• Nenhum resultado encontrado

2 O PROBLEMA DA SURPRESA ESTRATÉGICA

2.6 A Falha como Sucesso do Adversário

Até ao momento, abordou-se a questão da surpresa com base numa acção ou inacção, motivada pela falha dos SI ou dos decisores. No entanto, o adversário não está numa postura passiva. Como foi referido, uma das funções de qualquer SI, são as contra-informações. Ela corresponde conceptualmente, à negação da informação ao adversário, inserindo-se por sua vez numa realidade mais abrangente, a da segurança da informação. Portanto, há a considerar a presença de um terceiro responsável, capaz de induzir a falha, na perspectiva de quem é vítima da surpresa. Se por um lado, estas medidas visam essencialmente contrariar as capacidades de pesquisa dos SI de quem estão a ser alvo, provocando vazios de informação necessária à análise da situação, outras há, que procuram deteriorar directamente as capacidades analíticas, designadas por decepção. Trata-se de qualquer acção que tenha por objectivo enganar a análise dos SI do adversário respeitante a uma situação política, militar ou económica, levando-os a interpretar uma falsa realidade e com isso, a reagir de acordo com os interesses de quem a comete. Logo, tanto a negação como a decepção estão intimamente ligadas ao conceito das falhas de informações, dado ser o seu sucesso que conduz à falha de actuação dos SI, embora o inverso já não se verifique (Shulsky e Schmitt, 2002, pp. 116-7).

A decepção é posta em prática, tanto em tempo de guerra como de paz. Mas é no primeiro caso que se revela mais comum, desde o nível táctico até ao estratégico, embora neste último seja mais raro. Aqui, o objectivo prioritário normalmente respeita à tentativa de se efectuar um ataque-surpresa ao inimigo. Mas em casos que se empenham forças com elevado aparato, muito dificilmente isso escapará à atenção dos SI. Desta forma não restará outra hipótese senão, tentar convencê-los que esse ataque iminente irá ocorrer num local, data, ou de outro qualquer modo diferente daquele que realmente está planeado. Dois dos exemplos deste caso e dos mais emblemáticos de decepção estratégica, foi a acção empreendida pelas forças nipónicas que antecederam o ataque a Pearl Harbor e das forças aliadas durante a II Guerra

Hussein da Jordânia, que a alertou sobre as intenções dos egípcios e sírios. Golda entretanto desprezou a informação.

Antes do desembarque argentino nas Malvinas em 2 de Abril de 1982, houve um incidente em South Georgia no mês anterior que levou dois navios da armada argentina a dirigirem-se para o local. A falha do governo britânico em serem surpreendidos com o ataque, deveu-se não por falta de indícios (apesar destes não serem claros), mas porque foi tomada uma decisão consciente de que o envio de uma força naval poderia ser interpretado na altura como uma provocação para além dos custos económicos de enviar tropas a mais de 8000 milhas de distância (Andarcia, 1985).

Mundial por ocasião da preparação do seu desembarque na Normandia, conhecida como

Operação Overlord 38 (Shulsky e Schmitt, 2002, pp. 117-8).

Em tempo de paz, os objectivos das operações de decepção apresentam-se mais dúbios e difíceis de detectar. Usualmente visam convencer o adversário que é mais forte do que realmente é, procurando conduzi-lo a optar por certas concessões políticas que de outra forma seriam pouco prováveis. Ou pelo contrário, procuram ocultar as suas reais capacidades bélicas do adversário, para não agudizar uma situação de tensão com uma possível corrida armamentista e mantê-lo antes, com um baixo grau de prontidão. Numa situação limite, em que o Estado esteja vinculado a algum tratado de controlo de armamento, isso permite-lhe conciliar a sua violação ao mesmo tempo que as outras partes mantêm as suas forças nos limites estipulados, provocando um desequilíbrio da balança de poder a seu favor e a salvo de sanções internacionais (Shulsky e Schmitt, 2002, p. 118). Um facto caricato, exemplificativo desta situação, foi a campanha de decepção feita pela URSS durante a década de 50 e 60 que procurou convencer os EUA que possuía uma maior força estratégica nuclear do que realmente tinha. Os seus efeitos materializaram-se em três mitos, o Missile Gap, o Bomber Gap e o

Science Gap. No seu conjunto constituíram a percepção norte-americana39 de que a URSS dispunha de uma superioridade numérica de mísseis intercontinentais balísticos e de bombardeiros estratégicos, a par de um notório avanço da tecnologia espacial. Este equívoco veio a ser desfeito no início da década de 60, com as missões de sobrevoo dos U-2 e com a implantação do sistema de vigilância satélite Corona (Studeman, 1995; Isenberg, 2008).

Com base nos factos históricos aqui relatados e de outros, o sucesso de uma campanha de decepção ao nível estratégico requer o cumprimento de várias condições. O Estado deceptor deve desenhar um plano global que permita alcançar os seus objectivos, estimando de antemão como o Estado alvo provavelmente reagirá sem enveredar numa visão de pensamento desejado (Godson e Wirtz, 2002, p. 3). A decepção é tanto mais eficaz quanto a cultura estratégica do

38 Antes de ocorrer o desembarque nas praias da Normandia em 6 de Junho de 1944 (Dia D), foi previamente

traçado um plano de decepção designado Operação Fortitude, para convencer as forças alemãs que ele iria se desenrolar em Pas-de-Calais, a rota mais curta entre a Inglaterra e a França. Ele constou de várias manobras de decepção: foi criado um tráfego de falsas mensagens de rádio para todo um exército fantasma baseado no Sudeste da Inglaterra e cujo comando estava a cargo do temido Gen. Patton. Para simular a deslocação de uma grande esquadra naval, recorreu-se a bombardeiros Stirling e Lancaster. Estes voaram em paralelo a baixa altitude, descrevendo semi-círculos e rectângulos e lançando nuvens de folhas de alumínio denominadas Windows para formarem uma mancha densa detectável pelos radares, que não distinguiam quaisquer pormenores. Por mar, lanchas rebocavam balões de 10 metros de altura equipados com reflectores, devolvendo ecos que equivaliam a navios de 10 mil toneladas. Em outros pontos da costa francesa, mais aviões lançavam cargas pirotécnicas, simulando o disparo de armamento ligeiro, entre outras técnicas. O objectivo era fixar em Pas-de-Calais o grosso do Exército Alemão de modo a não intervir mais a Oeste nas praias da Normandia onde os aliados iriam desembarcar em força (Juárez, 2005, cap. 8).

Estado alvo for compreendida. Significa isto para ser bem sucedida, o deceptor deve conhecer as percepções que o adversário tem do ambiente estratégico a fim de saber, quais as falsas imagens que lhe podem ser passadas com plausibilidade. Para isso, é determinante o conhecimento da sua história, cultura, o ambiente político e económico em que está envolto, as suas preferências burocráticas (Godson e Wirtz, 2002, p. 3). Outra respeita ao facto de ser necessário a existência de canais abertos que permitam fazer chegar a informação pretendida ao destinatário. Não se tratando de canais dedicados, mas sim, de explorar os tradicionais e os mais informais, uma vez que quanto mais criativo for o seu uso, mais credível ela se torna (Godson e Wirtz, 2002, p. 4). Por último, o sucesso decisivo da decepção depende do conhecimento que o deceptor tenha das reacções do adversário à sua falsa informação. Pois caso esta não esteja a ir ao encontro dos seus objectivos, é imperativo fazer acertos ou tomar acções alternativas (Godson e Wirtz, 2002, p. 4).

Para melhor se compreender as medidas habitualmente constantes de um plano de decepção, em particular da militar por ser a mais importante, Cynthia Grabo propõe-nos uma abordagem em que as classifica em cinco tipos: segurança, decepção política, cobertura, decepção militar activa e desinformação (2004, p. 123).

A segurança respeita às medidas destinadas a negar ao adversário, informação sobre a verdadeira situação. Não se tratando propriamente de um tipo específico de decepção, visto não contemplar medidas dedicadas conducentes ao adversário formular falsas conclusões, elas devem sempre fazer parte de qualquer plano de decepção para este ser efectivo. Por outro lado, as medidas de segurança normalmente não levam o adversário a tomar os preparativos incorrectos, mas pode levá-lo à execução de contra-medidas desadequadas ou mesmo provocar a falha dos seus sistemas de alerta (Grabo, 2004, p. 123).

A decepção política é, segundo opinião da autora, provavelmente a forma mais económica, fácil, comum e difícil de detectar de todas as medidas de decepção. Para levá-la a cabo existem várias tácticas a serem postas em prática. Uma é passar a falsa situação publicamente através de interlocutores políticos usando os canais diplomáticos, declarações oficiais ou os órgãos de comunicação social, optando entre a negação daquilo de que são acusados e a afirmação do contrário à realidade. Outro método usado, sobretudo quando se está na eminência do ataque e reduzir a suspeição da vítima, é entrar num processo negocial para discussão do assunto em questão como sinal de boa fé, mesmo não havendo qualquer intenção de chegar a acordo. Uma técnica semelhante à anterior, é a de minimizar a gravidade da situação através igualmente da diplomacia e de declarações públicas, numa tentativa de dar a entender que os seus interesses nacionais não estão em jogo, ou que as suas relações com a

presumível vítima não estão irremediavelmente deterioradas ou estão até mesmo a melhorar (Grabo, 2004, pp. 123-4).

A cobertura é uma forma subtil de decepção militar. Ela envolve toda a informação difundida nos diversos meios de comunicação, concorrendo para a construção coerente de uma justificação que suporte a realidade fabricada (designada vulgarmente por história de cobertura). O recurso a esta técnica é feito quando se torna difícil a ocultação dos preparativos do aparelho militar em curso (mobilização, produção/aquisição de armamento, manobras…). O seu principal propósito é proporcionar uma explicação verosímil para a actividade militar observada. De entre as mais usadas como pretexto, figuram a da realização de exercícios e a da reposição da ordem pública face a uma qualquer revolta. Ora, isto exige uma acção coordenada por parte dos vários órgãos estatais, seja através de declarações públicas, artigos de imprensa, trocas de mensagens, ou outras formas (Grabo, 2004, p. 125).

A decepção militar activa é composta por todas as medidas destinadas a iludir a vítima quanto às características do ataque e das forças empregues, para que esta prepare o seu sistema defensivo de forma errada e induzir-lhe o desvio das atenções dos pontos onde deveria concentrar os seus esforços (ex: operação Fortitude) (Grabo, 2004, p. 127).

Por último, a desinformação refere-se à acção que busca gerar a confusão e incerteza na análise de quem está a ser alvo dela. Não se trata apenas de informação falsa para fins gerais de propaganda, mas sim de acções calculadas com vista a atingir alvos bem determinados (governantes, comandos militares, SI), para induzi-los a decisões estratégicas prejudiciais aos seus próprios interesses. Através da difusão de informação massiva de valor inócuo, ambígua e contraditória, procura-se criar uma sobrecarga de informação a tratar que provoque a perda de objectividade dos factos relevantes (Grabo, 2004, p. 128).