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CAPÍTULO 1. GESTANDO TEORICAMENTE: SAÚDE, GÊNERO E RAÇA

1.4 Pensamento médico, raça e saúde; racismo institucional

1.4.1 Raça, medicina e saúde

Ao tratar das interfaces entre medicina, saúde pública e racismo no Brasil, Marcos Chor Maio e Monteiro (2005, p. 420) aponta que tais relações “[...] estiveram em voga entre as últimas décadas do século XIX e os anos 40 do século XX, enquanto fontes inspiradoras de políticas públicas”. Segundo ele, nesse período, medidas tomadas pelo governo brasileiro para conter surtos de febre amarela “são interpretadas por parte da historiografia como componentes de um período em que as políticas sanitárias privilegiaram a proteção aos europeus recém-chegados” (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 420). Com o fim da escravidão e o advento do regime republicano, elites políticas e intelectuais teriam se deparado com o desafio de repensar a nação e suas possibilidades de adentrar o mundo moderno (MAIO, 2004, p. 37).

Houve nas primeiras décadas do século XX uma disputa entre diferentes projetos de nação, baseados no conhecimento médico e sanitário da época. Teriam prevalecido duas vertentes interpretativas no país: a primeira, operando a partir de visão determinista biológica, com forte influência no campo da medicina-legal, particularmente nos trabalhos de Nina Rodrigues e seus discípulos. Tal corrente influenciou “nos processos de controle e identificação das ‘classes perigosas’ e, não menos relevantes, nos estudos sobre o negro” (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 421). A outra vertente, inspirada na tradição médico- higienista, atribuía “[...] ao saneamento, à higiene e à educação as melhores alternativas para a superação do atraso econômico e social” (p. 421). Em síntese,

De um lado, verifica-se a proposta liberal e racista enunciada pelo discurso de Rui Barbosa de substituição do povo brasileiro, constituído em grande parte por mestiços e negros, por levas de imigrantes europeus. De outro, intelectuais médicos antiliberais, como Belisário Pena, críticos contundentes da Primeira República, anti-racistas, afirmam que a superação das doenças endêmicas que grassavam na população seria a precondição para a construção da nação (MAIO, 2004, p. 38).

Jerry Dávila, na obra Diploma de Brancura: Política Social e Racial no Brasil – 1917-1945, analisa “como uma elite branca médica, científico-social e intelectual emergente transformou suas suposições sobre raça em políticas educacionais” (DÁVILA,

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2006, p. 22), com impactos também para o campo da saúde. O autor ressalta que tais políticas projetavam as visões da elite sobre degeneração em formas que contribuíam para a “[...] desvantagem de brasileiros pobres e não-brancos, negando-lhes acesso equitativo aos programas, às instituições e às recompensas sociais que as políticas educacionais proporcionavam” (p. 22). De acordo com ele, a negritude era tratada pelas elites brancas como associada “[...] à falta de saúde, à preguiça e à criminalidade” e a brancura encarnaria “as virtudes desejadas de saúde, cultura, ciência e modernidade” (DÁVILA, 2006, p. 25).

Para o autor, a eugenia combinava com as ideias sobre raça defendidas pelas elites brasileiras, que consideravam pobres e negros inferiores, buscando “recuperar” essa população. Segundo ele,

Para os brasileiros que a adotavam, a eugenia não era apenas um meio de aperfeiçoar indivíduos ou grupos específicos. Era uma forma de superar o que eles percebiam ser as deficiências da nação, aplicando uma série de diagnósticos e soluções científicas. Tratava-se de um nacionalismo eugênico, que congregou médicos, sociólogos, psicólogos, higienistas e antropólogos. Essas autoridades científicas procuravam vias em meio às políticas e instituições públicas para aplicar suas mãos curativas sobre uma população a quem costumavam encarar com brando desprezo. Eles se agruparam, reunindo diversas disciplinas da ciência e regiões geográficas, para criar programas de saúde pública e educação que seriam o campo onde iriam aplicar sua intervenção redentora (DÁVILA, 2006, p. 32, grifo nosso).

No mesmo sentido, Fátima Oliveira (2003, p. 75) afirma que “[...] a ressonância do movimento eugênico no Brasil foi vigorosa”. Os dois principais pólos médicos de opiniões eugênicas se formaram na Bahia e no Rio de Janeiro, sendo que o primeiro teria surgido com o desenvolvimento da medicina legal e seu principal representante seria Nina Rodrigues. Já o segundo teria surgido sob a forma de ideias higienistas, liderado pelo médico Miguel Couti, com destaque para médicos psiquiatras (OLIVEIRA, 2003). A autora também ressalta a ideia fortemente presente entre as elites intelectuais do campo literário, jurídico, das ciências sociais e biológicas de que a mestiçagem da população brasileira representava um sério empecilho ao desenvolvimento do país porque levaria à degeneração da raça. A solução buscada pelas vertentes higienistas e eugenistas era “[...] favorecer ou potencializar o embranquecimento da população brasileira” (OLIVEIRA, 2003, p. 76).

Após a Segunda Guerra Mundial e a ditadura do Estado-Novo, com a experiência democrática entre 1946-1964, Maio e Monteiro (2005, p. 421) destaca que prevaleceu a

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concepção “de que os agravos em saúde eram impeditivos à modernização do Brasil” e “diversas iniciativas foram deslanchadas na direção da ampliação do acesso da população aos serviços de saúde em consonância com as reformas sociais em curso”. No entanto, o golpe militar de 1964 impediu a expansão desse processo e empreendeu um amplo processo de privatização da saúde. Somente na década de 1980, a partir da atuação do movimento da reforma sanitária, “[...] legitima-se no plano constitucional o projeto de universalização do acesso à saúde, corporificado no Sistema Único de Saúde (SUS) em contexto de democratização do país” (MAIO; MONTEIRO, 2005, p. 421).

Segundo ele, a tradição sanitarista continuou a não atribuir importância à temática racial e foi apenas no século XXI que as relações entre raça e saúde voltaram à cena pública, a partir da forte atuação e articulação do movimento negro com diferentes atores nacionais e internacionais. A proposta de criação de uma política focal direcionada à população negra baseia-se na concepção de que as desigualdades raciais repercutem de forma específica na esfera da saúde pública e, portanto, devem ser objeto de ação governamental a fim de superá-las. A política antirracista na saúde surge no contexto da discussão sobre políticas de ação afirmativa no Brasil, iniciada na década de 1990 (MAIO, 2004; MAIO; MONTEIRO, 2005). Conforme já mencionado na Introdução, a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) se deu apenas em 2009 (por meio da publicação da Portaria nº 992/2009), a partir da forte atuação de pesquisadores/as e militantes negros/as. Tal política tem por objetivo combater a discriminação étnico-racial nos serviços e atendimentos oferecidos no SUS, bem como promover a equidade em saúde deste segmento populacional (BRASIL, 2010). Sua implementação, no entanto, configura ainda um desafio a ser superado.