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CAPÍTULO 1 A PERSPECTIVA TEÓRICA

1.2 A abordagem teórica pós-keynesiana

1.2.3 Financiamento do investimento: a lógica de atuação do sistema bancário e a

Em economias empresariais, segundo Keynes, o investimento representa a causa

causans na determinação da demanda efetiva e da renda. Para o autor, diferentemente dos

clássicos, para os quais só era possível investir a partir da consolidação de uma poupança prévia, a decisão de investir, em economias com um sistema bancário desenvolvido, precede a necessidade de poupar recursos e, por isto, a poupança agregada é determinada e não determinante do investimento. Neste contexto, destaca-se o papel do sistema bancário como agente central no financiamento do investimento. Com seu potencial de gerar crédito (criar moeda endogenamente), esse sistema possibilita a criação posterior da renda por meio do efeito multiplicador e, por conseguinte, da poupança agregada como um subproduto desse processo (STUDART, 1993).

A decisão de investir, longe de ser uma simples decisão de gasto por parte da firma, tem como objetivo principal aumentar a sua capacidade de criar e de controlar riqueza. A fim de maximizar essa capacidade de acumular, a firma adquire um conjunto de ativos que servirão de instrumentos para as atividades de produção e distribuição (FEIJÓ, 1999).

Na teoria keynesiana, como abordado anteriormente, o investimento implica na compra de bens de grande porte caracterizados por terem longa durabilidade, por serem indivisíveis e por apresentarem um nível de iliquidez elevado, o que, em geral, coloca à firma a necessidade de financiamento externo para arcar com os vultosos recursos envolvidos.

Antes, porém, da concretização do investimento a firma necessitará, temporariamente, de um volume de moeda para pagar as obrigações relacionadas ao interregno existente entre a decisão de investir e a efetivação do investimento. Esta demanda por moeda, a qual Keynes denomina finance, se diferencia daquela que emerge como resultado da atividade corrente do investimento a partir do momento em que ele estiver operando. Isto porque o que caracteriza o finance é que ele requer um adiantamento de dinheiro anterior à disponibilização de poupança, que só será criada após a efetivação do investimento, ou seja, o finance não envolve poupança prévia, mas, ao contrário, sua disponibilidade é uma condição para a geração de poupança, uma vez que o investimento só se efetiva se essa demanda específica de liquidez tiver sido respondida. “Se a produção não se iniciou, ainda não foi gerado nenhum fluxo de pagamento/rendimentos e, por isto mesmo, a poupança – que é uma alocação de renda corrente – não pode ter tido lugar” (CORRÊA, 1996, p. 16)16.

Ainda que nesse momento anterior à aquisição dos bens de capital a firma possa se autofinanciar por meio, por exemplo, de recursos próprios acumulados via lucros passados, para Keynes o finance será ofertado essencialmente por instituições especializadas – os bancos -, que têm a capacidade de criar moeda por meio das operações de crédito. É bem verdade que, se, de um lado, o investimento representa um compromisso de longo prazo para o empresário, que teve como ponto de partida a construção de expectativas num contexto de incerteza quanto ao acerto da sua decisão, de outro lado, para os bancos, responder à demanda por liquidez exigida pelo finance significa reduzir temporariamente sua própria liquidez. Para essas instituições, esse processo, no entanto, será revertido, pois terão sua liquidez restaurada à medida que o investimento gerar renda, e esta desencadear fluxos de pagamentos no sistema econômico que serão depositados na forma de passivo bancário, permitindo, assim, a reposição da liquidez (CORRÊA, 1996).

16Segundo Corrêa (1996, p.20), “(...) o finance é um fluxo, um fundo rotativo que pode ser usado e reutilizado sem absorver novos recursos, enquanto que a poupança é um estoque”.

Do exposto se depreende que, tão logo ocorra a decisão de investir e, com ela, a demanda de liquidez antes mesmo da efetivação do investimento, a relevância do sistema financeiro nesse processo se faz evidente. A “vontade” dos agentes financeiros de se tornarem “menos líquidos” acaba por impor limites financeiros à expansão da atividade produtiva. Em última instância, “(...) as decisões concernentes ao volume de crédito bancário representam (e não as poupanças individuais) o limite financeiro ao financiamento do investimento” (STUDART, 1993, p. 115).

A efetivação do investimento numa economia monetária de produção estará, portanto, relacionada a duas decisões interligadas: de um lado, está a decisão do agente econômico (empresário), fundamentada tanto nas receitas esperadas (expectativas), que resultarão do uso do ativo de capital na produção, quanto na análise do custo do investimento17 e, de outro, a decisão que diz respeito ao financiamento do ativo de capital. Esta, que depende diretamente do comportamento do sistema bancário, envolve uma decisão de se ter passivos financeiros (CORRÊA, 1996). Em outras palavras, a decisão de investir, responsável pela criação da riqueza material da sociedade, só se efetivará se apoiada num sistema financeiro articulado e complexo, que tenha um sistema bancário organizado, com capacidade de aglutinar enormes montantes de capital e de criar moeda. Esse sistema, ao controlar a quantidade de crédito bancário, e as instituições financeiras, ao restringirem a disponibilidade de finance, podem restringir o nível da atividade econômica, a despeito da existência de recursos ociosos (DAVIDSON, 1978 apud AMADO, 2000).

Dadas as características peculiares que envolvem o investimento – entre elas, a longa durabilidade dos bens de capital adquiridos, a indivisibilidade dos mesmos e a iliquidez que dificulta sua conversão em moeda imediata -, seu financiamento requer mais do que recursos de curto prazo (finance). A aquisição do capital fixo impõe sua utilização por um largo período de tempo, ao longo do qual o empresário precisa alargar prazos para o pagamento de suas dívidas. A transformação de obrigações de curto prazo em dívidas de longo prazo implica na utilização de mecanismos de consolidação financeira num processo denominado

17 De acordo com Amado (2000), o processo que leva à decisão de investir baseia-se na análise da eficiência marginal do capital – “(...) taxa que equaliza o valor presente do fluxo do retorno esperado de um bem de capital ao seu preço de oferta, que é o preço mínimo necessário para, dadas as condições de mercado, induzir a produção de uma unidade extra desse bem de capital” (p.70). Num ambiente caracterizado pela incerteza, os retornos esperados do ativo de capital não podem ser conhecidos por meio de cálculos probabilísticos e nem por qualquer outro método seguro. Daí o caráter incerto da decisão de investir, que se encontra fundamentada em expectativas de longo prazo quanto ao retorno do investimento num futuro distante.

por Keynes de funding18. Se, de um lado, o finance está ligado a um fundo rotativo que

precede a poupança, o funding, por outro, se sustentará na alocação das poupanças individuais que comporão os fundos necessários para a consolidação financeira (STUDART, 1993).

Uma vez desencadeada a produção do bem de capital na indústria que o produz, a partir da decisão de investir por parte dos investidores e do adiantamento de crédito de curto prazo para este fim, uma renda é gerada por meio do multiplicador keynesiano. Parte desta renda, que não será gasta para consumo, retorna ao sistema financeiro na forma de poupança, e será usada para transformar a dívida de curto prazo desses investidores em passivo de longo prazo. Logo, “o funding corresponde a esse processo de „consolidar‟ a dívida de curto prazo, isto é, transformá-la numa relação de longo prazo através da emissão de ações e de títulos” (RESENDE, 2007, p.138), fechando o circuito keynesiano finance-investimento-poupança-

funding. Apesar de o referido circuito ter sido originalmente formulado para o caso de

economias fechadas, o que Keynes e, posteriormente, os pós-keynesianos, queriam afirmar é que o investimento independe de poupança prévia19, e esta, por sua vez, ao resultar do crescimento econômico desencadeado pelo ato de investir, se presta à consolidação da acumulação de capital (RESENDE, 2007). “(...) Do ponto de vista macro, o financiamento ao investimento gera os recursos necessários para a consolidação financeira” (CORRÊA, 1996, p.28).

Na abordagem keynesiana, a transformação das obrigações de curto prazo numa relação de prazo mais alongado, no entanto, está condicionada à existência de detentores de riqueza dispostos a adquirir títulos de longo prazo ou ações ao longo do processo de multiplicação da renda. Numa economia monetária de produção como a economia capitalista, a compra desses ativos não se dá de forma coordenada. Dados os riscos envolvidos nos contratos de longo prazo, os horizontes de aplicação dos investidores e dos aplicadores podem ser distintos.

Por esta razão, a partir da análise de Keynes a respeito da necessidade de uma estrutura de financiamento que tenha como pilares básicos um sistema bancário desenvolvido

18 Em seus escritos, Keynes desenvolveu essencialmente a explicação do processo de finance, deixando o

fundingapenas indicado. De qualquer forma, como afirma Corrêa (1996), “(...) está posto o fato de o autor estar

tratando de uma economia capitalista com uma complexa rede de inter-relações financeiras” (p.27), que permitem aos devedores pagarem seus débitos não com o cash resultante do fluxo de rendimentos gerados pela produção, mas com o cash obtido por meio de débitos. Nessa economia está explícita a assimetria de fluxos de caixa (cash flows) que envolvem o investimento.

19 A taxa de juros também não depende da poupança, pois se constitui num “prêmio” futuro pela renúncia à liquidez no presente; é num fenômeno monetário que se relaciona inversamente com o investimento, sendo determinada pela preferência pela liquidez e pela oferta de moeda, que por sua vez, é definida pelas autoridades monetárias e pelas estratégias de crédito dos bancos (AMADO, 2000; RESENDE, 2007).

(para o finance) e a existência de mercados organizados de títulos e ações (para o funding), autores pós-keynesianos defendem a relevância da infraestrutura institucional (instituições e mercados financeiros) por esta possibilitar a diversificação de ativos colocados à disposição das unidades superavitárias, bem como a administração de estruturas passivas e ativas com diferentes horizontes de maturação (STUDART, 1993).

Há que se ressaltar, portanto, que o financiamento do crescimento econômico necessita de um sistema financeiro muito mais complexo do que o de simples intermediador entre investidores e poupadores, como apregoado pelos clássicos20. A participação ativa do sistema bancário na determinação do volume de financiamento do investimento e a existência de mercados financeiros que possibilitem inter-relações complexas entre os agentes econômicos mostram a relevância de se ter um ambiente institucional favorável à realização do investimento, ainda que a fragilidade e a instabilidade financeiras possam ser meramente reduzidas numa economia monetária de produção (FREITAS, 2010).

Em que pese o papel fundamental do sistema financeiro no financiamento do investimento, não há um modelo que possa ser considerado ideal para apoiar o desenvolvimento econômico. Zysman (198321, apud HERMANN, 2010), ao fazer uma comparação dos sistemas de financiamento a longo prazo de diversos países, observou que, tanto aqueles baseados em mercados de capitais quanto os sistemas financeiros baseados em crédito, tiveram êxito quando utilizados.

Segundo o autor, os sistemas financeiros baseados em mercados de capitais caracterizam-se pelo financiamento por meio da emissão de títulos de propriedade (ações), por parte da firma, ou de dívida (por exemplo, debêntures) no mercado de capital. Além disso, são marcados pela segmentação dos mercados no que se refere à captação e à aplicação de recursos. Os bancos comerciais, captadores de depósito à vista restringem-se ao financiamento apenas do capital de giro e outros segmentos de curto prazo. São exemplos clássicos desse tipo de sistema os Estados Unidos e a Inglaterra. Os sistemas financeiros baseados em crédito, por sua vez, têm o sistema bancário como principal elemento de intermediação no financiamento externo do investimento. Seja por meio do crédito essencialmente privado – em que grandes bancos universais internalizam o processo de financiamento de longo prazo como, por exemplo, na Alemanha -, ou por meio do crédito

20 Em última instância, o financiamento se constitui “(...) um problema a ser resolvido no sistema monetário, não na interação entre investidores e poupadores, onde quer que esta última possa se dar” (CARVALHO, 2003, p.4). 21 Zysman, J. Governments, Markets and Growth. London: Cornell University Press, 1983.

governamental – em que o crédito de longo prazo é estendido fundamentalmente por meio de grandes bancos de desenvolvimento ou de agências governamentais, como na França e no Japão -, a exigência de vultosos recursos para a realização e consolidação do investimento se fez presente em todos os países que buscaram se industrializar.

A bem da verdade, no entanto, mesmo nos países considerados hoje industrializados e, muito mais, nos países em desenvolvimento, o financiamento do investimento, necessário aos seus processos de industrialização, esteve apoiado em sistemas baseados em crédito governamental, com forte participação de bancos públicos, ainda que contando também com bancos privados e com financiamento externo por meio de empresas e governos nos mercados financeiros internacionais (HERMANN, 2010). Em países em desenvolvimento como o Brasil, por exemplo, onde os mercados de capitais eram pouco desenvolvidos e o sistema financeiro apresentava deficiências estruturais22, formou-se uma estrutura de financiamento tendo o Estado como financiador e, em muitos momentos, como principal articulador dos mecanismos de financiamento do desenvolvimento (STUDART, 2008).

Como dito anteriormente, por envolver grandes incertezas e impor elevados custos, embora possa trazer também elevadas taxas de retorno não apenas no âmbito privado, mas também nos âmbitos macroeconômico e social, o investimento traz consigo riscos que nem sempre os bancos privados estão dispostos a assumir. Ao definirem suas ações sob a lógica da valorização da riqueza e da preferência pela liquidez, os bancos e as demais instituições financeiras privadas, num contexto de incerteza e de irreversibilidade, preferem não financiar setores e/ou atividades que apresentam elevados riscos, ainda que estes sejam setores essenciais para o desenvolvimento econômico e social.

Esse comportamento não deve ser interpretado como uma falha de mercado, mas como resultado da dinâmica concorrencial constitutiva da economia capitalista, que leva os agentes econômicos privados a buscarem continuamente a valorização e a apropriação da riqueza por meio de “(...) estratégias de produção ou construção de vantagens competitivas, com vista à obtenção de ganhos extraordinários vis-à-vis seus concorrentes” (FREITAS, 2010, p. 329). Não é, portanto, mera coincidência que o financiamento do desenvolvimento econômico em diversos países tenha se dado com predominância de sistemas de crédito público que tinham os bancos públicos como principais agentes, especialmente em momentos que requeriam grandes blocos de investimento em setores líderes do desenvolvimento.

22 Para uma leitura mais detalhada sobre a estrutura básica do sistema financeiro brasileiro à época do processo de industrialização no Brasil, consultar Corrêa (1996).

Esta função de “completar” o mercado de crédito por meio da provisão de recursos a setores desassistidos e estratégicos para o desenvolvimento constitui uma das justificativas de criação e atuação dos bancos públicos, de acordo com Hermann (2010). Para impulsionar o investimento, o banco público deve ser capaz de disponibilizar linhas de financiamento com condições viáveis – prazos adequados e custos mais baixos – relativamente às oferecidas pelas instituições privadas, caso estas se interessem em participar do mercado. Segundo a autora, o banco público pode agir assim porque a ele é possível não embutir em suas taxas de juros o mesmo grau de risco do setor privado, dado que suas taxas de juros não devem ser definidas com base em metas de lucro, mas, sim, de equilíbrio financeiro. Além disso, os bancos públicos “(...) podem ter como parte de sua „missão‟ a de assumir alguns tipos de riscos rejeitados pelas instituições privadas” (HERMANN, 2010, p.4), contando, para isto, com o apoio do Tesouro Nacional na criação de mecanismos de compartilhamento de riscos e de perdas.

Outro elemento que justificaria a presença de bancos públicos na economia é a necessidade de autonomia financeira para a implementação de políticas de desenvolvimento, o que exige uma estrutura de funding pouco dependente de recursos orçamentários convencionais. Quanto maior a dependência de tais recursos, tanto mais os bancos públicos tenderiam a se tornar meros prolongamentos do Tesouro Nacional, pois que estariam sujeitos às mesmas restrições de natureza fiscal e macroeconômica que influenciam este órgão. Contudo, segundo Hermann (2010), os bancos públicos tendem a ter mais autonomia financeira em relação ao Tesouro Nacional porque têm a possibilidade de recorrer a fontes de

funding mais diversificadas – poupança doméstica voluntária ou compulsória, empréstimos de

outros bancos (nacionais ou estrangeiros), ou mesmo, reinvestimento do excedente operacional.

Além disso, segundo a autora, a maior autonomia financeira dessas instituições será mais assegurada se suas estruturas de funding não tiverem elevada dependência da captação de recursos em mercado, pois isto traria limitações às suas atuações, além de resultar em custos de funding mais elevados ou, em fases de expectativas pessimistas no mercado, provocar uma insuficiência de recursos. Com o atributo de maior autonomia financeira, essas instituições podem atuar também com maior autonomia política na alocação de recursos, concentrando poupança e coordenando sua aplicação em grandes projetos estratégicos de desenvolvimento.

Por fim, outra justificativa para a criação dos bancos públicos diz respeito à sua capacidade de atuação anticíclica no mercado de créditos. Isto porque, ao contarem com outros recursos para além daqueles previstos em orçamento, especialmente com recursos “extra-mercado” – por exemplo, fundos parafiscais, resultantes de contribuições destinadas a programas de desenvolvimento -, esses bancos têm a possibilidade de expandir suas operações mesmo em períodos de retração econômica e, portanto, de restrição orçamentária, contribuindo para a retomada do crescimento econômico.

Diante do exposto, pode-se afirmar que os bancos públicos são instituições pragmáticas e idiossincráticas (HERMANN, 2010), que acabam por se verem diante de uma dupla função. À luz das características da lógica de atuação do sistema bancário privado - lógica esta assentada na busca da valorização e da conservação da riqueza -, os bancos e as instituições financeiras públicas devem, de um lado, suprir as necessidades de financiamento de setores e atividades prioritários ao desenvolvimento econômico preteridos pelos bancos e instituições privadas e, de outro, atuar de forma anticíclica quando a economia entra em fase de declínio, proporcionando uma fonte estável de recursos para os investimentos produtivos e para as atividades de caráter social, num momento em que os bancos privados contraem o crédito devido à sua preferência pela liquidez e à sua aversão ao risco (FREITAS, 2010).

Como “braços financeiros” de políticas voltadas para o crescimento e para o desenvolvimento econômico (HERMANN, 2011, p. 397), uma terceira função dos bancos públicos federais está relacionada ao desenvolvimento regional à medida que têm a possibilidade de construir canais de direcionamento do crédito para fomentar o desenvolvimento econômico e a infraestrutura em regiões com baixo desenvolvimento.