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CAPÍTULO 1. GESTANDO TEORICAMENTE: SAÚDE, GÊNERO E RAÇA

1.5 Feminismo negro e “interseccionalidade”

Conforme a socióloga negra norte-americana, Patricia Hill Collins (1998; 2011), as ideias associadas aos estudos de raça, gênero e classe social vêm sendo elaboradas no exterior da academia por ativistas, intelectuais e feministas negras pelo menos desde o século XIX, por ocasião de reflexões sobre suas condições de vida em uma estrutura social racista e sexista. Na década de 1980, após a revogação do regime de segregação racial e com o acesso de afro-americanas/os às instituições de ensino superior dos Estados Unidos, os estudos de gênero, feminismo, raça e classe foram transformados, “[...] de forma a contemplar as experiências de grupos raciais não-hegemônicos e a considerar fenômenos

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sociais que acometem as mulheres destes grupos” (PEREIRA, 2013, p. 5). A entrada das ideias de militantes na academia favoreceu, ao mesmo tempo, sua adaptação para versões mais disciplinadas dos estudos de gênero, raça e classe, se comparadas àquelas produzidas no bojo dos movimentos sociais.

Nutrindo-se destas discussões, a ativista negra e teórica racial crítica Kimberlé Crenshaw elaborou a versão atualmente mais conhecida da análise concomitante de gênero, raça e classe, difundida sob a rubrica de “interseccionalidade” (PEREIRA, 2013). Mais que um debate teórico, a produção deste conceito por Crenshaw foi motivada pela identificação da necessidade de uma ferramenta heurística que combatesse a invisibilidade da experiência das mulheres negras na política antirracista e feminista e contemplasse dinâmicas operantes no fenômeno da violência contra as mulheres negras:

Argumento que as mulheres negras às vezes são excluídas da teoria feminista e do discurso da política antirracista porque ambos pressupõem um conjunto distinto de experiências que frequentemente não refletem a interação de raça e gênero de maneira precisa. Estes problemas de exclusão não podem ser resolvidos por meio da simples inclusão das mulheres negras em uma estrutura analítica já estabelecida. Como a experiência interseccional é maior do que a soma do racismo e do sexismo, qualquer análise que não considere a interseccionalidade não pode abordar exaustivamente a subordinação das mulheres negras. Portanto, para que a teoria feminista e o discurso da política antirracista incluam as experiências e as preocupações das mulheres negras, o quadro analítico que vem sendo usado como base para traduzir a “experiência feminina” ou “a experiência das/os negras/os” em demandas políticas concretas deve ser repensado e reformulado como um todo (CRENSHAW, 1989, p. 58, tradução nossa)24.

O objetivo de suas reflexões é aumentar a proteção jurídica conferida às mulheres negras, partindo, para tanto, da análise e comparação de casos. Suas conclusões apontam para o fato de que as mulheres do grupo racial não-hegemônico, por vezes, vivenciam expressões da discriminação que resguardam semelhanças em relação aos homens negros e às mulheres brancas. Contudo, frequentemente, elas são submetidas a tipos diversos, que emanam da dupla discriminação de mulheres e de negras/os ou ainda da fusão de ambos, determinando formatos de violência específicos direcionados às mulheres negras.

24 “I argue that sometimes Black women are excluded from feminist theory and antiracist policy discourse

because both are predicated on a discrete set of experiences that often does not accurately reflect the interaction of race and gender. These problems of exclusion cannot be solved simply by including Black women within an already established analytical structure. Because the intersectional experience is greater than the sum of racism and sexism, any analysis that does not take intersectionality into account cannot sufficiently address the particular manner in which Black women are subordinated. Thus, for feminist theory and antiracist policy discourse to embrace the experiences and concerns of Black women, the entire framework that has been used as a basis for translating “women’s experience” or “the Black experience” into concrete policy demands must be rethought and recast”.

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Crenshaw (1989) constata, no mais, que o enquadramento de suas demandas em categorias analíticas monolíticas obscurece suas experiências e enfraquece seus direitos.

O conceito de interseccionalidade “busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”. Nesse sentido, trata da “forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições de mulheres, raças, etnias, classes e outras”. Trata também da “forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento” (CRENSHAW, 2002, p. 177). Assim, a noção de interseccionalidade pode ser considerada uma crítica e problematização à ideia de dupla e tripla discriminação, pois encontra-se em meio a eixos que se entrecruzam em dinâmicas que estruturam a vida social, de forma a hierarquizar a posição de indivíduos.

Para Collins (2000, p. 23), o conceito de intersseccionalidade deve ser complementado pela ideia de eixos de opressão que inscrevem-se em uma “matriz de dominação”. Além de raça, diferenças e hierarquias entre grupos sociais são operadas por outros marcadores relevantes, tais como classe, gênero, sexualidade, dentre outros, que operam de forma interconectada. Desta forma, abandona-se o modelo de “soma” de opressões, considerando que cada sistema depende do outro para atuar.

Aplicado desta maneira, o conceito de interseccionalidade explora as vulnerabilidades e opressões vivenciadas por mulheres situadas nos chamados pontos de encontros de dois ou mais eixos de poder. Essa é uma importante ferramenta analítica para entender a experiência de mulheres negras em relação ao pré-natal, ao parto e ao pós-parto na interação com os serviços e os/as profissionais de saúde. Conforme ressalta Pereira (2013, p. 20),

[...] o significado atrelado à interseccionalidade recusa noções monolíticas de desigualdade priorizadas pelo feminismo e pelo estudo das relações raciais. Quando usado como um recurso descritivo, a interseccionalidade do feminismo negro amplia o campo de visão no qual o estudo das relações raciais tem se firmado, permitindo compreender como a opressão racial é dependente e combinada a opressões organizadas segundo gênero, heteronormatividade e exploração econômica (PEREIRA, 2013, p. 20).

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Bell Hooks (1995)25 destaca a articulação entre o racismo, o sexismo e a exploração de classe, denunciando que o corpo feminino negro é encarado como mais próximo do natural, animal e primitivo, desregrado e destinado apenas a servir. Segundo ela, as mulheres negras têm sido historicamente consideradas “só corpo sem mente”:

A utilização de corpos femininos negros na escravidão como incubadoras para a geração de outros escravos era a exemplificação prática da ideia de que as “mulheres desregradas” deviam ser controladas. Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão, a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representá- las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de um erotismo

primitivo e desenfreado. Essas representações incutiram na consciência de todos a ideia de que as negras eram só corpo, sem mente. A aceitação cultural dessas representações continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos como “símbolo sexual”, os corpos femininos negros são postos numa categoria, em termos culturais, tida como bastante distante da vida mental. (HOOKS, 1995, p.469, grifo nosso).

Collins (2000) enfatiza a necessidade de se explorar essas representações ao tratar da dimensão ideológica da opressão das mulheres negras afro-americanas, constatando que “certas qualidades atribuídas às mulheres negras são utilizadas para justificar a opressão” (p. 5). Tais estereótipos negativos fazem parte de ideologias racistas e sexistas hegemônicas, que são vistas e nomeadas como naturais e inevitáveis.

Analogamente às experiências das mulheres negras norte-americanas, o movimento de mulheres negras no Brasil se constitui justamente a partir do cruzamento das questões de gênero, raça e classe social e o acúmulo de suas discussões e debates refletem a “complexidade entre o ser mulher e o ser negra” (RIBEIRO, 1995, p. 452). No entanto, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, a menor permeabilidade acadêmica impediu a constituição de um campo de estudos das mulheres negras no país (CRENSHAW, 2011), obedecendo à tendência constatada por Collins (2000) de que conhecimentos e pensamentos subalternos são silenciados e invisibilizados pelos pensamentos hegemônicos e dominantes, pois são considerados transgressores.

Sueli Carneiro (2003) afirma que o discurso clássico sobre a opressão das mulheres não tem reconhecido a experiência histórica diferenciada das mulheres negras, bem como “não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras” (p. 49). Análises substantivas têm sido promovidas pelas ativistas negras. Antes mesmo da popularização dos escritos de

25 O nome é um pseudônimo grafado em letras minúsculas para marcar, segundo a autora, que o mais relevante em suas obras é o conteúdo e suas ideias e não os nomes e títulos.

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Crenshaw no país, intelectuais como Lélia Gonzalez (1983) já combatiam a invisibilidade da dimensão racial da opressão contra as mulheres, formulando quadros analíticos em que racismo e o sexismo aparecem como determinantes da exploração capitalista.

Dos coletivos militantes, emanaram também considerações sobre o aprisionamento e controle do corpo das mulheres negras e das representações sociais inferiorizantes na cultura hegemônica. A este respeito, Carneiro (2003, p. 49) afirma:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas [...]

Tais análises tiveram papel central no desenvolvimento do conceito de saúde reprodutiva. A atuação de ativistas negras no campo da saúde e dos direitos reprodutivos consolidou-se por meio de denúncias sobre políticas de controle de natalidade que teriam como alvo principal a população negra26 (DAMASCO; MAIO; MONTEIRO, 2012).

A explicação dessas assimetrias passou a ser atribuída por elas a um controle diferenciado do corpo das mulheres negras por parte do Estado e da sociedade, uma vez que a discriminação é baseada em uma concepção ontológica animalizada, que associa seus corpos à “natureza que deve ser dominada”. Além disso, é importante considerar também que “[...] pela especificidade da experiência da escravidão, as mulheres negras tiveram mais intenso o controle físico imposto sobre seus corpos e, desprovidas de sua condição de ‘sujeito’, foram marcadas tanto racial quanto sexualmente” (RIBEIRO, 2012, p. 190).

Segundo Jurema Werneck (2004, p. 1), o “[...] racismo, mais que o sexismo, tem sido o fator determinante na definição dos limites ou das possibilidades de vivência livre dos chamados direitos reprodutivos pela maioria das mulheres do mundo”. A partir da perspectiva das mulheres negras, a manipulação de sua capacidade procriadora ocorre há séculos, desde a vigência do regime escravista nas Américas e Europa, quando as negras eram obrigadas a procriar segundo pressupostos econômicos racistas:

26 Sobre o tema da esterilização de mulheres negras, ver: Werneck (2004); Carneiro (2003); Berquó (1999); Roland (1995).

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A transição do regime de escravidão para o de liberdade significou, entre outras, a mudança de definição ou do status conferido aos corpos das mulheres e aos frutos concebidos por eles. Em comum, as duas épocas partilham a perspectiva da inferioridade racial e de gênero das mulheres negras (WERNECK, 2004, p. 2).

Assim, as noções de que a variável “raça” é fundamental para a interpretação dos dados sobre saúde reprodutiva e que o racismo e o sexismo são fenômenos centrais para explicar as desigualdades nesse campo têm origem entre intelectuais negras e aparece de forma recorrente em seus discursos e formulações teóricas. Ademais, suas constatações inspiraram pesquisas empíricas com recorte de gênero e raça, que começaram a se desenvolver nos anos 1960 e ganharam visibilidade na década de 1980, com os estudos dos sociólogos Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva.

Enfim, na medida em que se dá a configuração de um novo marco interpretativo sobre a saúde pública no Brasil e que os esforços políticos de grupos de mulheres negras foram decisivos para a inclusão do tema dos direitos reprodutivos na agenda pública governamental, suas interpretações devem ser consideradas imprescindíveis e expandidas para temas como o da presente dissertação.

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