CAPÍTULO 1 A NACIONALIDADE COMO DIREITO UNIVERSAL
1.3 Soberania dos Estados versus direito internacional dos apátridas à nacionalidade
1.3.2 A flexibilização dos ideais do Estado a partir da implementação dos princípios de direito
A construção da soberania se levantou como uma das grandes bandeiras que
permitiram a convivência organizada e evolutiva da sociedade em âmbito internacional. Foi
marco no que cerne à estrutura social dos homens em coletividade, pois a partir da implantação do
Estado dotado de um poder soberano, vários direitos e liberdades fundamentais já garantidos
internacionalmente, foram assegurados em âmbito interno dos países, e mais, foi-se possível
vislumbrar suas efetivações, ainda que restritas aos povos cujos Estados possuíam tal interesse.
Assim, o surgimento do ideal de Estado moderno e o finco de seu pilar mestre, a soberania,
mudaram completamente a óptica de análise do Direito Internacional e da concepção de dignidade
humana, já que até então não havia uma estrutura estatal forte que preservasse os interesses dos
povos em seus territórios respeitando também os direitos alheios dos demais Estados que também
surgiam ao redor e as diretrizes da comunidade internacional.
Contudo, ao mesmo tempo que trouxe inovações e representou um divisor de águas
para a concepção e instituição do Direito Internacional como importante ramo do próprio Direito
em si, a criação do Estado e o fortalecimento de seu poder soberano, sobretudo internamente,
geraram reflexos não tão desejados assim no cerne global; sobretudo, no que se refere a
determinados direitos fundamentais, como é o direito de nacionalidade.
A problemática se inicia quando a soberania começa a ganhar ares mais elevados do
que os planejados ou desejados pelo homem na busca da efetivação dos seus direitos sob um
prisma de coletividade. A partir do século XX, se inicia uma nova fase de intenso e agressivo,
apesar de implícito, imperialismo, onde a soberania dava as cartas do jogo e comandavam
praticamente todas as formas de relações internacionais, sejam culturais, sociais, políticas,
jurídicas, burocráticas ou econômicas. É nesse contexto, de uma soberania desenfreada, que
começa a se observar o desrespeito aos direitos fundamentais do homem
314, como os são os
direitos humanos, e em especial, o direito de nacionalidade, já que dentro de seu poder absoluto,
muitos Estados se limitaram a se preocupar apenas com o que ocorria dentro de suas fronteiras,
limitando-se atuar além disso apenas quando houvesse um juízo de conveniência e oportunidade
baseado em estratégia geopolítica ou rentabilidade, o que gerou por a total negação do
reconhecimento e do respeito às culturas diferenciadas e valorização do ser humano que com
314 Cf. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de
elas se pactuasse, alargando ainda mais os patamares de intolerância
315e um ideal de
preconceito, discriminação e xenofobia à diversidade figurada na pessoa do estrangeiro
migrante, em foco, os apátridas. Porém, a triste realidade não mascara as consequências, e
enquanto quem estava dando as cartas era a soberania, o que se perdia não eram fichas ou
dinheiro, mas a dignidade humana em si, e pior, uma quantidade incontável de vidas e famílias,
como os apátridas, que a mercê de qualquer amparo mínimo ou tutela específica, já que nem
nacionalidade tinham, quiçá voz para reivindicar, definhavam nas fronteiras e barreiras
levantadas pela soberania e pelo absolutismo do Estado. Por isso o apátrida, ou todo indivíduo
ou pessoa deslocada
316que encara as portas estatais fechadas para si com barreiras nacionais,
Deve ser considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito limite que põe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-nação, do nexo nascimento-nação àquele homem-cidadão, e permite assim, desobstruir o campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista de uma política em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal, nem mesmo através da figura dos direitos humanos.317
Daí, dentro das regras de dignidade humana amplamente disseminadas no
contexto do mundo globalizado atual, e sobre a égide de que de forma alguma "[...] a
soberania implica que o Estado possa furtar-se às regras do Direito Internacional, quando
submetido à ordem jurídica internacional; ao contrário, o Estado não é soberano se não está
submetido direta e imediatamente ao Direito Internacional"
318e da óptica de que "[...] a
limitação da soberania não decorre da vontade do Estado, mas da necessidade de coexistência
de sujeitos do Direito Internacional"
319, cabe um estudo breve sob a necessidade, não teórica
ou de âmago filosófico, mas que emana do seio do próprio homem, da flexibilização do ideal
315 Cf. WINCKLER, Silvana. A condição jurídica atual dos imigrantes no cenário internacional. In: AGUIAR, Odílio
Alves (Org.). Origens do totalitarismo 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p. 119-120.
316 Tal expressão vem do inglês "displaced persons" que surge durante as guerras mundiais do século XX com o fim
de assinalar e se referir às minorias que estavam à mercê de qualquer amparo assistencial e institucional do Estado, através de suas várias facetas, como a tutela da lei, de políticas públicas, da proteção jurisdicional, etc. Em suma, "[...] foi inventada durante a guerra com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas, por meio do simplório expediente de ignorar a sua existência." ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 313. Essas minorias de pessoas deslocadas, como o são os apátridas e refugiados, surgiram no próprio processo de criação dos Estados, onde sua diversidade não teve voz frente ou junto às demais pluralidades que se uniam para formar o Estado e instituir o caráter soberano de seu poder, e daí ficaram à margem/deslocadas das leis ordinárias criadas para priorizar e garantir os direitos dos nacionais. Assim, desde a criação do ideal de Estado soberano moderno,essas minorias são vistas por estes como pessoas a serem assimiladas ou liquidadas. Cf. ARENDT, op. cit., p. 306. Contudo com a afirmação dos direitos humanos na Declaração de 1948, a segunda opção ficou praticamente inviável sob um cerne de respeitabilidade e reputação internacional perante os demais Estados; contudo, não favoreceu o desenvolvimento da primeira alternativa, que ainda permanece estagnada, e que por isso se apresenta como foco da pesquisa deste capítulo.
317 AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer - O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 141. 318 CAMPOS, Maria da Conceição Oliveira. O princípio das nacionalidades nas relações internacionais. Belo
Horizonte: DelRey, 2003. p. 195.
de Estado soberano absoluto e indiferente aos problemas internacionais atuais, em específico,
a afirmação do direito de nacionalidade e outros a ele inerentes. Pois, ao mesmo tempo que a
construção e afirmação do Estado soberano foi árdua e o processo longânime, a luta pelo
reconhecimentos dos direitos do homem perpassa esse tempo, e se funda desde quando o
homem individual resolveu se estabelecer como homem em sociedade; deste modo, essa
evolução deve sempre caminhar para o crescimento e maior afirmação dos direitos
fundamentais do ser humana, e jamais regredir, pois "[...] os tratados de proteção dos direitos
humanos consagram, ademais, parâmetros protetivos mínimos, cabendo ao Estado, em sua ordem
doméstica, estar além de tais parâmetros, mas jamais aquém deles.”
320Daí o Estado estar para
servir, pelo menos, aos direitos mínimos e basilares internacionalmente assegurados.
A globalização acarretou a liquidez das fronteiras e a interdependência das relações entre sujeitos, não mais permitindo que o Estado se apoie em sua soberania para justificar a não intervenção em sua jurisdição quando se verifica que a sua atuação discricionária viola direitos básicos do indivíduo. Isso porque tais violações não comprometem somente a dignidade daquele que sofreu a lesão, mas diz respeito também a todos os demais integrantes da sociedade internacional. Nessa perspectiva, sendo a nacionalidade direito humano básico de todo indivíduo, deve ser assegurada universalmente, em todos os tempos, espaços e circunstâncias, pois é um direito que, por vincular o Estado e a pessoa em direitos e deveres e, como decorrência, conferir ao ser humano uma identidade sociocultural e também jurídica, fundamenta toda a estrutura do mundo civilizado como hoje assim é entendido. Ela pressupõe a inclusão do ser humano a um ordenamento jurídico que o proteja e lhe garanta direitos, transformando-o em cidadão local, regional e global; nesse passo, ela fundamenta o direito a ter direitos, pois confere relevância às necessidades e reivindicações individuais e de grupo.321
Assim, o mundo nos dias de hoje se apresenta sob um estado defensivo ao extremo, já
que há a uma imensa dificuldade de conservação e até de se alcançar a paz, que a cada dia se
apresenta como o sonho de consumo global inatingível; alia-se a isso a grande e crescente
interdependência, seja ela cultural, ecológica, social, jurídica-política, econômica, dentre muitas
outras, que acabaram por tornar o mundo numa enorme 'aldeia global', que se apresenta desejável
em vários momentos, mas repulsiva em inúmeros outros devido aos incontáveis conflitos devido à
necessidade de afirmação da soberania e a uma total degradação do ser humano. Contudo, em um
mundo onde tudo está conectado e próximo a apenas um clique, onde nada é estranho ou
desconhecido, onde a beleza em vários momentos se confunde com a própria diversidade, é
inadmissível o Estado fincar limitações à efetivação de direitos fundamentais a pessoas que batem
às suas portas, sob o fundamento do discurso "não tenho nada a ver com isso, e não é meu
problema, pois são estrangeiros", desvinculando a noção de nacionalidade do ideal de ser humano
320 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 13. ed. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 227.
321 SERRAGLIO, Priscila Zilli; BORTOLOTI, José Carlos Kraemer. A nacionalidade como direito humano
fundamental. In: MOSTRA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA E EXTENSÃO COMUNITÁRIA, 7.; MOSTRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO IMED, 6., 2013, Passo Fundo. Anais .... Passo Fundo: IMED, 2013. p. 12.
digno e justo, quando as próprias origens do Estado se deu a partir de diversidades
322e
pluralidades que se uniram sob uma voz a fim de garantir direitos e liberdades mínimas e basilares
em um território e a todos que o considerassem como pátria.
O Estado não se concebe isoladamente e é precisamente o que o distingue do império; desde então o conceito de soberania não pode receber um senso absoluto, e significa somente que o Estado não é subordinado a nenhum outro mas que deve respeitar regras mínimas garantindo o mesmo privilégio a todos os outros.323 (tradução nossa).
Na pesquisa até então aqui realizada, muito já se falou da evolução do Estado e do
desenvolvimento de seu poder supremo interno e a observância à soberania externa, e ela
nunca cessou, mas contínua a passos largos se aperfeiçoando; daí, pode a humanidade estar
novamente no momento de evoluir, e melhorar ainda mais os conceitos e institutos criados
para formatar sua vida digna e justa, como o Estado e seu soberano poder. Não se busca aqui
negar totalmente a soberania do Estado, como o faz o jurista francês Leon Duguit
324, mas sim
negar o ideal e preconceito, sobretudo ocidental
325, de que uma vez não desejado ou expulso
em um país, o apátrida ou estrangeiro estaria praticamente expulso do mundo
326, sem qualquer
direitos
327; e também estabelecer e propor uma relação harmoniosa e construtiva entre direitos
322 Cf. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de
Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 303.
323 DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Droit international public. 5. ed. Paris: LGDJ, 1994. p. 83.
324 Em seus pensamentos Leon Duguit faz duras e diretas críticas à noção de soberania e como ela se reflete no âmbito
nacional ou internacional. Ele aponta várias dúvida e falhas sobre os pressupostos da soberania em si, como por exemplo, em relação aos seus limites, já que entende e vislumbra um dilema irresistível: ou o Estado é soberano de fato e daí só se determina pela sua própria vontade sem qualquer inferência externa ou interna (não há regra imperativa que o limite ou estabeleça parâmetros a ser seguido pela maquina estatal e, por consequência, observar-se-ia o esmagamento do indivíduo e o sufocamento de seus direitos pelo próprio Estado), ou o Estado está submetido a uma regra imperativa, supraestatal, que emana dos primórdios dos valores do home, que por sua vez o limita, e, então, por isso, não é soberano de verdade. Além disso, Duguit também faz duras críticas à própria origem da soberania, pois põe em xeque o caráter absoluto e intocável que o Estados tentam revestir seu poder soberano, já que se a soberania é uma força suprema, incontestável, só poderia ter sido fruto da criação de um ente superior ou de uma força supraterrestre, ou seja, em outras palavras, o próprio Deus, e difícil acreditar que Deus se preocuparia em oscilar entre nações o desejo por degradar o homem a partir das barreiras impostas pelo poder soberano; em suma, sob uma égide religiosa ou não, uma força superior não criaria algo que concede privilégios quase infinitos e incontestáveis a partir de uma onipotência do Estado, o que facilitaria o abuso de poder e seu uso contra o próprio homem. E ainda sobre a origem, do lado oposto, se há a afirmação de que a soberania advém e emana do povo para o Estado, não há qualquer prova irrefutável e aceita sob o prisma da dignidade humana que denota que a vontade coletiva naturalmente possa se sobrepor à individual, ou ainda que a vontade coletiva valha mais que a individual e por isso possa legitimamente se sobrepor e subjulgar as minorias, já que, mesmo sendo coletiva, continua sendo vontade humana, vinculada aos princípios, direitos e valores do homem em si, e, daí, não poderia afirmar que uma vontade humana pode se impor sobre outra. Afirma, ainda, que a soberania decorre da noção de serviço público, ou seja, da assistência que o Estado dá ao seu povo, pois essa é a fonte da força e da moral do Estado moderno. Cf. DUGUIT, Leon. Traité de droit constitutionnel. 3. ed. Bordeaux: J. Bière, 1927. v. 1. p. 551-592
325 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade e desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e suas
alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 22.
326 Cf. AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2004. p. 327. 327 "Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais
leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los." ARENDT, op. cit., p. 329.
fundamentais, como o direito de nacionalidade e outros direitos ou princípios internacionais e
o ideal de poder soberano estatal, que por sua vez, não se apresenta de forma ilimitada e
absoluta quando o cerne da questão é a afirmação de direitos e princípios humanos
internacionalmente consagrados, pois "[...] a soberania, inclusive externa, do Estado [...] deixa
de ser, com eles, uma liberdade absoluta e selvagem e se subordina, juridicamente, as duas
normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos.”
328Outra característica é que o poder do Estado não é ilimitado. Jellinek desenvolve o pensamento de que a soberania está subordinada a certos limites, e, o Estado encontra sua limitação na existência de uma ordem determinada. Assim, é negado o poder absoluto e ilimitado ao Estado. Deve-se ressaltar que a soberania não é compatível com a subordinação a uma vontade concreta, mas nada impede que se sujeite a uma ordem jurídica. O fundamento básico do Direito se sustenta no fato de que o Poder Público, para se legitimar, deve organizar-se em um Estado, autolimitando seus poderes e criando mecanismos de proteção às minorias. Este é o papel das Constituições, que são a base da organização política, instituindo os poderes públicos, definindo-lhes as competências e fixando direitos e obrigações do indivíduo face ao Estado. Por esta razão, o Estado e os indivíduos devem obedecer às disposições das leis promulgadas pelo Poder Estatal.329
Nesse contexto, a única via de efetivação dos direitos humanos está na restauração ou no estabelecimento dos direitos nacionais. Isso contribui para que se entenda porque as pessoas se apegam tão desesperadamente à sua nacionalidade, uma vez que a perda desta implica em uma espécie de sublimação de proteções que a condição de nacionalidade garantia anteriormente.330
Pois, diante de uma irrestrita e absoluta soberania estatal e do poder ilimitado do
Estado, na situação dos apátridas e demais pessoas que carecem de uma assistência nacional para
efetivar de forma mínima seus direitos fundamentais, dentre eles a dignidade e a nacionalidade,
quando barrados pelas fronteiras, lhes restavam apenas o reconhecimento de serem considerados
seres humanos; ou não. Esta situação apenas vem confirmar a insuficiência na qual, muitas vezes,
a noção de dignidade da pessoa humana, tida em um supraprincípio norteador do próprio direito e
das relações internacionais, naufraga. Dizer que essas pessoas possuem sua dignidade
abstratamente reconhecida, sem que com isso venha alguma ajuda, assistência ou amparo do
próprio Estado que nega ser seu problema, mas que se observa em toda sua fronteira, e sem que
implique alguma inserção prática no universo das relações institucionalizadas pelo direito de
nacionalidade, acaba soando como um mero adorno retórico, um discurso bonito e uma saída
tangencial para a profundidade do problema que hoje afunda a própria humanidade
331.
328 FERRAJOLI, Luigi. A soberania do mundo moderno. Tradução de Carlo Coccioli e Márcio Lauria Filho.
São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 39-40.
329 ARIOSI, Mariângela F. Direito internacional e soberania nacional. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 498, 17
nov. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5942>. Acesso em: Acesso em: 20 jan. 2011.
330 PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. Direitos humanos e transnacionalização: a questão dos apátridas pelo
olhar da alteridade. In: REUNIÃO DO GRUPO DE ESTUDOS SOBRE INTERNACIONALIZAÇÃO DO DIREITO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, 2., 2010, São Paulo. Anais.... São Paulo: IDEJUST, 2010. p. 9.
O conceito de direitos humanos [...] desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas – exceto que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano.332
Daí, várias são as propostas e teorias que visam propor uma melhoria, quiçá
evolução, na concepção atual de soberania do Estados frente a necessidade de efetivação e
garantia de direitos fundamentais como o direito à nacionalidade, mas cabe aqui,expor três em
destaque: a desvinculação do ideal de Estado e de Nação, onde a nova concepção de nação
englobaria numerosas pessoas, concedendo e estendendo, assim, o direito de nacionalidade a todas
elas, e por consequência sugerindo um novo pensamento para o que se afirmaria como Estado; a
flexibilização das fronteiras e limites estatais a partir do breve estudo do cosmopolitismo de Kant no
que cerne ao direito de nacionalidade e a construção do ideal de cidadão universal/mundial; e ideia
de superfederação, como ente responsável por garantir o respeito à diversidade e à nacionalidade
além das limites impostos pelas fronteiras dos Estados.
Primeiramente, cabe abordar a proposta de dissociação dos ideais de Estado
333e de
Nação, para que assim, direitos fundamentais como a nacionalidade fossem estendidos a todos os
necessitados, já que transcendem os limites impostos pelo Estado em suas fronteiras nacionais para
a persecução de tais direitos. Para vários autores, o surgimento e a criação do conceito de Estado-
Nação está atrelado à necessidade que cada um dos aspectos que formam o ideal teve de se
relacionar com o outro; assim, o Estado surge para a afirmar a Nação, e a Nação vê no Estado o
prisma político e jurídico perfeito para institucionalizar e assegurar seus direitos e liberdades. Em
suma, "[...] a nação, produto de uma lei natural da existência, é fenômeno que ocorre, é uma
formação; o Estado é uma formação humana e, portanto, artificial; é fenômeno que ocorre e que
poderia não ocorrer; não possui objetivo formador mas puramente conservador."
334(tradução
nossa). Ou em outras palavras, "[...] o Estado como formação artificial, inclinando-se para a
constatação do fato de que os Estados tendem, e também os recentíssimos acontecimentos históricos
servem de exemplo, a coincidir sem mais com o organismo étnico espontâneo, isto é, com a
nação."
335332 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de
Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 333.
333 "São os Estados os sujeitos clássicos (Originários ou tradicionais) do Direito Internacional Público, além dos
mais importantes dentro do contexto das relações internacionais. São eles as pessoas jurídicas de Direito Internacional por excelência, encontrando-se, ainda hoje, em uma posição absolutamente dominante nas escalas de valor e importância daqueles que atuam no Direito Internacional Público." MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007. p. 403.
334 MANNI, Ercolle. Studio di diritto internazionale publico. Modena: Società Tipografica Modenese, 1928. p. 4. 335 PI Y MARGALL, Francisco. Las nacionalidades. Madrid: Compañia Ibero-Americana de Publicaciones: