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CAPÍTULO 1. GESTANDO TEORICAMENTE: SAÚDE, GÊNERO E RAÇA

1.4 Pensamento médico, raça e saúde; racismo institucional

1.4.3 Relações raciais no Brasil

A chamada “ideologia da miscigenação” tem ocupado lugar central na autoimagem nacional e tem influenciado a produção das ciências sociais no Brasil. Tal ideologia se materializou com uma política de branqueamento do país no final do século XIX, com o incentivo da imigração europeia como forma de promover a assimilação gradual pela população brasileira de características (somáticas, mentais e psicológicas) atribuídas à branquitude, consideradas superiores (GUIMARÃES, 2004).

Ao tratar do tema do branqueamento e branquitude no Brasil, Maria Aparecida Silva Bento afirma que “havia uma expectativa de o Brasil tornar-se um país branco, como consequência do cruzamento de raças” (BENTO, 2012, p. 47). Tal visão se estendia para além do campo da ciência, estando presente nas artes, nos escritos dos pesquisadores, na imprensa, o que evidenciava uma resposta ao medo das elites brancas do final do século XIX e início do século XX, “[...] gerado pelo crescimento da população negra e mestiça que, segundo o Censo de 1972, chegava a 55% do total de brasileiros” (BENTO, 2012, p. 47).

A despeito da violência que pautou esse processo, a ideologia da miscigenação ainda persiste no imaginário social, apresentando o Brasil como uma nação onde o racismo e a discriminação racial não existem, uma vez que há uma crença generalizada e reforçada de que miscigenação e racismo seriam fenômenos contraditórios.

Além disso, conforme Guimarães (1999, p. 39), “os brasileiros se imaginam numa democracia racial”, noção que tem raízes profundas na história e na produção intelectual do país, que, até pelo menos a década de 1970, “[...] reafirmou (e tranquilizou), tanto aos brasileiros quanto ao resto do mundo, o caráter relativamente harmônico de nosso padrão de relações raciais” (p. 39). O autor analisa a “democracia racial” brasileira como uma ideologia historicamente datada, materializada em práticas sociais, em políticas estatais e

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em discursos literários e artísticos. Essa ideologia teve muita força entre 1930 e 1970, quando passou a ser mais fortemente confrontada (GUIMARÃES, 2002).

Conforme aponta Raquel Souzas (2004), a questão racial conformada pelos referidos mecanismos ideológicos, é identificada mais facilmente, no âmbito da retórica, como forma de exclusão social. No entanto, “no campo das relações cotidianas isso é mais difícil, haja vista a enorme dificuldade para nomear, identificar e localizar aqueles que seriam as vítimas da discriminação” (SOUZAS, 2004, p. 3). A autora atribui a isso o “mito da democracia racial”, que estaria inculcado na população brasileira e que esconderia a problemática, mascarando episódios de discriminação.

No que se refere à experiência das mulheres negras em relação ao processo de miscigenação, Costa (2009, p. 97) ressalta que “[...] essa miscigenação foi fruto, primeiramente, da dominação e exploração sexual dos homens brancos sobre as mulheres negras e índias”. Corrêa (1996, p. 43) considera que:

É como se fosse impossível tratar de raça sem tratar de sexo ou de sexualidade: produto de relações sexuais (espúrias) o mulato trazia já no nome escolhido para designá-lo a marca de sua origem. (Durante algum tempo discutia-se na literatura médica se os mulatos, como o seu nome indica, eram ou não estéreis – como as mulas, produtos do cruzamento entre éguas e jumentos).

Teorizações acerca da ideologia da miscigenação, do branqueamento e do mito da democracia racial favorecem a compreensão da dinâmica das relações raciais. Assim, uma vez que a miscigenação integra uma estratégia de atingir a branquitude, a referência para a classificação racial é a cor da pele, somada a aspectos como a textura do cabelo e a fisionomia. Tal classificação é feita de forma relacional, provisória e flexível, em combinação com outros aspectos, como gênero e classe social.

Iray Carone (2009) ressalta que, enquanto no período pré e pós-abolição da escravatura, o branqueamento convinha às necessidades, desejos, preocupações e medo das elites brancas, hoje ele assume outras conotações, sendo um discurso que atribui às/aos negras/os o desejo de embranquecer e de obter privilégios da branquitude com base em sua inveja, imitação ou falta de uma identidade racial positiva. Dessa forma, manifestações concretas de racismo, ao serem denunciadas por pessoas negras, são vistas como exageradas e auto-vitimistas, resultando em uma espécie de censura cultural em torno do assunto (SHERIFF, 2001), ao mesmo tempo em que práticas cotidianas de discriminação perpetuam uma estrutura social racista (GOLDSTEIN, 2003, p. 105).

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Goldstein observa ainda que, nesse contexto marcado pela interdição cultural em torno do racismo e pela vigência de leis contra o racismo e a discriminação racial mais rígidas, formas indiretas de comunicação são usadas como um escape: em vez de ofensas raciais deliberadas, predominam piadas sobre negras/os e silêncios subentendidos, mecanismos que se prestam menos à descrição e à sua eliminação.

Essa visão sobre as interações raciais converge com a noção de Segato sobre raça ser signo, cujo significante é dado pelo contexto histórico em que opera. As interações sociais, em geral, baseiam-se em uma classificação binária de incluídas/os e excluídas/os, no interior da qual a cor é fundamental (SEGATO, 2005, p. 46), um signo que se refere a um lócus histórico polarizado entre vencidas/os – não-brancas/os – e vencedoras/es – brancas/os. A realidade do que chamamos de raça é uma seleção cognitiva de traços físicos transformada em traços diacríticos, de forma a marcar grupos populacionais e atribuir a eles um destino como parte da hierarquia social (SEGATO, 2005, p. 31-40). Assim, as reclassificações, seja no sentido de enegrecer ou de embranquecer, são frutos de estratégias sociais em contextos específicos que visam acesso ou impedimento a determinadas vantagens sociais, políticas ou econômicas.

Ainda a esse respeito, Segato (2003, p. 2) propõe a ideia de racismo e sexismo automáticos, se referindo a “[...] um conjunto de mecanismos legitimados pelo costume para garantir a perpetuação do status” relacionados ao gênero, à ordem racial e outras ordens, como de classe, regional etc. Esse caráter automático opera no controle da permanência das hierarquias sociais e frequentemente escapa à formalidade das leis e encontra poucas formas de resistência, já que sua naturalização dificulta sua percepção e problematização, bem como permite que os próprios sujeitos, frequentemente vítimas dessas ideologias, reproduzam atos racistas e sexistas. Tanto o racismo como o sexismo se concretizam em ações silenciosas e rotineiras, produtoras de sentidos, dificilmente flagrados, mas capturados por sua recorrência e pela eficácia dos microscópicos e rotineiros gestos de discriminação e dano moral.

Embora a constatação de que as práticas são alimentadas por um imaginário no qual a negritude aparece como marca de inferioridade pareça óbvia, poucos estudos têm se dedicado a identificar representações sociais e dinâmicas que as fundamentam. Dessa forma, escassas são as reflexões sobre os mecanismos do racismo nas instituições,

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possivelmente devido às dificuldades das próprias instituições em reconhecerem tais mecanismos e se autoexaminarem como (re)produtoras de racismo (LÓPEZ, 2012).