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CAPÍTULO 2 “LEVANDO COM A BARRIGA”: GESTAÇÃO E PRÉ-NATAL

3.9 Presença do/a acompanhante: um direito desrespeitado

A Lei nº 11.108/2005 garante às parturientes o direito à presença de acompanhante de sua livre escolha durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais do SUS. Nesse sentido, ressaltam Diniz et al. (2014, p. 151),

A presença de acompanhante pode ser considerada um marcador de segurança e qualidade do atendimento, e também um indicador da incorporação de vários dos princípios do Sistema Nacional de Saúde (SUS), como a integralidade dos cuidados de saúde, a universalidade, a equidade e a humanização..

A figura do/a acompanhante possui um papel bastante relevante, na medida em que pode auxiliar a gestante com informações, apoio emocional, medidas de conforto (tais como massagens, toque e banhos quentes) etc. Além disso, pode intimidar ou evitar qualquer tipo de violência por parte da equipe de saúde. No entanto, esse direito é reiteradamente violado, conforme destacam Leal e Gama (2014, p. 4):

[...] quase uma década depois de promulgada a lei, menos de 20% das mulheres se beneficiaram da presença contínua do acompanhante durante todo o período de internação, sendo esse ainda um privilégio das mulheres com maior renda e escolaridade, brancas, usuárias do setor privado e que tiveram cesarianas. Questionadas sobre a presença do/a acompanhante, dentre as dez informantes negras, apenas três acessaram esse direito. É significativo o fato de que essas tiveram partos vaginais e possuem maior escolaridade e maior renda que as demais, sendo que duas pariram em hospitais privados (Joice e Renata) e uma em hospital público (Joana). Quatro das informantes negras foram submetidas a cesarianas em hospitais públicos e não tiveram direito à presença constante de acompanhantes: Simone, Clarice, Nádia e Beatriz. As três restantes – Pamela, Adriana e Laura – tiveram partos domiciliares, sendo que, após o parto, Laura foi levada ao hospital e ficou internada sem acompanhante. Dentre as cinco informantes brancas, três contaram com acompanhante em hospitais privados. As outras duas não tiveram acompanhante e pariram em hospitais públicos.

Simone foi uma das entrevistadas que não teve direito a acompanhante no parto do seu segundo filho em um hospital público localizado na Asa Norte. Ela sabia que era seu direito e relatou sua insatisfação com a situação:

Simone: Ah, eu estranhei muito porque no do primeiro [filho], eu tinha um plano de saúde “top”. Então meu marido me acompanhou pra tudo, me acompanhou no parto. E aqui eles não liberaram meu marido para acompanhar o parto porque falaram que o hospital tava em processo de mudança, apesar de eu saber que é lei, que as mulheres têm direito a um acompanhante, eles negaram, falaram que

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não, que o hospital tava em obra e que o centro cirúrgico era pequeno. Sendo que eu detectei que o centro cirúrgico não é pequeno, ele era bem amplo, só que tem muitos alunos lá dentro. Só que eu achei um erro, porque pra entrar meu marido, eles poderiam tirar um aluno e deixar, que eu tinha o direito, entendeu? [...]. Achei estranho porque eles negaram um acompanhante pra mim sendo que eles colocaram bastante aluno, aí eu achei estranho.

Clarice vivenciou diferentes situações em relação à presença de acompanhante nas cesarianas de seus três filhos/as. No primeiro parto, no Hospital da Ceilândia, não teve direito a acompanhante; no segundo, em um hospital particular localizado na Asa Sul, teve acompanhante; e no terceiro, no HRAN, só contou com acompanhante após o parto, quando foi para o quarto. A partir de sua experiência, Clarice compreende a presença do/a não como um direito, mas uma permissão dos serviços de saúde:

Kauara: Você teve direito a acompanhante?

Clarice: Não. Acompanhante só depois.... Não no centro cirúrgico não pode e nem no pós-cirúrgico. Só depois, você é transferido pro apartamento... Aí eu tive direito a acompanhante só depois. Nunca tive direito a acompanhante...

Kauara: Em nenhuma das três cesarianas?

Clarice: Na segunda, no Santa Helena, como é hospital particular, eles permitiram acompanhante na hora do parto. Mas, nos outros dois não permitiram acompanhante na hora do parto.

Kauara: O primeiro você pariu onde? Clarice: Ceilândia.

Kauara: Também não permitiram?

Clarice: Não. Naquela época, não permitiam. Segundo informações, dizem que agora permitem. Eu não tenho essa certeza. Porque lá, o CO – Centro Obstétrico – do Hospital de Ceilândia é muito pequeno. Então também não vai comportar o tanto de acompanhantes. Mas no HRAN, permitiram, mas só depois quando eu lá estava no apartamento. Na hora do parto eles não permitiram...

Alguns estudos60 têm apontado a escassez de dados sobre a implementação da Lei, além de observações acerca das resistências dos serviços e profissionais de saúde nessa implementação, o que vem impedindo ou dificultando a inserção do/a acompanhante de escolha da parturiente durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. No entanto, é fundamental ressaltar que, considerando que a maioria das usuárias do SUS é negra e não consegue acessar um direito garantido em lei federal desde 2005, a percepção de Clarice é reveladora de mais uma das facetas do racismo institucional na saúde. Muitas mulheres sequer têm a informação de que se trata de um direito e não um privilégio ou concessão das instituições e/ou dos/as profissionais de saúde. Dessa forma, acabam vivenciando o momento do parto de forma solitária, em instituições marcadamente hierarquizadas e

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violentas, ficando ainda mais expostas a maus-tratos e abusos. Diante disso, Clarice contesta o impedimento de acompanhantes no momento do parto:

Clarice: O meu questionamento maior é o fato de você chegar lá e não poder ter ninguém pra te acompanhar. Você se sente muito só, né? Com uma pessoa desconhecida, você tá num estado delicado e não pode ter ninguém que você confie.