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A filosofia política anglo-saxónica

No documento Carlos O live ira Santo s (páginas 54-58)

Fundamentos Políticos do Marketing Social

II.2. A filosofia política anglo-saxónica

O primeiro grande campo de referências da inserção do marketing social nas políticas públicas que importa salientar e entender é o da filosofia política anglo-saxónica (cf. Meyer, 1994), a também chamada tradição anglo-saxónica (cf. Carrilho, 1994) ou mesmo pensamento político britânico (cf. Armitage, 2006)91, ou seja, aquele conjunto de ideias emergente no século XVII e continuado até hoje através de uma reflexão permanente, de diversas variantes e amplificações, de inúmeros revivalismos ou reinterpretações.

É certo que não se trata este de um campo estanque nem sequer homogéneo. Não lhe sendo alheio o espírito da Magna Carta e da common law, no campo da filosofia política, Platão e Aristóteles, evidentemente, mas também Epicuro, Tucídides, Demócrito, Cícero, Aquino, Maquiavel, Lutero, Calvino, Erasmo, Bodin, Montaigne, Grotius, Spinoza, Descartes, Montesquieu, Tocqueville, entre outros, constituíram para ele referências muito importantes, assim como, fora da filosofia política, Euclides, Lucrécio, Galileu ou Newton lhe foram essenciais.

Também não é um campo homogéneo. Nele se debateram diferentes conceitos sobre o estado natural, vários contratualismos e a sua contestação, racionalismos negados pelo cepticismo, diferentes conceitos de justiça, de justificação do Estado e vários utilitarismos. O certo é que, pelo processo de checks and balances que o intenso confronto de ideias num mesmo espaço proporciona, o campo do pensamento político britânico, bem articulado com o da teoria do conhecimento, acentuou traços comuns, reforçados por contextos (cf. Skinner, 1978) e pela sucessão de circunstâncias que foram formatando uma autêntica tradição.

Nela podem encontrar-se, significativamente, muitas das raízes compreensivas da abordagem do marketing social nas políticas públicas.

91 Pocock et al., in Armitage (2006, pp. 10-21), denotando a dificuldade da linguagem neste campo, debatem estas designações tendo em conta a diversidade da Grã-Bretanha, o seu império, a potencialidade criativa de cada uma das suas partes, em especial da Escócia, e mesmo tanto a incidência europeia que britânicos tiveram como a que outros europeus nela tiveram.

Acima de tudo o «nascemos livres» («we are born free») de Locke (1690/1997, p. 308), esse primado da liberdade dos cidadãos enquanto indivíduos, tida quer como condição natural passível de ser atribuída pela divindade (cf. Locke, 1690/1997), quer como condição de protecção dos cidadãos face ao Estado (cf. Mill, 1859/1991), no sentido «negativo» que lhe deu Berlin (1958/1969), quer como factor de desenvolvimento (cf. Mill, 1859/1991; Mill, 1861/1991), nomeadamente de desenvolvimento económico (cf. Smith, 1776/1909-14), liberdade de duvidar, liberdade de experimentar (cf. Hume, 1739-40; Hume, 1748), inclusive, uma liberdade poética mas profundamente humana, como em Milton (1668), ao abordá-la na perspectiva da obra divina:

«Mas o Homem senhor sobre homens, não o fez; reservando esse título para si, deixando os homens livres do jugo humano.»92

Dela deriva uma concepção de justificação do Estado e de representação dos cidadãos, o governo representativo, por consentimento (cf. Locke, 1690) e «a matter of choice» (Mill, 1861/1991, p. 205), base da confiança que lhe é atribuída, mas indissociável da sua obrigação de promover o bem-estar da sociedade civil:

«A influência do governo no bem-estar da sociedade pode ser considerada ou estimada por referência a nada menos do que o interesse da humanidade.»93

Neste bem-estar, Stuart Mill demarca-se do que chama de «fraseologia dos pensadores franceses» («phraseology of French thinkers»; Mill, 1861/1991, p.

92 No original: «... but Man over men

He made not lord: such title to himself

Reserving, human left from human free.» (Milton, 1668, p. 516)

António José de Lima Leitão, na sua tradução publicada em 1840 (Lisboa: Tipografia J. M. R. e Castro, p. 465), traduz assim estes versos:

«Porém, de homens senhor, não fez um do outro: Para si reservou este apelido;

E quis que os homens, bondoso e justo, Independentes uns dos outros sejam.»

93 No original: «The influence of government on the well-being of society can be considered or estimated in reference to nothing less than the whole of the interests of humanity.» (Mill, 1861/1991, p. 217).

218), sobretudo de Comte, na atribuição a um bom governo dos conceitos de Ordem e Progresso, sintetizados num único molde, e, acima de tudo, na inevitabilidade deste último. Mill lembra que «nas inevitáveis mudanças dos assuntos humanos, novos inconvenientes e perigos crescerão continuamente, devendo ser enfrentados por novos recursos e capacidades, de forma a levar as coisas para a frente ainda melhor do que antes».94

Contra um discurso finalista, o que Mill propugna é mais uma posição funcional, onde o bom governo depende dos cidadãos e existe para neles desenvolver as capacidades que lhe podem assegurar, a ele próprio, aquele adjectivo:

«O primeiro elemento de um bom governo, assim sendo, tendo em vista a virtude e a inteligência dos seres humanos que compõem a comunidade, o mais importante ponto de excelência de qualquer forma de governo é o de promover a virtude e a inteligência das próprias pessoas.»95

E acrescenta:

«No que respeita a qualquer instituição política, a sua primeira questão é a de como incentivar nos membros da comunidade as diversas e desejáveis qualidades morais e intelectuais, ou melhor dizendo (seguindo a classificação de Bentham, mais completa), morais, intelectuais e activas. O governo que melhor o fizer tem toda a probabilidade de ser o melhor em todos os outros aspectos.»96

94 No original: «... in the inevitable changes of human affairs, new inconveniences and dangers continually grow up, which must be encountered by new resources and contrivances, in order to keep things going on even only as well as they did before.» (Mill, 1861/1991, p. 221).

95 No original: «The first element of good government, therefore, being the virtue and intelligence of the human beings composing the community, the most important point of excellence which any form of government can posses is to promote the virtue and intelligence of the people themselves.» (Mill, 1861/1991, p. 226).

96 No original: «The first question in respect to any political institutions is, how far they tend to foster in the members of the community the various desirable qualities, moral and intellectual; or rather (following Bentham’s more complete classification), moral, intellectual and active. The government which does this the best, has every likelihood of being the best in all other respects.» (Mill, 1861/1991, pp. 226-227).

Nestas referências residem os mais básicos fundamentos políticos do marketing social. Mas o pensamento político britânico acrescentou ainda à sua dimensão várias abordagens da teoria do conhecimento que lhe são essenciais.

Irmanado com a razão razoável («raison raisonnnable» (Goyard-Fabre, pp. 48-60) ou a reasonableness de Locke, fundada em Bacon, tão desenvolvida por Hume e John Stuart Mill, problematizada por Whewell, extensível, por Adam Smith, ao terreno económico, a matriz empirista da filosofia política britânica proporcionou os fundamentos para aquela condição activa de que falava Mill, conduzida pelo sentido e pela sabedoria prática, pela experiência, pela observação dos resultados, pela exploração do mundo concreto e pela medida da riqueza do sensível (Goyard-Fabre, p. 30), esse fascínio de Hume (1748/2007) pelas «mais impressionantes observações e instâncias da vida comum».97

Este realismo experimental proporcionou também, sobretudo em Hume, um genuíno cepticismo crítico, não destruidor ou paralisador, mas um incentivo à permanência da experiência e das suas inovações, onde os sentimentos e as paixões não são desconsideráveis.

E tudo isto com um propósito de felicidade que é intuído em Bacon, Locke, Smith ou Hume e que é evidenciado nos utilitaristas, de Bentham a Sidgwick, com particular enfoque social quando Mill acrescenta uma dimensão qualitativa ao princípio da utilidade de Bentham e amplia a felicidade à sua dimensão ética, como «a maior quantidade de completa felicidade, a maior dimensão possível, extensível a toda a humanidade»98, justificando, ainda no âmbito do utilitarismo, «aqueles que conseguem abdicar de si próprios, do prazer pessoal da sua vida, quando, por essa renúncia, contribuem significativamente para incrementar a quantidade de felicidade no mundo».99

O marketing social, enquanto mudança voluntária dos comportamentos sociais dos cidadãos, tem pleno sentido e adquire valor ético por referência a este

97 No original: «... most striking observations and instances from common life.» (Hume, 1748/2007, p. 5).

98 No original: «... the greatest amount of happiness altogether... the greatest extent possible, secured to all mankind.» (Mill, 1863, p. 16).

99 No original: «... those who can abnegate for themselves the personal enjoyment of life, when by such renunciation they contribute worthily to increase the amount of happiness in the world.» (Mill, 1863, p. 23).

conjunto poliédrico construído pelo pensamento político britânico, o de uma sociedade civil fundada na liberdade e numa cultura cívica (civic culture), «uma cultura pluralista baseada na comunicação e na persuasão, uma cultura de consenso e diversidade, uma cultura que permita a mudança mas de uma forma moderada»100, bem como numa política aberta (open polity; Almond & Verba, 1963/1989, p. 13), secundada por uma atitude de pensamento empirista, uma ampla e sustentada economia de mercado que desenvolva o conhecimento e a prática do marketing, sistemas e processos de políticas e de administração públicas que envolvam a preocupação com os cidadãos, a sua representação e participação, a prestação de contas por parte dos orgãos representativos e o escrutínio dos cidadãos sobre a natureza e os resultados da gestão pública.

No documento Carlos O live ira Santo s (páginas 54-58)