• Nenhum resultado encontrado

ESQUEMA E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

III. AUTOMATISMOS E COMPORTAMENTOS SEXUAIS DE RISCO

3.2 FENÓMENOS PSICOLÓGICOS AUTOMÁTICOS

Quando a interacção com uma situação, seja ela social ou outra, permite desenvolver um guião da actividade, hábitos comportamentais e/ou categorias e teorias implícitas da personalidade, as decisões tomadas não se socorrem privilegiadamente de processos conscientes e deliberados, mas de processos automáticos e espontâneos para a resposta à situação. O interesse pelos fenómenos automáticos decorre da sua maior probabilidade aquando da existência de um guião e/ou de hábitos comportamentais para a actividade e da formação de impressões.

A possibilidade destes fenómenos automáticos não serem excepção no comportamento do homem e quais as suas características, eis o que se tentará em primeiro lugar clarificar, apresentando alguns estudos empíricos.

Os automatismos e as decisões mais simplificadas, decorrentes da existência de um guião (o qual inclui muitas vezes hábitos comportamentais) e do uso de categorias de personalidade (mais concretamente de teorias implícitas da personalidade) possuem um valor funcional na vida dos indivíduos. Tal decorre da poupança de recursos cognitivos a que dão origem, permitindo por um lado não ter de viver de forma

continuamente esforçada e por outro canalizar estes recursos para tarefas que

efectivamente deles necessitam (Bargh e Chartrand, 1999; Macrae e Bodenhausen, 2000).

Os critérios operacionais destacados por Bargh (1984, 1996) para a caracterização dos processos automáticos (também referidos na literatura como não conscientes, implícitos ou heurísticos) enfatizaram o carácter não intencional e não controlável destes processos, especificaram a sua ocorrência fora da consciência e o carácter dispensável dos recursos de atenção, em clara consonância com os critérios que foram propostos pelos primeiros modelos sobre automatismos. De forma mais

específica, os processos automáticos foram caracterizados pela ausência de intencionalidade, referindo-se esta ao controlo que se tem sobre o início dos processos mentais, activados sem necessidade de um acto consciente de vontade por parte do indivíduo. Também o carácter não controlável dos processos se associou aos automatismos, salientando-se a incapacidade destes serem parados uma vez iniciados, seja através de uma mudança de rumo, seja através da paragem dos processos em curso. Os processos automáticos caracterizaram-se, ainda, pelo facto de ocorrerem fora da consciência, devido à menor atenção consciente a que a frequência e a consistência com determinado processo mental conduz, acabando os processos por ocorrer sem que o indivíduo tenha percepção da influência quer dos estímulos, quer dos seus efeitos. Por fim, estes processos consideraram-se eficientes, isto é, pouco constrangidos por limites de atenção, sendo passíveis de ocorrer quando a atenção está a ser utilizada noutras tarefas (Bargh, 1996). Os processos conscientes (sinónimo na literatura de processos controlados, explícitos ou sistemáticos) foram descritos pelas características opostas, nomeadamente, pela consciência que deles se tem, pela intenção ou vontade explícita de os realizar, pelo facto de requererem atenção e poderem ser controlados se o indivíduo o desejar (Bargh, 1996).

As primeiras definições de processos automáticos e conscientes revelavam-se mutuamente exclusivas e esgotavam o universo das formas de processamento. Para ser considerado automático um processo ou comportamento devia satisfazer a totalidade dos quatro critérios anteriormente mencionados, sendo o automatismo entendido como um conceito de tudo ou nada (Bargh, 1994, 1996).

Estas primeiras definições de automatismo, ou de caracterização de um comportamento como automático, mostraram-se muito rígidas e tornaram virtualmente impossível de encontrar um comportamento que fosse passível de assim ser considerado (Bargh, 1994). Quer na psicologia cognitiva, quer na psicologia social foram-se acumulando provas de que os processos mentais com algum nível de complexidade raramente satisfaziam os quatro critérios referidos. Antes consistiam em combinações de processos automáticos e controlados, tratando-se o automatismo de um contínuo e não de um estado absoluto de tudo ou nada. São muitos os exemplos que contrariam esta posição de tudo ou nada associada às características dos processos

condução pode implicar um conjunto de competências motoras e perceptivas complexas que é desempenhado sem qualquer consciência e com um mínimo de atenção, ao mesmo tempo que ocorre intencionalmente, no sentido em que uma viagem não é iniciada sem intenção de a realizar. Noutros casos, processos há que são activados sem intenção, mas requerem recursos de atenção para poderem realizar-se, como as inferências espontâneas de traço (Winter e Uleman, 1984) e outros que, apesar de não intencionais, podem ser controlados num segundo momento, como o uso dos estereótipos (Devine, 1989)50. Da mesma forma, muitos julgamentos sociais são intencionais, mas uma vez iniciados tornam-se autónomos e muito eficientes, sem necessitarem de uma atenção consciente. No comportamento sexual pode colocar-se uma situação semelhante, uma vez que o indivíduo tem intenção de se envolver na situação de interacção sexual, mas uma vez iniciado o processo e a respectiva activação de objectivos, percepções, avaliações e/ou comportamentos, o seu desenrolar pode decorrer sem consciência e de forma eficiente.

Os comportamentos automáticos foram divididos em três categorias distintas, de acordo com as condições que desencadeiam o automatismo (Bargh, 1994, 1997). Quando os automatismos requerem apenas que a pessoa dê conta da presença do estímulo, sem necessidade de atenção consciente, intenções ou objectivos por parte do sujeito, sendo o seu desencadeamento independente do estado de recepção ou de sintonia cognitiva do indivíduo, são designados pré-conscientes. Quando os automatismos requerem o uso ou a activação de determinados processos mentais, ou seja, algum tipo de activação residual de um processamento consciente, ainda que os efeitos sejam funcionalmente semelhantes aos anteriores, consideram-se automatismos pós-conscientes. Quando o automatismo ocorre sem consciência, controlo ou recursos de atenção, mas só tem lugar com o consentimento e intenção do indivíduo, trata-se de um automatismo dependente de um objectivo.

Não será por isso surpreendente que o consenso quanto ao que constituem processos mentais conscientes continue a ser maior do que o partilhado sobre os

50 O carácter controlável do estereótipo tem sido questionado, apesar dos receios sociais que pode

suscitar e das questões em torno da responsabilidade a atribuir aos indivíduos nestas condições de ausência de controlo sob este automatismo (Bargh, 1999).

processos mentais automáticos, onde a miríade de combinações possíveis dos critérios acima referidos é hoje considerada bastante ampla. Os processos mentais automáticos poderão, assim, ser descritos como aqueles processos sem todas as características definidoras dos processos conscientes (Bargh e Chartrand, 1999) e que têm lugar quando determinadas condições estão presentes sem haver necessidade de ocorrer qualquer escolha ou orientação consciente a partir desse momento (Bargh, 1997). Em muitas das situações, o que se pretende ilustrar com o conceito de automatismo é o seu carácter autónomo, ou seja, a capacidade de operar por si mesmo sem qualquer necessidade de orientação consciente, uma vez iniciado (Bargh, 1996).

Hoje em dia, a existência de efeitos que ocorrem fora da consciência, ou que não requerem um processamento consciente para terem lugar, é quase inquestionável (Bargh, 1997; Bargh e Chartrand, 1999). Langer (1978) foi uma das primeiras autoras a importar para a psicologia social os processos automáticos explorados maioritariamente na psicologia cognitiva. Propôs que também nas interacções sociais complexas a realização frequente de um comportamento pudesse tornar supérfluas as avaliações cognitivas, pressupostas na maioria dos modelos sobre comportamento social. Desafiou, deste modo, o carácter consciente e deliberado dos processos cognitivos envolvidos na escolha de um determinado comportamento. A tendência geral para as pessoas se envolverem no mínimo processamento da informação possível, de forma a reduzir a actividade cognitiva, estende-se a várias áreas da psicologia social. Encontra-se, por exemplo, na procura de atribuições disposicionais estáveis, ao invés de atribuições situacionais, na demanda de explicações suficientes sem preocupação pela inferência de causas múltiplas, passando pela criação de correlações ilusórias, heurísticas de julgamentos e guiões para orientar a interpretação e comportamento na situação (ver Langer, 1989).

As provas de automatismos, dos mais “naturais”, isto é, cujo desenvolvimento é independente da prática, aos que se desenvolvem pela experiência frequente e consistente, acumulam-se em diversas áreas, envolvendo a percepção, a avaliação e as reacções emocionais, passando pela mobilização de objectivos e pelas respostas comportamentais.

revelado, por exemplo, na categorização do comportamento em termos de traços relevantes (Carlston e Skowronski, 1994; Srull e Wyer, 1979; Uleman et al., 1996; Winter e Uleman, 1984) e na activação de estereótipos (Devine, 1989; Perdue e Gurtman, 1990). A inferência de traços, a partir do comportamento do outro, ou seja, a categorização do comportamento em termos de traços de personalidade é um fenómeno que ocorre sem haver necessidade de uma intenção específica, acontecendo de forma espontânea quando se processa informação comportamental (Carlston e Skowronski, 1994; Srull e Wyer, 1979; Uleman et al., 1996; Winter e Uleman, 1984). Do mesmo modo, estruturas cognitivas como os estereótipos são activadas aquando da percepção do comportamento social (Perdue e Gurtman, 1990) mesmo quando o indivíduo não concorda com o estereótipo socialmente partilhado (Devine, 1989).

Contudo, a activação automática não se cinge apenas a fenómenos perceptivos e estende-se a processos avaliativos/afectivos. Perante determinado objecto, indivíduo ou acontecimento as pessoas acedem, muitas vezes de forma imediata, a uma valoração desse estímulo sem que se dê no momento um processo intencional de avaliação e de reflexão sobre ele. Quer isto dizer, que as atitudes e, respectivo afecto, podem ser activados automaticamente sem a intervenção de um processo de mediação consciente (Bargh, Chaiken, Govender e Pratto, 1992; Zajonc, 1980). A avaliação pode ser activada sem necessidade de se pensar sobre o estímulo ou mesmo de se estar consciente de que se está a classificar uma pessoa, acontecimento ou objecto positiva ou negativamente. A avaliação automática do meio é uma actividade contínua em que os indivíduos se envolvem, sem intenção e sem consciência, e cujas consequências funcionais poderão prender-se com a organização de uma espécie de sistema sinalizador sobre a segurança ou perigosidade do ambiente, criando uma prontidão comportamental passível de ser desenvolvida numa fracção de segundos, de forma a aproximar ou evitar objectos, positivos e negativos, respectivamente (Bargh e Chartrand, 1999).

A activação automática e não consciente encontrada nos fenómenos perceptivos e avaliativos alarga-se, de igual modo, aos objectivos e ao comportamento (Bargh et al., 1996; Chartrand e Bargh, 1996). Se um mesmo objectivo é perseguido na mesma situação, a escolha consciente pode deixar de estar presente na sua selecção, dado que as próprias características da situação podem mobilizar o objectivo que lhe