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ESQUEMA E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

I. HIV/SIDA: INFECÇÃO, PRÁTICAS E PROTECÇÃO

1.1 ASPECTOS CLÍNICOS E EPIDEMIOLÓGICOS DO HIV/SIDA

1.1.2 Modos de Transmissão

O HIV é relativamente pouco contagioso e as suas modalidades de transmissão são bastante limitadas.

O vírus existe em quantidade considerável no sangue e no esperma, em menor concentração no líquido pré-ejaculatório e nas secreções vaginais, sendo a sua concentração na saliva, lágrimas e suor tão baixa que não transmite a infecção (Soares et al., 1995). O HIV encontra-se ainda no leite materno e a sua concentração torna-o num meio de transmissão (Dunn, Newell, Ades e Peckham, 1992).

A transmissão do HIV dá-se, assim, fundamentalmente, por via sexual, sanguínea e perinatal, sendo a transmissão sexual responsável por mais de 75% de todas as infecções pelo HIV no mundo (Quinn, 1996; Royce, Seña, Cates e Cohen, 1997).

Apesar da probabilidade de infecção através de contacto sexual variar bastante e depender da prevalência13 da infecção, das características do hospedeiro, da frequência de exposição, do uso de preservativo e ainda da presença de IST, entre outros, parece ser menor do que a infecção que ocorre através das outras vias de exposição (Quinn, 1996; Royce et al., 1997).

Práticas sexuais anais, vaginais ou orais não protegidas com um indivíduo infectado e que impliquem contacto directo do esperma, do líquido pré-ejaculatório ou das secreções vaginais com as mucosas (ânus, vagina e boca) ou com feridas podem conduzir à infecção pelo HIV.

O risco de transmissão sexual não é igual nos diferentes tipos de práticas sexuais não protegidas, as quais se podem organizar em grau crescente de infecciosidade pelo beijo profundo ou envolvendo a língua, seguido pelos contactos orogenitais ou oroanais, pela relação anal e vaginal insertiva e, por fim, com maior risco de infecção, a relação vaginal e anal receptiva14

(Santos-Lucas, 1993).

Apesar da inclusão do beijo profundo no conjunto de práticas sexuais mencionadas não se conhecem infecções por contacto boca com boca, e a presença do

13 Número de seropositivos numa população determinada.

14 A relação insertiva refere-se ao sujeito no papel daquele que insere o orgão sexual no parceiro e a

relação receptiva refere-se ao sujeito no papel daquele que recebe o orgão sexual do parceiro. Por vezes, também se refere sexo orogenital insertivo ou receptivo para distinguir estas duas possibilidades.

vírus na saliva de pessoas infectadas não comporta carga viral suficiente para provocar infecção no outro indivíduo (Grmek, 1990/1994; Soares et al., 1995).

Ao contrário, os dados sobre o carácter inócuo da transmissão orogenital não se mostram lineares. Durante vários anos defendeu-se o carácter inócuo do sexo oral15 na

transmissão do HIV (Kippax, Crawford, Davis, Rodden e Dowsett, 1993; Moore e Rosenthal, 1991a). Tal não significa que não houvessem sinais indicadores da possibilidade deste tipo de transmissão, a maioria em indivíduos homossexuais, mas também entre indivíduos heterossexuais (Lane, Holmberg e Jaffe, 1991; Rozenbaum, Gharakhanian, Cardon, Duval e Coulaud, 1988; Spitzer e Weiner, 1989). No entanto, alguns estudos realizados (e.g., Vicenzi, 1994) e determinadas explicações apresentadas (Keet, van Lent, Sandfort, Coutinho e van Griensven, 1992) foram tendentes a desvalorizar o risco colocado pelas práticas orogenitais. Ainda que a infecção pudesse ocorrer desta forma, Keet e colaboradores (1992) chamavam a atenção para a possibilidade destas conclusões estarem a ser sobrestimadas e resultarem da existência de barreiras psicológicas que se prendiam com a negação, por parte de indivíduos homossexuais (população a que se referia a maioria dos estudos sobre transmissão orogenital), de outras práticas como o sexo anal. Nestas condições, restava aos investigadores a via de transmissão orogenital e a respectiva sobrestimação dos níveis de infecção decorrente desta prática sexual. Vicenzi (1994) num estudo com casais heterossexuais serodiscordantes veio dar consistência a estas suspeitas, ao não encontrar qualquer seroconversão através da prática de sexo oral, durante 24 meses. Ainda assim, o risco foi calculado entre 0 e 4.7% para 100 pessoas-ano, um risco que, apesar de pequeno, não podia ser negligenciado.

Hoje em dia, o sexo oral receptivo (pénis/boca) é detectado como um factor de risco independente, ainda que de risco pequeno, para a transmissão do HIV. Estes resultados são encontrados em estudos mais recentes, onde, entre outros aspectos, a maior probabilidade de um declínio de sexo anal receptivo não protegido entre os indivíduos homossexuais tem permitido às práticas orais receptivas ganhar uma proeminência na transmissão potencial do vírus, sendo assim mais correctamente

15 Formalmente, o sexo oral pode envolver as combinações insertivas e receptivas da cavidade oral com

avaliadas (Rothenberg, Scarlett, Rio, Reznik e O´Daniel, 1998). Todavia, o risco, por contacto, de transmissão orogenital é considerado 8 vezes inferior (0.03%, IC de 95%, entre 0.01 e 0.18) ao risco presente no sexo anal receptivo não protegido (0.24%, IC de 95%, entre 0.05 e 0.43) (Vittinghoff e col., 1998, cit. por Rothenberg et al., 1998). Deste modo, embora se continue a proceder a uma reavaliação do papel da transmissão oral para a infecção, podem apontar-se como factores associados a um aumento do risco de transmissão do HIV através do sexo oral as feridas e inflamações bucais, IST concomitantes, ejaculação na boca e supressão sistemática da imunidade (Robinson e Evans, 1999).

Dos factores atrás referidos que afectam a transmissão sexual, como a prevalência da infecção e o uso do preservativo, abordamos por agora o risco de transmissão atendendo ao género sexual, às características do hospedeiro, com particular destaque para a presença de IST e, ao uso de microbicidas.

O risco objectivo de transmissão homem-mulher num encontro sexual em que não se usa protecção é de 1 em 5 milhões quando o parceiro tem poucos factores de risco e de 1 em 1 000 ou em 10 000 quando o parceiro tem factores de risco (Hearst e Hulley, 1988). Num encontro sexual não protegido com um parceiro infectado com HIV, estima-se que a probabilidade de infecção esteja entre 0.1% e 1% no caso do sexo feminino e entre 0.005% e 0.5% no caso do sexo masculino (van der Wijgert e Padian, 1993, cit. por Sheeran e Taylor, 1999). Nos contactos heterossexuais estimava-se que a probabilidade de um homem infectar uma mulher fosse duas vezes superior à de uma mulher infectar o seu parceiro masculino. Contudo, a eficácia da transmissão homem-mulher é considerada hoje em dia 8 vezes superior à transmissão mulher-homem (Ickovics e Yoshikawa, 1998). O grau de infecciosidade do parceiro, a prática de sexo anal e uma idade superior a 45 anos aumentam o risco de infecção para a mulher (Grupo de Estudos Europeus sobre Transmissão Heterossexual do HIV, 1992). No entanto, pode afirmar-se que a maior susceptibilidade da mulher à infecção não decorre apenas de razões biológicas, como a maior fragilidade e extensão das áreas expostas durante a relação sexual, mas também de factores epidemiológicos e sociais.

A probabilidade de transmissão ou infecciosidade aumenta com o estádio da infecção, havendo provas da transmissibilidade do vírus ser maior logo após se ter ficado infectado ou nos últimos estádios da infecção. A ausência de circuncisão, a

menstruação e, em particular, infecções locais como inflamações ou úlceras das mucosas do aparelho reprodutivo, rectal ou oral aumentam a infecciosidade do portador (Royce et al., 1997).

A aquisição ou susceptibilidade à infecção também é aumentada pela ausência de circuncisão, pela existência de dispositivos intra-uterinos e ainda pelas infecções locais descritas, i.e., inflamações ou úlceras das mucosas do aparelho reprodutivo, rectal ou oral (Royce et al., 1997).

Destacamos o facto da transmissão sexual ser acelerada pela presença de outras IST e o seu controlo conduzir à redução da transmissibilidade do HIV (Quinn, 1996; Royce et al., 1997). A presença de IST aumenta 3 a 5 vezes a probabilidade de adquirir HIV através de contacto sexual. Caso existam úlceras genitais, o aumento da susceptibilidade fica a dever-se ao facto destas criarem condições de entrada facilitadoras para o vírus. Quando as IST não provocam úlceras, ainda assim fica aumentada a concentração de células de defesa nas secreções genitais, células estas que servem de alvo para o HIV. Mas também a infecciosidade de indivíduos com HIV aumenta com a existência de uma IST. Tal fica a dever-se à maior probabilidade de HIV nas secreções genitais, sendo, por exemplo, a concentração média de HIV no sémen de homens com gonorreia 10 vezes superior à dos homens apenas infectados com HIV. Deste modo, ao tratar as IST diminui-se a susceptibilidade do não infectado e a infecciosidade do portador.

Até meados dos anos 90 pensou-se que os espermicidas podiam diminuir a probabilidade de infecção pelo HIV durante as relações sexuais e poderiam ser utilizados como microbicidas. Em particular, o nonoxinol 9 mostrou inactivar não apenas os espermatozóides, mas também o HIV, entre outros agentes patogénicos, e criou a esperança de uma protecção suplementar. Contudo, apesar de matar o vírus, estudos com amostras femininas, mostraram a irritação concomitante das mucosas vaginal e rectal e infecções do tracto urinário. Este efeito aumenta a susceptibilidade pós-exposição quando o microbicida já não está activo ou quando não seja utilizado, uma vez que o seu uso passado aumenta a probabilidade de lesões do epitélio. Por ora, há provas de que o uso de microbicidas pode aumentar a probabilidade de infecção pelo HIV (Campos, 2002).

Embora menos óbvia, a transmissão sexual do HIV pode ser afectada pelo ambiente social no qual o indivíduo se insere, nomeadamente, pelas práticas sexuais específicas aceites nesse ambiente e, ainda, pelas propriedades do próprio vírus, sendo que nem todos os sub-tipos do vírus se comportam da mesma forma, pelo que conduzem a taxas de transmissibilidade diferentes (Royce et al., 1997).

No que respeita à transmissão sanguínea, esta inclui a transfusão de sangue ou produtos seus derivados e a partilha de seringas ou de material contendo partículas sanguíneas. Este modo de transmissão é o mais eficaz. A partilha de seringas é a forma de transmissão sanguínea mais frequente, uma vez que as análises ao sangue destinado a transfusões vão sendo uma prática na generalidade dos países desenvolvidos e a esterilização de material médico é realizada na maioria das instituições de saúde. A seroprevalência em indivíduos que se injectam com drogas chega a ser de 60 a 70% nalgumas regiões do globo (Des Jarlais, Friedman, Choopanya, Vanichseni e Ward, 1992, cit. por Quinn, 1996), variando entre 1.4% e 58% em alguma cidades norte-americanas (Rhodes e Malotte, 1996). Em Portugal, a percentagem de positividade para o HIV nas diferentes sub-populações de toxicodependentes que recorreram aos diferentes tipos de estruturas públicas de tratamento da toxicodependência variou, em 2002, entre os 11 e os 21% (IDT, 2002).

A transmissão perinatal ou vertical pode ocorrer in útero, durante o parto ou no período de aleitamento e as taxas de transmissão, na ausência de intervenção, variam entre 15 e 35% e 13 e 52%, dependendo das regiões do globo em análise, sendo os valores mais baixos registados na Europa e nos Estados Unidos e os mais elevados em África (Peckham e Gibb, 1995; Quinn, 1996). A diferença nos valores encontrados relaciona-se em grande medida com o menor aleitamento materno que é realizado no continente Europeu e nos Estados Unidos quando uma mulher é seropositiva. A transmissão in útero ou durante o parto será tanto mais provável quanto mais avançada estiver a doença na mãe, maior for a carga viral, houver baixa concentração de vitamina A, ruptura da placenta, parto prematuro, anemia na mãe e outros acontecimentos que potenciem o contacto entre o sangue da mãe e a criança, para referir os factores mais importantes (Gibb e Tess, 1999; Peckham e Gibb, 1995; Quinn, 1996).

O uso de terapias antiretrovirais durante a gravidez, parto e no período neo- natal, a realização de cesariana, bem como o alimento da criança sem recorrer ao leito materno reduzem o risco de transmissão para menos de 2%16 (Coll, Fiore, Floridia e

col., European Collaborative Study, 2002).

As terapias durante a gravidez e logo à nascença com zidovudine constituem o procedimento profiláctico mais frequente, sendo este fármaco cada vez mais combinado com outros medicamentos antiretrovirais. Como a maioria das transmissões mãe-criança ocorre tardiamente durante a gravidez ou tem lugar durante o parto e após o nascimento (Coll et al., 2002; Gibb e Tess, 1999), espera-se que o impacte da profilaxia seja maior no 3º trimestre de gravidez e durante o parto. Há assim, recomendações no sentido de não expor o feto nos seus primeiros meses à medicação, devendo haver cuidados adicionais no 1º trimestre de gestação. Com estas precauções pretende evitar-se o risco de toxicidade para o feto, sendo um dos mais frequentes, a anemia do recém-nascido (Coll et al., 2002). Continua, portanto, a haver necessidade de estudos de análise e vigilância da segurança oferecida pelos antiretrovirais durante a gravidez quer para a mãe, quer para a criança exposta a estes medicamentos in útero.

O tratamento antiretroviral do recém-nascido mostra-se também muito importante, devendo começar nas primeiras 24 horas de vida. Uma vez que a criança pode ter anti-corpos da mãe até aos 18 meses, ainda que possa não estar infectada, um diagnóstico precoce da infecção só é possível a partir da pesquisa do vírus, nomeadamente através da Reacção em Cadeia da Polimerase17. Esta pesquisa deve ser

realizada nos primeiros dias, novamente nas primeiras semanas e depois do 3º mês. Considera-se que a criança não está infectada quando obtenha pelo menos dois testes negativos, um dos quais realizado depois da 1ª semana de vida (Coll et al., 2002).

No período de aleitamento com leite materno também se pode verificar a transmissão do vírus da mãe à criança. A probabilidade de transmissão do vírus aos

16 Em Portugal, metade das mulheres seropositivas descobre que está infectada com o HIV/SIDA

durante a gravidez e 10% toma conhecimento desta situação durante o parto. O número de mulheres grávidas infectadas aumentou entre 1999 e 2002, passando de uma taxa de 3.6 para 5 infecções por cada mil grávidas. O número de recém-nascidos infectados diminuiu de 6.5% para 4% devido especialmente ao aumento do número de cesarianas (II Reunião sobre Transmissão Vertical do HIV organizada pela

bebés é maior em mães que ficaram infectadas após o parto, sendo o risco de 29% (IC de 95%, 16-42%) e menor em bebés de mães que foram infectadas no período pré- natal (14%, IC 95%, 7-22%), uma vez que neste último já houve oportunidade de aquisição de anticorpos anti-HIV por parte da criança e a infecciosidade da mãe no período de aleitamento tem probabilidade de ser menor (Dunn, et al., 1992). A substituição do leite materno por outro tipo de leite é aconselhado nos países desenvolvidos em que a mortalidade infantil é baixa e não está relacionada com as doenças infecciosas. Mas os níveis elevados de doenças infecciosas e as deficientes condições sanitárias dos países em desenvolvimento levam a que se considerem os custos de amamentar a biberão mais elevados do que os benefícios que daí podem decorrer em termos dos riscos de infecção pelo HIV nestes países (Dunn et al., 1992).

A transmissão em foco no presente trabalho respeita à infecção por via sexual e será sobre esta que versará a restante informação explorada neste capítulo.