• Nenhum resultado encontrado

2. A teoria da failing firm em outros ordenamentos e temas correlatos

2.5 Failing division defense

Como defesa correlata à teoria da failing firm, também foi desenvolvida a failing division defense. A alegação tem justificativa, sobretudo, nos casos de empresas que atuam em mercados relevantes variados. A saúde financeira do empreendimento empresarial como um todo até pode não estar em crise, mas determinado segmento ou divisão estaria acumulando sucessivos prejuízos, o que justifica a alienação dos ativos relativos especificamente ao segmento ou à divisão deficitária. A crise, pois, não está propriamente na empresa, a qual pode ser considerada lucrativa, quando analisado seu balanço integral, mas apenas em uma failing division.

A definição de division não corresponde, necessariamente, à noção de mercado relevante, podendo estar associada a determinado grupos de ativos empresariais, como fábricas e lojas, a determinadas linhas de produção ou a certas marcas, bem como até mesmo a todo um complexo de negócios de um conglomerado econômico (OCDE, 2010, p. 161).

Nos Estados Unidos, desde 1992 existe previsão expressa no guia de concentração horizontal tratando da failing division e a lógica para o seu reconhecimento é o mesmo empregado para a aplicação da failing firm. Segue o texto da versão atual do guia norte- americano, datado de 2010:

Similarly, a merger is unlikely to cause competitive harm if the risks to competition arise from the acquisition of a failing division. The Agencies do not normally credit claims that the assets of a division would exit the relevant market in the near future unless both of the following conditions are met: (1) applying cost allocation rules that reflect true economic costs, the division has a persistently negative cash flow on an operating basis, and such negative cash flow is not economically justified for the firm by benefits such as added sales in complementary markets or enhanced customer goodwill; and (2) the owner of the failing division has made unsuccessful good-faith efforts to elicit reasonable alternative offers that would keep its tangible and intangible assets in the relevant market and pose a less severe danger to competition than does the proposed acquisition189 (FTC, 2010).

189 “Da mesma forma, é improvável que cause prejuízo à concorrência uma fusão se os riscos decorrerem da

aquisição de uma divisão insolvente. As agências normalmente não aceitam que os ativos de uma divisão sairiam do mercado relevante no futuro próximo, a menos que duas condições sejam atendidas: (1) aplicando regras de alocação de custos, as quais refletem os verdadeiros custos econômicos, a divisão tem um persistente fluxo de caixa negativo em uma base operacional, e tal fluxo de caixa negativo não é economicamente justificável por outros benefícios para a empresa, tais como vendas adicionais em mercados complementares ou melhoria da fidelidade do cliente, e (2) o proprietário da divisão tenha feito esforços de boa fé mal sucedidos para obter ofertas alternativas razoáveis que pudessem manter os tangíveis e intangíveis no mercado e que representassem um perigo menos grave à concorrência do que aquisição proposta”- tradução nossa.

Há, pois, dois requisitos a serem observados. É necessária a demonstração de que há um fluxo de caixa negativo referente ao segmento ou divisão empresarial em questão, bem como que não existe uma solução menos ofensiva à concorrência do que a operação apresentada. Da mesma forma como ocorre com a teoria da failing firm, embora não conste como requisito, uma vez que é consequência natural, os ativos referentes ao segmento em crise deverão, caso não haja a operação, sair do mercado, em um futuro próximo.

Se a constatação dos requisitos da teoria da failing firm demanda extremo empenho por parte de quem a alega e muita atenção das autoridades de defesa da concorrência, para a failing division defense os problemas são ainda maiores.

Primeiro, porque o agente econômico tem a discricionariedade para alocar custos entre suas divisões, o que lhe possibilita fazer parecer que um de seus segmentos estaria em crise, quando na verdade o fluxo de caixa negativo é intencional. Por isso deve ser exigida uma evidência clara para demonstrar que a divisão, na ausência da concentração, será liquidada. Ou seja, deve-se provar que os resultados negativos da divisão ou do segmento não se justificam, economicamente, para acréscimos de vendas em mercados complementares ou para melhorar a imagem do conglomerado perante os consumidores (a clientela é um ativo intangível e um dos atributos do estabelecimento empresarial).

E, assim como acontece com o argumento da failing firm, as autoridades de defesa da concorrência insistem em provas que não se baseiam apenas em documentos preparados pela própria controladora, a fim de demonstrar o fluxo de caixa negativo da divisão e a perspectiva de saída dos ativos do mercado190.

Em segundo lugar, por esse problema na avaliação dos custos, é também difícil mensurar a quantidade de dinheiro que a sociedade empresária adquirente irá gastar na divisão, no futuro, para recuperá-la. Há uma assimetria de informação importante entre vendedor e comprador dos ativos. Tende-se, portanto, a considerar que um credor

190 Sobre o assunto, restou concluído pela OCDE: “While most countries are open to the application of this so-

called failing division defense, competition authorities should be aware of the possibility that parents companies may employ creative accounting methods to establish the illusion of a failing division (...) Consequently, parties should be required to produce clear evidence that, without the merger, the division would be likely to fail and its assets would be likely to exit the market imminently (OCDE, 2010, p.12). “Enquanto a maioria dos países está

aberta para a aplicação da failing division defense, as autoridades da concorrência devem estar cientes da possibilidade de que as empresas controladoras podem empregar métodos criativos de contabilidade para estabelecer a ilusão de uma divisão insolvente (...) Por conseguinte, as partes devem ser obrigadas a produzir provas claras de que, sem a concentração, a divisão iria provavelmente falir e seus ativos estariam propensos a sair do mercado em breve” – tradução nossa.

independente ou um terceiro investidor dificilmente adquiriria a divisão se não estivesse com interesse anticompetitivos na operação (OCDE, 2010, p. 180). Daí ser importante, por exemplo, a autoridade antitruste perquirir quão rigorosa foi a due diligence realizada.

Em razão dessas dificuldades, o Bundeskartellamt afirmou em 2010 que tende a não reconhecer a defesa nas concentrações analisadas (OCDE, 2010, p. 107)191. Nos Estados Unidos, parte da doutrina critica também a adoção da failing division sob a alegação de que, diferentemente da failing firm, ela não tem amparo legal ou jurisprudencial:

The 1992 Horizontal Merger Guidelines recognize a ‘failing division’ defense as well as the failing company defense. See §5.2 of The Guidelines, Appendix A. That defense, unlike the failing company defense, has no precedent in the statute, legislative history, or case law. Should the Attorney General unilaterally create a ‘defense’ not mentioned in a statute or commanded by the case law, and then announce publicly that she will not enforce the statute in cases where the ‘defense’ can successfully be raised192 (SULLIVAN; HOVENKAMP; SHELANSKI, 2009, p.898)?

Entretanto, as dificuldades probatórias para preenchimento dos requisitos, bem como as críticas doutrinárias não impediram a discussão da teoria pela jurisprudência norte- americana. Isso porque os motivos que legitimam a adoção da teoria da failing firm são os mesmos que autorizam a aplicação da failing division defense: viabilizar a permanência de ativos produtivos no mercado, em prol da concorrência e dos consumidores.

Ao analisar o caso FTC versus Great Lakes, decidido pela Corte Distrital de Illinois, a doutrina o menciona como exemplo da aceitação da teoria da failing firm (HOVENKAMP, 2011, p. 602). Entretanto, na verdade, a Great Lakes Chemical Corporation ("Great Lakes") apenas adquiriu ativos da Velsicol Chemical Corporation ("Velsicol") referentes ao mercado de “bromine and flame retardant facilities”193, pois a Velsicol, em geral, não estava em crise. De maneira expressa, o tribunal, estabelecendo importante precedente sobre a failing division, pontuou que “the ‘failing company’ defense applies to a

191 “Bundeskartellamt has stated in its Interpretation Principles that it would recognize this defense neither for

‘failing divisions’ nor for ‘failing affiliates’” (OCDE, 2010, p. 107). “Bundeskartellamt estabeleceu em seu guia que não reconheceria a failing division, nem a failing affiliates” – tradução nossa.

192 “O Guia de Análise de Concentrações Horizontais de 1992 reconhece a defesa da failing division tão bem

quanto a da failing company. Vide §5.2 do apêndice “A” do Guia. Aquela defesa, ao invés da failing company defense, não tem precedente em lei, na história da legislação ou em caso judicial. Poderia o Attorney General criar unilateralmente uma defesa que não tem fundamento em lei ou em caso judicial, e então anunciar publicamente que não será aplicada a lei nos casos em que a defesa puder efetivamente ser evocada?” – tradução nossa.

failing business such as Velsicol's bromine-based operations whether or not it is a division of a larger corporation which is successful in other areas194” (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1981).

Outras jurisdições também adotam a failing division. O Japão possui previsão expressa da teoria no seu guia de concentração horizontal (JFTC, 2004, p. 31). O Reino Unido, embora não tenha previsão no seu guia, já reconheceu a tese no caso Long Clawson/Milway (OCDE, 2010, p. 162). A European Commission, embora admita a failing division e a tenha debatido em alguns casos, não tem no seu guia de concentração dispositivo específico sobre o tema e, até 2010, não havia reconhecido a defesa em qualquer caso concreto (OCDE, 2010, p. 186).

A análise sobre a possibilidade de aceitação da failing firm division se assemelha a da teoria da empresa em crise, uma vez que os mesmos dilemas desta serão naquela enfrentados: como acomodar a preservação da livre concorrência à necessidade de preservação da atividade empresarial, que, no caso da failing division, restringe-se a determinado segmento do empreendimento empresarial. Embora se reconheça que nesta defesa as dificuldades probatórias são maiores, acredita-se que, ao se elucidar a pertinência da failing firm defense no Brasil, restará também esclarecida à pertinência da failing division.