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CAPÍTULO 1. GESTANDO TEORICAMENTE: SAÚDE, GÊNERO E RAÇA

1.4 Pensamento médico, raça e saúde; racismo institucional

1.4.2 Saúde reprodutiva, raça e instituições

Ao analisar aspectos relacionados às trajetórias reprodutivas de mulheres negras, Francisco Inácio Bastos afirma que “[...] os trabalhos brasileiros só muito recentemente têm atentado para diversas especificidades da inter-relação entre raça e saúde (o que inclui dimensões sociais, culturais e biológicas)” (BASTOS, 2004, p. 252). Segundo ele, as tendências eugênicas, dominantes no período da formação das ciências sociais no Brasil que prevaleceram até pelo menos a década de 1930, frequentemente reemergem.

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Rosely Gomes Costa (2004), ao analisar como é feita a seleção de doadores/as de gametas para a realização de fertilização in vitro em clínicas de São Paulo e sua relação com noções sobre raça, mostra que as características fenotípicas categorizadas pela noção de raça são compreendidas pelos/as médicos/as e pacientes como transmitidas pelo sangue, transmitidas pelos genes. A autora destaca as relações referentes ao processo reprodutivo, bem como ressalta o poder dessas instituições e equipes em classificar racialmente doadores/as e receptores/as, de acordo com seus próprios critérios:

Desta forma, o que se nota é que os corpos são espaços de inscrições e sentidos em um processo no qual as próprias inscrições e sentidos são considerados como transmitidos pelo sangue, geneticamente. Assim, a classificação de cor e raça dos bancos de sêmen já é um filtro realizado pelas instituições médicas, que definem quem é, e o que é ser branco, negro, mulato, mulato claro, mulato escuro; ter a pele branca clara ou média etc (COSTA, 2004, p. 237).

Costa (2004) afirma que um dos principais critérios para a escolha de doares/as se refere à semelhança fenotípica entre doador/a e receptor/a, sendo a cor da pele, do cabelo e dos olhos as principais características observadas. No entanto, um dos resultados da pesquisa se refere ao fato de que houve casos de escolha de doadores/as mais claros/as, mas nenhum caso de escolha de doador/a mais escuro/a que o/a receptor/a. Assim, prevaleceu o entendimento, tanto por parte de instituições e equipes médicas como de receptores/as de gametas, de que “[...] o escurecimento da pele da criança traria problemas, enquanto o clareamento não” (COSTA, 2004, p. 249). A autora destaca a fala da médica responsável por um banco de sêmen, ao afirmar que o sêmen mais procurado é o do “[...] homem branco de cabelo escuro e liso porque este é o biótipo do brasileiro” (COSTA, 2004, p. 242).

O trabalho de Costa (2004) é emblemático do processo amplo descrito por Suárez (1992) em sua análise da associação do feminino e da negritude à natureza, e de como dados supostamente biológicos são manipulados por profissionais de saúde. Evidenciando a compreensão das características raciais como essencialmente genéticas (ou seja, biológicas), o estudo torna visível a preferência pela branquitude. Raça, então, não é entendida como mera diferença, e sim como marcador de superioridade e inferioridade.

Além disso, os resultados de tal estudo dão pistas de como podem operar as relações e o intercruzamento entre raça, saúde reprodutiva, profissionais e instituições de saúde na contemporaneidade. Conforme Laura Moutinho (2004, p. 193), “[...] ‘raça’, gênero e sexualidade são aspectos de fundamental importância no acesso a bens, status e

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ocupação/emprego e, igualmente, tanto no cuidado de si quanto no acesso ao sistema de saúde”.

O tema do racismo é ainda um tabu na sociedade brasileira e captar percepções sobre atitudes, disposições emocionais e pensamentos racistas, bem como as formas como o racismo opera nas instituições são, ainda, um desafio para as ciências sociais. Dados de pesquisa realizada na década de 1990 embasam tal diagnóstico, ao apontar que, enquanto 89% dos/as entrevistados/as consideravam que o brasileiro é racista, apenas 10% disseram ser eles/as próprios/as racistas (TURRA; VENTURI, 1995).

Historicamente, o Estado brasileiro se negou a nomear oficialmente a categoria raça, configurando este posicionamento de antirracialismo. No entanto, essa postura não significou e não tem garantido um antirracismo no país, já que ainda haveria resistências por parte dos poderes públicos, tanto em reconhecer e identificar a ocorrência de discriminação racial/racismo como em adotar mecanismos para coibir e puni-la.

De acordo com Bernardino-Costa, Santos e Silvério (2009, p. 215), “[...] o antirracialismo do Estado brasileiro, que perdurou como discurso hegemônico pelo menos entre a década de 1930 até o início deste milênio, não significou um antirracismo”. O que aconteceu foi justamente o contrário,

[...] ao lado do antirracialismo estatal, o racismo não só ganhou fôlego como se cristalizou na sociedade brasileira, assim como foi um dos fatores que ajudou a construir e a reproduzir, principalmente entre cidadãos brancos e negros, visíveis e incontestáveis desigualdades de renda, de escolaridade, de acesso à saúde, de acesso à água e ao saneamento básico, de tipos de habitação, entre outras desigualdades, como têm demonstrado os dados e pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A estratégia da não nomeação ou do não reconhecimento oficial da questão racial no nosso país, demonstrou-se inócua, falhando quanto ao propósito da eliminação do preconceito, da discriminação e das desigualdades raciais (COSTA; SANTOS; SILVÉRIO; 2009, p. 216).

Assim, apontam os autores, a partir da constatação da ineficiência do antirracialismo do país, emergiu como contra discurso a interpretação de que, para o desenvolvimento de uma estratégia eficiente contra o racismo e as desigualdades raciais, é necessário “[...] nomear a raça como categoria relevante no plano da vida social” (COSTA; SANTOS; SILVÉRIO, 2009, p. 216). Tal interpretação, à qual esta dissertação se alinha, nega a fundamentação biológica da raça e a compreende como construção social, uma categoria e “[...] dimensão relevante tanto para a explicação de desigualdades entre negros e brancos na sociedade brasileira quanto para a formulação de políticas públicas adequadas

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para superá-las” (COSTA; SANTOS; SILVÉRIO, 2009, p. 216). A raça opera juntamente com outras dimensões da vida social, tais como gênero, classe, geração e sexualidade. No bojo dessa estratégia racialista e antirracista, as áreas da educação e saúde têm se destacado por força de sua intensa atuação e mobilização no país.