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Os componentes e os ambientes científicos presentes nas narrativas publicitárias, assim como seus desdobramentos (o experimento, a inovação, o lúdico, etc.) e seus personagens (cientistas, especialistas, celebridades e pessoas comuns) estão entre o real e o fictício. Tal característica é comum a qualquer narrativa, mas relacionada ao conhecimento científico apresenta a ciência como o que é possível de ser realizado, concretizado.

A ciência entre a realidade e a ficção pode ser encontrada em todas as narrativas publicitárias que analisamos. Em alguns casos, a realidade é o foco, como no caso de Tiguvon (Figura 17), anúncio em que as imagens da aplicação do produto são reais e a animação apresenta o organismo bovino repleto de detalhes. Mesmo em casos como esse, a animação não deixa de trazer o lúdico, o didático, uma forma de simulação da realidade, uma simplificação da reação do produto, o enaltecimento dos resultados. Todas essas questões só reforçam que a publicidade constrói suas narrativas no que é possível acreditar, e isso não necessariamente significa que imagens reais são recursos suficientes.

Figura 17 – Tiguvon (30”)

Fonte: Acervo da pesquisa.

Por conta disso, as personagens envolvidas com a ciência podem ser diversas: cientista, o especialista, a celebridade e o sujeito comum. Podem ser verdadeiramente médicos, engenheiros, dentistas, donas de casa e pais ou atores que interpretam qualquer um desses papéis. É permitido à publicidade trazer os fatos, mesmo que científicos, a partir do fictício, como são as simulações de experimentos da Chevrolet e da Ford. Os cenários podem ser futuristas e os laboratórios animados, mas eles possuem a função de representar, de algum modo, o mundo no qual vivemos e os elementos que podemos reconhecer e idealizar a partir do nosso cotidiano.

É por conta desse protocolo de veridicção (MOTTA, 2013) que os produtos podem ser úteis, eficientes, inovadores, desenvolvidos e testados em laboratórios, fazem um bem que não é apenas físico, por nos permitirem ser mais belos, jovens e saudáveis. No final das contas, eles nos trazem benefícios que melhoram a autoestima, a confiança e, assim, podemos ser mais felizes.

Considerando que a narrativa publicitária está entre o real e o fictício, ela pode acionar ambos conforme seus objetivos. Em nosso corpus, temos a presença de personagens que são especialistas de fato, outros que apenas interpretam especialistas. Temos recursos que privilegiam a semelhança com a aparência real, outros se favorecem da abstração para ter mais expressividade. Esse segundo caso é o que acontece no anúncio da Pepsi, um exemplo interessante para apresentarmos o contrato que temos, cada um de nós, com a publicidade: real ou fictício, o importante é que seja possível (Quadro 10).

Quadro 10 – Ficção e realidade em Pepsi – Matemático (30”) Onde a ficção e a realidade se

destacam no anúncio?

No roteiro publicitário: apresentação; argumentação.

Na estrutura básica da narrativa: situação inicial; perturbação; transformação; resolução.

Qual trecho específico da sinopse-resumo apresenta a ficção e a realidade?

O anúncio é narrado por uma voz masculina em off e as cenas ilustram o que é dito. O primeiro momento mostra o produto sendo retirado da prateleira de um supermercado por uma mulher que está fazendo compras e a locução afirma que comprando Pepsi podemos economizar. A cena muda para sala de estar, na qual uma mulher, com cabelos presos, óculos e uma camisa decotada, explica uma questão matemática para um jovem que olha para ela como se estivesse hipnotizado pelo decote. O locutor contextualiza a economia feita como possibilidade de pagar aulas de matemática para os nossos filhos. A cena muda, o adolescente soluciona problemas matemáticos em um quadro enquanto consome o produto anunciado. A locução diz que há possibilidade de os nossos filhos se tornarem gênios das Ciências Exatas. Em outra cena, aparecem três homens jovens que tentam resolver um problema de algoritmos em um computador, quando o adolescente chega com o produto em uma mão e com a outra mão aperta uma tecla e resolve tudo. Nessa cena, o narrador diz que nossos filhos podem conseguir vagas na melhor universidade do mundo. Surge então um homem em um carro de bombeiro na rua, chegando com um cheque de premiação. Então, a personagem que economizou ao comprar Pepsi, que nesse momento cuida das flores, olha para rua e vê que o homem premiado é o seu filho. A narração acrescenta que após tudo que ocorreu, os nossos filhos podem ganhar um famoso prêmio internacional de física e resolva nos dar o dinheiro, tornando-nos milionários por ter escolhido Pepsi [...].

Observações sobre o trecho destacado

O encadeamento gerado por economizar comprando Pepsi se dá como um efeito dominó de possibilidades, partindo de um fato comum ao extraordinário. Os personagens e suas ações são caricatos e, com auxílio da trilha sonora, constroem uma narrativa que apesar de cômica e divertida traz pontos que, por mais inacreditáveis que sejam, é verossímil. A comicidade, nesse caso, é o que permite os exageros, as piadas, o extraordinário, sem descolar-se completamente da realidade. Tanto que para reforçar essa ligação, recorre-se a uma área do conhecimento reconhecida pela sua dificuldade e com prestígio pela tradição científica que possui. É enfatizada também a trajetória que compreende tanto a genialidade, quanto estar presente em lugares reconhecidos como ambientes de conhecimento, como a universidade. A própria referência ao prêmio internacional de física, possível de associar ao Nobel – premiação tradicional oferecida às contribuições relevantes em diversas áreas do conhecimento científico –, que além de reconhecimento social também oferece uma quantia milionária em dinheiro. Tudo junto reforça a “sacada” da marca: pode ser bom, pode ser inteligente, pode ser Pepsi.

O jogo entre o real e o fictício é muito evidente na narrativa presente no anúncio da Pepsi. Gradativamente a história se desloca do que é corriqueiro, completamente normal para uma mãe, para os acontecimentos praticamente inacreditáveis, mas baseados na realidade proposta: uma simples compra pode torná-la milionária (Figura 18).

Figura 18 – Pepsi – Matemático (30”)

Fonte: Acervo da pesquisa.

É perceptível que a proposta da marca é imprimir em seu anúncio um posicionamento descontraído, que permita construir uma narrativa que pode ser verdadeira, ainda que excessivamente caricata. Tudo gira em torno do que pode ser: não precisa ser verdade, basta que seja possível.

Assim podemos entender as estratégias publicitárias de modo geral, mesmo a ciência reconhecida pelo compromisso com o real a partir da sua racionalidade, pode ser pensada como maneira de acrescentar ficção à narrativa. Nesse caso, não temos o conhecimento científico demostrando, mas sim a carreira científica como argumento de prosperidade, como um investimento que pode trazer retornos financeiros e sociais, já que nesse anúncio a proposta é mostrar como comprar o produto pode ser um investimento.

O anúncio da Pepsi é um dos mais instigantes casos presentes em nosso corpus, pois a ciência não está presente como processo de criação, nem como validação da qualidade do produto, nem mesmo como componente, já que se trata de uma bebida. Seu papel é mostrar uma trajetória de prestígio, ou seja, a ciência é reconhecida pela sociedade e pode representar uma carreira de sucesso. As Ciências Exatas, entre elas a Matemática e

a Física, citadas no anúncio, fazem parte das primeiras áreas do conhecimento que se consolidaram como científicas e, nesse sentido, foram também algumas das primeiras a serem reconhecidas pelas importantes contribuições à sociedade por meio das suas descobertas sobre os fenômenos naturais (SANTOS, 2010), fator que as leva a serem a motivação de premiações como o Prêmio Nobel41.

Outro ponto que é importante destacar é a caracterização da personagem, em alguns momentos, como alguém genial e pouco esforçado. Tais situações reforçam a noção de que a ciência pode ser uma carreira para pessoas inteligentes, com vocação natural para aprender e conhecer. Essa forma de trazer a genialidade ratifica uma pretensa percepção que o público receptor já teria, pois entendemos que a proposta da publicidade é que os sujeitos reconheçam os temas, as personagens e suas ações a partir das imagens que permeiam o cotidiano. Para muitos a ciência é o lugar de conhecimentos extraordinários, e isso é reforçado no anúncio da Pepsi.

Voltamos a destacar que o anúncio cria todo esse contexto e possibilidades como forma de sustentar o argumento principal: escolher Pepsi é uma forma de ser inteligente, pois se trata de produto barato em relação aos concorrentes. Por esse motivo, mesmo que tudo seja extraordinário, consideramos que a narrativa pode ser relativizada, entendendo que o exagero é expressivo, e se constitui a partir do dia a dia. Então, mesmo que não tenhamos a intenção de ser cientistas, economizar pode ser uma saída para investimentos seguros no futuro, em carreiras que tragam retornos. Enfim, podemos configurar a mensagem a partir do que desejamos e acreditamos que só depende de receber nosso investimento para acontecer.