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Desde o século XVI, com o início do cultivo da cana de açúcar no Brasil, as relações entre campo e cidade passaram por grandes transformações oriundas de inúmeros interesses econômicos, políticos e das consequências de suas inter- relações. Nesse contexto, passando pelos diversos ciclos econômicos brasileiros, em que a produção agrícola possuiu papel estruturador, seja do ponto de vista financeiro, social, técnico e consequentemente urbanístico, é possível afirmar que atualmente, a cultura contemporânea globalizada e urbana, por muitas vezes, acaba por ocultar a importância do meio rural para a constituição do senso comum na sociedade brasileira. No âmbito paulista, as fazendas históricas, especialmente aquelas cuja formação remonta ao século XIX, que em muitos casos são anteriores à existência das próprias cidades em cujo território administrativo, estão atualmente estabelecidas, assumem fundamental importância para a formação do Estado de São Paulo.

Dando continuidade ao papel estruturador da atividade agrícola no Estado de São Paulo, em especial o das grandes fazendas, salienta-se que a partir da primeira década do século XX, em virtude do avanço do ciclo de produção do café, alavancou-se o desenvolvimento de diversos segmentos econômicos, com implicações técnicas, científicas e urbanísticas. Mais recentemente, também teve representatividade os cultivos de laranja e de cana de açúcar, entre outras culturas, que em grande medida, vêm contribuindo nos últimos cinquenta anos, para mudanças fundamentais nas relações sociais, de trabalho e nas características

relativas ao uso do solo e dos processos de urbanização em esfera estadual. O êxodo rural deste último século é um dos maiores fenômenos sociais enfrentados pelo país, cujas consequências ainda estão sendo contabilizadas.

Nesse contexto, o

Patrimônio Cultural Rural está definido como o conjunto de registros materiais e imateriais decorrentes das práticas, dos costumes e das iniciativas produtivas que se estabelecem, historicamente e territorialmente, na área rural. Isso não significa, evidentemente, uma compartimentação ou mesmo contraste, uma polaridade com o assim definido Patrimônio Urbano Paisagístico. Tal Patrimônio Cultural Rural possui um perfil múltiplo, em escalas e tipologias, que contemplam não só as fazendas históricas e os complexos produtivos antigos, mas também usinas e barragens para a implementação das pioneiras redes de produção e distribuição de energia elétrica do campo e da cidade, pontes, diques, ferrovias, enfim, registros edificados no território agrário que se somam aos acervos artísticos, bibliotecas, arquivos, equipamentos e máquinas, festas e arte popular, hábitos, costumes, crenças e modos de fazer.22

Com tais preocupações e interesses, o Grupo Fazendas, alcunha que designa o grupo de pesquisadores participantes do Projeto de Pesquisa para Políticas

Públicas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Patrimônio Rural Paulista: espaço privilegiado para o ensino, a pesquisa e o turismo (PPPP- FAPESP) teve aprovada a intenção de promover, como objetivo principal, a

disponibilização de um conjunto de instrumentos e de metodologias de gestão, de conservação e de difusão para os responsáveis por esse patrimônio, tanto proprietários quanto as respectivas instâncias públicas pertinentes à área da cultura, da educação e do turismo.

Tais necessidades decorreram da constatação que, embora existissem ações promovidas por diversas entidades junto às prefeituras paulistas no âmbito da valorização do Patrimônio Cultural Rural, inexistiam parcerias estratégicas entre universidades, centros de pesquisa e de documentação, órgãos públicos de preservação e as entidades mantenedoras dos bens culturais rurais tombados pelo Estado e pela União.

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Dessa maneira, com o objetivo de promover a articulação e a difusão de conhecimento organizado sobre o tema, buscaram-se formas de se produzir um inventário das fazendas históricas paulistas e de seus componentes materiais e imateriais, que pudesse ser disponibilizado de forma ampla e abrangente, que se utilizaria do conhecimento disperso existente e de novas aquisições e descobertas para valorizar o Patrimônio Cultural Rural Paulista, sua conservação e o restauro de acervos e edifícios, além de ações relacionadas ao turismo cultural e gastronômico.

Todo o trabalho realizado com financiamento e apoio da FAPESP esteve inicialmente atrelado a Associação Pró Casa do Pinhal23, à época coordenada pelo pesquisador Francisco de Sá Neto, sendo esta posteriormente substituída pela

Associação Fazendas Históricas Paulistas24, organização civil que congrega fazendas históricas distribuídas nos principais e mais representativos núcleos rurais regionais do Estado de São Paulo, a saber: Campinas-Amparo; Limeira-Rio Claro; São Carlos-Araraquara; Itu; Mococa-Casa Branca e Vale do Paraíba. Cada uma das quatorze participantes do projeto

São exemplares notáveis pela variedade tipológica de acervos materiais históricos (bibliotecas, mobiliário, obras de arte, edificações e áreas produtivas, bens naturais, arquivos documentais, máquinas e implementos agrícolas, estruturas de geração de energia e circulação de produtos), de períodos produtivos (desde a cana-de-açúcar do século XVIII em Itu até o café e a pecuária do século XX na Alta Mogiana) e de registros culturais imateriais (a gastronomia, as festas, as práticas religiosas, as músicas de raiz, as danças, entre outras).25 Parte do êxito do projeto foi atingido com a consolidação dos principais objetivos determinados para a primeira fase, iniciada em 2008 e finda em 2012, cujo reconhecimento foi atestado com a aprovação da continuação do trabalho até 2014, em uma segunda fase da pesquisa, sob a coordenação da professora Luzia Sigoli Fernandes Costa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e restrita a quatro fazendas históricas da região de São Carlos-Araraquara e aos processos relacionados aos itens digitais do projeto.

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A Associação possui o objetivo de dar suporte à conservação e preservação da Casa do Pinhal, além de promover a divulgação de seu acervo patrimonial, histórico, paisagístico e natural. (http://www.casadopinhal.com.br/associacao).

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A Associação Fazendas Históricas Paulistas (http://www.fazendaspaulistas.com.br) é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, membro da Associação Brasileira de Turismo Rural – ABRATUR (http://abrattur.alfamaweb.com.br) que congrega treze (13) fazendas históricas do Estado de São Paulo.

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Foram atingidos os objetivos prioritários relativos à catalogação e à constituição do inventário patrimonial proposto, além de outros pontos de importância, tais como: o diagnóstico das atividades já implementadas de educação patrimonial e de turismo nos contextos das fazendas históricas selecionadas; a implementação metodológica para a atividade turística embasada na preservação e na elaboração de atividades dentro de perspectivas de educação patrimonial e sustentabilidade; a elaboração de rotinas e de metodologias de manutenção e conservação preventiva dos bens materiais das fazendas participantes, com especificações e indicações de procedimentos a serem adotados e o diagnóstico de vocações culturais do Patrimônio Cultural Rural Paulista com o objetivo de agregar diversos segmentos socioculturais na preservação abrangente de tais bens culturais. Outros pontos de destaque foram: a organização de uma extensa revisão bibliográfica sobre os diversos temas e argumentos que envolvem o contexto do Patrimônio Cultural Rural e a elaboração de material (cursos, workshops, oficinas e cartilhas) para a educação patrimonial aplicada aos bens culturais rurais com o intuito de promover capacitação de funcionários e proprietários dos integrantes da Associação das Fazendas Históricas Paulistas no manuseio e na conservação dos acervos materiais e edificações histórico-artísticas.

A coordenação do Grupo de Pesquisa esteve alinhada a três núcleos temáticos (Educação Patrimonial e Turismo, Inventário e Catalogação, Preservação e Sustentabilidade), dada a complexidade de ações do projeto, porém o trabalho transcorreu de forma interativa e retroalimentativa, respectivamente em cada estudo e nos resultados propostos por todo o conjunto de docentes, pesquisadores e técnicos, sob a coordenação geral do professor Marcos Tognon do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Foi dessa forma que se cunhou a possibilidade de criar a chancela da Paisagem Cultural Rural Paulista26, uma das grandes contribuições do trabalho, cuja constituição está embasada no patrimônio material e imaterial preservado e exaustivamente estudado nas Fazendas do Estado de São Paulo.

26 Tendo em vista que o termo “Tombamento” assusta alguns proprietários, foi proposto pelo PPPP-

FAPESP, o processo de Chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Para se receber a Chancela deve existir um comprometimento do proprietário do imóvel frente ao poder governamental, mas também permite a obtenção de financiamentos para realizar a adequação da propriedade ao turismo cultural rural e à educação patrimonial.

Destacam-se no projeto de pesquisa, além do diagnóstico e do extenso acervo sobre o patrimônio rural, um exemplo de como tratar com coerência e importância um tema tão amplo e diversificado como o do patrimônio, seja ele relacionado às construções históricas, seus inúmeros documentos e utensílios, seus jardins e pomares, suas formas de sustentabilidade ambiental e financeira e seus interesses específicos, em diálogo com estes, os interesses e vontades das diferentes esferas públicas, municipais e/ou estaduais. Ao longo do projeto, as fazendas históricas passaram a constituir ambientes de estudo e de pesquisa como o doutoramento ora apresentado, sendo que três delas, por motivos específicos, acabaram selecionadas para serem os estudos de caso do presente trabalho.