. Machado ainda acrescenta que, no Brasil, “estamos muito bem servidos em matéria de adaptações da mitologia grega ao alcance das crianças”. Para tanto, cita a genialidade de Monteiro Lobato, responsável por instituir uma via de mão dupla entre o Sítio de Dona Benta e a Grécia e Roma Antiga, com as obras Reinações de Narizinho, O Sítio do

Picapau Amarelo, O Minotauro e Os Doze trabalhos de Hércules, em que se registra a

circulação entre os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo e os seres mitológicos greco- romanos, que tanto são visitados como visitam o Mundo das Maravilhas, transportados pelo pó mágico.

A leitura desses livros é divertidíssima e, ao mesmo tempo, funciona como um verdadeiro curso de mitologia clássica na intimidade. Sem dúvida, é uma excelente introdução a esse mundo que formou toda a cultura ocidental. E tudo bem explicadinho, daquele jeito que Dona Benta usava para ensinar aos netos. Sorte das crianças brasileiras. Impossível imaginar melhor forma de se aproximar dos gregos (e dos troianos, que com eles travaram longa e famosa guerra) ou dos romanos (MACHADO, 2002, p. 28). A autora, uma das mais importantes adaptadoras de clássicos literários no Brasil, apresenta outras maneiras e muitos textos no mercado brasileiro para se ter os primeiros contatos com esses textos. Para tanto, menciona algumas adaptações nacionais – “versões condensadas e resumidas” – que tratam de temas e episódios ligados à Ilíada e Odisséia. Ela ainda igualmente assegura tal influência em nossa sociedade contemporânea quando apresenta inúmeras referências de nossa linguagem aos antigos mitos greco-romanos:

Se alguém recebe um presente de grego, isso é uma lembrança da guerra de Tróia. Se lança o pomo da discórdia, também é. Cada referência dessas remonta a toda uma história. Falamos em ouvir o canto da sereia, em narcisismo, em complexo de Édipo, em caixa de Pandora, em calcanhar de Aquiles [...] Dizemos que alguma coisa é uma verdadeira odisséia, que alguém está fazendo um esforço hercúleo, que o eco repete os sons – e com isso lembramos os personagens de Odisseus, Hércules ou a ninfa Eco. [...] as olimpíadas prestam tributo aos deuses do Olimpo. Um desinfetante Ajax, uma revista de companhia aérea intitulada Ícaro, uma empresa de informática com a marca Medusa estão homenageando personagens mitológicos gregos – com muita pertinência, porque há na história de cada

um deles uma explicação para a escolha desse símbolo (MACHADO, 2002, p. 29).

No percurso das sugestões de apresentar à criançada os poemas homéricos, Machado mostra parte do depoimento do escritor e crítico inglês George Steiner, em que confessa ter tido o seu primeiro contato com Homero através da oralização e de comentários feitos por seus pais, e já, aos seis anos de idade, mantivera contato direto com a Ilíada.

Não é necessário intelectualizar, recorrer a dicionário, ler tateando antes dos seis anos – nem ler no original grego, como foi o caso desse episódio. Eram outros tempos (1935) e outra sociedade (a Viena de entre as guerras). Hoje todos têm pressa, ninguém mais depende do latim e grego, há excelentes adaptações de Homero para as crianças e jovens em português, e vivemos na civilização da imagem, repleta de tentações visuais e muitos outros meios de cada um se informar (MACHADO, 2002, p. 32-3).

A autora aponta, por meio do testemunho de Steiner, a possibilidade de uma criança ter lido o texto integral de Homero nas primeiras décadas do século passado, mas ao mesmo tempo chama a atenção para a dificuldade, hoje, de um jovem leitor assumir tamanha tarefa, considerando as variáveis relativas às condições sociais, temporais e linguísticas de nossa época. Naturalmente, a adaptação não constitui apenas uma leitura cuja destinação serve exclusivamente ao público infantil. Ainda que as indicações sejam pertinentes a esse grupo, ela atinge leitores de faixa etária diferenciada. Vemos, por exemplo, que os catálogos de editoras como a Scipione, Ática e a Escala Educacional dispõem de grandes obras-primas da literatura mundial, a exemplo das de Homero, e nacional, adaptadas para idades variadas, algumas delas, inclusive, com o selo “altamente recomendável” da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – e do PNLD – Programa Nacional do Livro Didático. Esta análise será tratada com especificidade no último capítulo.

A retomada das epopeias homéricas, no entanto, não se resume a uma prática moderna de leitura dos clássicos. Sócrates, Platão, Aristóteles, São Jerônimo, Santo Agostinho, Goethe, Nietzsche são testemunhos da leitura poética de Homero, que também foi apropriado e reinventado por Virgílio em Eneida, por Dante na Divina Comédia, por Milton em Paraíso Perdido, por Fénelon em Aventuras de Telêmaco, por James Joyce, em Ulisses. Além da apropriação de filósofos e poetas, temos versões cinematográficas78 e

dramatúrgicas, as quais recriam a partir dos temas homéricos novas formas de fazer

78

Sobre adaptação de romance para o cinema, Stam (2006) discute as formas como as adaptações de filmes têm sido vistas como um processo de perda, em que o romance ocupa um lugar privilegiado. Para ele, é possível pensar a adaptação como uma prática intertextual à medida que um “romance original ou hipotexto é transformado por uma série complexa de operações: seleção, amplificação, concretização, extrapolação, popularização, reacentuação, transculturalização”.

conhecer a guerra entre gregos e troianos e o retorno de Ulisses à Ítaca. Essas histórias tornaram-se ainda modelos utilizados na escola, a começar pelos eruditos notáveis na Biblioteca de Alexandria, que reeditaram seus poemas, acrescentando-lhes comentários a fim de facilitar sua interpretação. O poeta grego tornou-se a inspiração para os primeiros romancistas gregos que, do século I a.C. ao V d.C, produziram uma série de histórias de amor populares, para as quais adaptaram não apenas os assuntos e temas de Homero, mas especialmente suas técnicas de contar histórias e escolhas estilísticas (MANGUEL, 2008)79.

Em Roma, a Ilíada e a Odisséia, segundo revelação de Manguel, “foram considerados modelos a serem copiados ou traduzidos, para depois serem interpretados como alegorias ou ensinadas como histórias morais”. Tem-se como exemplo, no século III a.C., uma versão em latim da Odisséia, produzida pelo cativo grego Lívio Andrônico, para as crianças em fase de escolarização; essa produção foi, mais de dois séculos depois, julgada por Horácio arcaica, grosseira e vulgar. Tal julgamento, não tão diferente de algumas sentenças atuais, talvez se justifique pelo fato de que a “história grega não tivesse sido apenas traduzida, mas houvesse transmigrado para a história de Roma”. Vê-se, pois, que, para o processo de tradução da obra grega, a adaptação tornou-se imprescindível para alcançar seu leitor específico, crianças romanas no início da escolarização, processo semelhante ao das edições de hoje. Se parte da crítica moderna defende a leitura original da obra, o que dizer, por exemplo, da versão de Homero contada por Dante, que não leu o primeiro suposto autor grego, ou somente o fez por intermédio de Virgílio, que por sua vez contou sua versão em uma perspectiva latina?

Embora a edição de Lívio Andrônico tenha se tornado um grande sucesso no meio escolar durante alguns séculos, contribuindo para o conhecimento das fontes gregas, Virgílio, indubitavelmente, foi o grande divulgador de Homero em Roma ao escrever Eneida, no século I a.C., poema épico criado segundo o modelo homérico, baseado tanto na

Odisséia quanto na Ilíada, pois conta as peripécias das viagens de Enéias, troiano

sobrevivente à guerra de Tróia, e suas batalhas que o levam à fundação de Roma. Ainda que se reconheça o papel de Homero como fundador dessas narrativas, foi pelo viés de Virgílio e Dante que essas histórias chegaram às mãos de muitos leitores, contadas em

79

Acerca da influência de Homero na cultura árabe e nos contos de fadas, fragmentos da Ilíada e Odisséia apareceram em narrativas populares, a exemplo das histórias de Simbad o Marujo, em que aparecem as aventuras de Ulisses – conforme assinala Manguel. Séculos depois, em 1857, Wilhelm Grimm, um dos famosos

irmãos dos contos de fadas, sugeriu que as histórias de Homero, originalmente contadas como lendas, com uma base histórica, que aconteceram num tempo e num lugar específico, haviam sido levadas para o mundo todo e mudado ao longo dos séculos. Tornaram-se lendas populares situadas num passado indefinido (“Era uma vez”) que apresentaram heróis genéricos com nomes do tipo João, Maria, José. Até onde os poemas de Homero