• Nenhum resultado encontrado

Capítulo IV – A Quarta Fase das Licitações Públicas no Brasil? Entre tensões e ajustes

3. Reformas legislativas no regime jurídico das contratações públicas específicas

3.2. As tendências nas reformas jurídicas das contratações públicas específicas

3.2.2. Flexibilização dos modelos contratuais

O regime jurídico das contratações públicas em geral, que tem como eixo a Lei nº 8.666/93, foi construído em torno da categoria genérica de contrato administrativo, que se

352

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, “Do Estado Patrimonial ao Gerencial”, p. 25. O texto encontra-se disponível para consulta no seguinte endereço eletrônico: http://www.bresserpereira.org.br/ver_file_3.asp?id=509. O artigo foi originalmente publicado in PINHEIRO, WILHEIM e SACHS (orgs.), Brasil: Um Século de Transformações, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 222-259.

353

Lei nº 9.637/98, art. 1º e Lei nº 9.790/99, art. 1º.

354

Lei nº 9.637/98, art. 5º e seguintes.

355

Lei nº 9.790/99, art. 9º e seguintes.

356

Lei nº 9.637/98, art. 17 e Lei nº 9.790/99, art. 14.

357

Para a compreensão aprofundada sobre o tema das OSs e OSCIPs – e, também, da tendência à desestatização –, conferir artigo de autoria de Floriano de Azevedo Marques Neto, “Público e Privado no Setor de Saúde”, in Revista

prestaria ao cumprimento de uma enorme gama de finalidades, tais como a realização de obras, serviços, alienações, concessões, etc. O Legislativo parece não ter se preocupado em individualizar as categorias contratuais e as normas jurídicas a elas aplicáveis, de modo que se ajustassem às suas especificidades e características. Esta assertiva pode ser facilmente comprovada por meio da leitura do art. 2º da Lei Geral de Licitações e Contratos:

Lei nº 8.666/93

“Art. 2º. As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.

Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste

entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontade para a formação de vinculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada” (grifo meu).

À esta categoria genérica de contrato administrativo a Lei impôs, a não ser em casos pontuais expressamente previstos, a obrigatoriedade de se seguir um único rito processual. Dito de outra maneira, há apenas um procedimento-padrão válido para os mais diversos tipos de contratação, algo que inegavelmente contribui para engessá-las358.

As alterações normativas realizadas no regime jurídico das contratações públicas específicas buscaram, de um modo ou de outro, romper com esta noção de regime jurídico unitário. Dessa forma, criou-se, fora da Lei nº 8.666/93, novos modelos contratuais voltados a finalidades particulares, os quais se sujeitariam a regras próprias de licitação. O fenômeno de diversificação contratual foi acompanhado, portanto, da multiplicação de procedimentos adjudicatórios.

A primeira insurgência ao modelo contratual da Lei nº 8.666/93 consubstanciou-se na edição da Lei nº 8.987/95, a chamada Lei de Concessões. É verdade que as concessões já

358

Cf. MONTEIRO, Vera, Licitação na Modalidade de Pregão (Lei 10.520, de 17 de julho de 2002), São Paulo, Malheiros Editores, 2ª edição, 2010, p. 22.

existiam desde muito antes do aparecimento desta Lei359. Entretanto, ela foi a responsável por organizar o instituto e por lhe conferir mais segurança jurídica.

A concessão comum, em linhas gerais, consiste na delegação da prestação de serviço público feita pelo poder concedente à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre ter capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado, que se remunerará pela própria exploração do serviço, basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários360. Deve-se observar ainda, que a concessão de serviço público pode ser precedida da execução de obra pública361.

Trata-se, como se pode ver, de um arranjo contratual substancialmente distinto daquele genericamente previsto na Lei nº 8.666/93, em que se objetiva conferir a particulares a tarefa de prestar serviços dos quais o Estado detém a titularidade, por prazo não pré-fixado em lei – escapando, assim, da regra estampada no artigo 57 da Lei nº 8.666/93, que se pauta pela vigência dos créditos orçamentários362.

Para a seleção dos proponentes, previu-se que se deveria aplicar o regime da Lei Geral de Licitações e Contratos, adaptado aos preceitos especiais da Lei de Concessões. Dessa forma, inovou-se, por exemplo, ao se abrir a possibilidade de o edital inverter a ordem das fases de habilitação e julgamento363, à semelhança do que se verifica na Lei do Pregão; ao se permitir que os conflitos decorrentes do contrato pudessem ser resolvidos por mecanismos privados, inclusive por arbitragem364; e, principalmente, ao não se exigir projeto básico para a licitação – que, segundo o art. 6º, inciso IX da Lei nº 8.666/93, corresponde ao “conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base em estudos técnicos preliminares (...)”. Outra novidade interessante diz respeito à adaptação e ampliação do rol de

359

Para uma compreensão abrangente e aprofundada da origem das concessões e do seu conceito no direito brasileiro contemporâneo, conferir a obra de Vera Monteiro, Concessão, São Paulo, Malheiros Editores, 2010.

360

Lei nº 8.987/95, art. 2º, inciso II.

361

Lei nº 8.987/95, art. 2º, inciso III.

362

Lei nº 8.666/93, art. 57, caput: “A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos: (...)”.

363

A possibilidade de inversão de fases nas concessões foi introduzida na Lei nº 8.987/95 (art. 18-A) por meio da Lei nº 11.196/05.

364

A possibilidade de resolução de conflitos decorrentes de contratos de concessão por arbitragem foi introduzida na Lei nº 8.987/95 (art. 23-A) pela Lei nº 11.196/05.

critérios de julgamento365. Tratarei deste ponto em detalhes mais adiante, ao comentar a tendência de se flexibilizar os critérios de julgamentos do regime jurídico das contratações públicas em geral.

Outra importante reforma legislativa que contribuiu para a flexibilização dos modelos contratuais diz respeito àquela operada pela Lei nº 11.079/05, a Lei das Parcerias Público- Privadas. Este diploma normativo foi responsável pela expansão e diversificação das concessões, dando origem a duas novas espécies concessórias: a patrocinada e a administrativa.

Segundo Vera Monteiro, “ao se aplicar a lógica da contratualização dos serviços públicos econômicos [da Lei de Concessões] aos serviços sociais e administrativos que, pela sua estrutura, não poderiam ser remunerados por tarifa, a Lei 11.079/04 positivou tendência já notada nos modelos pactuados com base na Lei 8.987/95, qual seja, (a) de ter o particular um papel ativo na concepção e gestão do contrato; (b) de buscar estruturas contratuais com mecanismos capazes de atribuir maior segurança aos financiadores ao projeto; e (c) da importância de se manufaturar, projeto a projeto, o compartilhamento de riscos e a responsabilidade dos contratantes, a partir de detalhado estudo prévio e planejamento da relação contratual”366. Estas são, basicamente, as grandes marcas distintivas da Lei de Parcerias Público-Privadas, que permeiam os tipos de concessão nela previstos367.

Dessa forma, a Lei definiu a concessão patrocinada como sendo a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei de Concessões – não havendo, portanto, diferença quanto ao objeto do contrato –, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários, contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado368. A concessão administrativa, por seu turno, foi definida como sendo o contrato de prestação de serviços de que a administração pública seja usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens369. As parcerias público-privadas foram destinadas a projetos

365

Lei nº 8.987/95, art. 15 (o dispositivo foi significativamente alterado pela Lei nº 9.648/98 com o objetivo de ampliar os critérios de julgamento).

366

MONTEIRO, Vera, Concessão, São Paulo, Malheiros Editores, 2010, p. 181.

367

Sobre o tema, conferir, ainda, artigo de Jacintho Arruda Câmara intitulado “A experiência brasileira nas concessões de serviço público e as parcerias público-privadas”, in SUNDFELD, Carlos Ari (coord.), Parcerias

Público-Privadas, São Paulo, Malheiros Editores, 2007, pp.159-181.

368

Lei nº 11.079/04, art. 2º, § 1º.

369

de grande vulto370, razão pela qual se previu a possibilidade de o contrato ter vigência de até trinta e cinco anos371.

Para a seleção dos proponentes, idealizou-se a realização de licitação na modalidade de concorrência372 e a necessidade de se apontar sua submissão às regras próprias da Lei de Parcerias Público-Privadas373. Além da inversão da ordem das fases de habilitação e de julgamento da proposta, inovou-se ao se admitir que o edital previsse a possibilidade de haver o saneamento de falhas, de complementação de insuficiências ou ainda de correções de caráter formal no curso do procedimento374 – evitando-se a exclusão de licitantes da competição por razões de ordem estritamente formal. Como nas concessões, dispensou-se o projeto básico para se pôr em marcha a licitação.

Observa-se, assim, a solidificação de uma linha de reformas voltada a tornar as licitações menos focadas no cumprimento rigoroso de regras procedimentais e mais ajustadas às finalidades contratuais. Ao que tudo indica, desconstrói-se, pouco a pouco, a ideia de que o maximalismo é adequado como modelo legal – ao menos no que tange ao regime jurídico das contratações públicas.

Recentemente, a Lei nº 12.462/11 – Lei do Regime Diferenciado de Contratações – criou, exclusivamente para as licitações e contratos necessários à realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, da Copa do Mundo de 2014 e das obras de infraestrutura dos aeroportos, um interessante modelo contratual: a contratação integrada375.

Trata-se de modalidade contratual a ser utilizada quando houver justificativas técnicas e econômicas para tal, consistente na elaboração e no desenvolvimento dos projetos básico e executivo, na execução de obras e serviços de engenharia, na montagem, na realização de testes, na pré-operação e em todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega do objeto376.

370

A Lei nº 11.079/04 em seu art. 2º, § 4º, inciso I, determinou que o valor mínimo dos contratos de parceria público-privada seria de R$ 20.000.000,00.

371

Lei nº 11.079/04, art. 5º, inciso I.

372

Lei nº 11.079/04, art. 10.

373

Lei nº 11.079/04, art. 11.

374

Lei nº 11.079/04, art. 12, inciso IV.

375

Lei nº 12.462/11, art. 8º, inciso V.

376

A grande novidade está no fato de se autorizar o início dos procedimentos licitatórios sem o projeto básico – a Lei determina que o instrumento convocatório deverá conter um anteprojeto de engenharia que contemple os documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço, incluindo, por exemplo, a visão global dos investimentos; as definições quanto ao nível de serviço desejado; as condições de solidez, segurança, durabilidade e prazo de entrega, etc377.

Em contrapartida, a Lei do Regime Diferenciado de Contratação proibiu a realização de obras e serviços de engenharia sem o projeto executivo, que é mais detalhado e preciso do que o básico378 e endureceu as regras para a celebração de termos aditivos379, condicionando-os à ocorrência de força maior, ou a pedido da administração, desde que não decorrente de erros e omissões do contratado380.

É curioso notar que o modelo de contratação integrada – que, grosso modo, é a tradicional execução indireta pelo regime de empreitada integral, dispensada, no entanto, do projeto básico –, rompeu, exclusivamente para as contratações no âmbito do Regime Diferenciado de Contratação, com a lógica da Lei nº 8.666/93 para os contratos que lhe são centrais, a saber, de obras e serviços de engenharia. Ao menos no âmbito da União, esta foi a primeira vez que, desde a edição da Lei Geral de Licitações e Contratos, as regras norteadoras deste tipo de contrato foram modificadas na sua essência. Explico-me.

A Lei do Pregão, por ato do Poder Executivo Federal, não incidiu sobre as contratações de obras e serviços de engenharia – da União –, que continuaram a ser disciplinados quase que exclusivamente pela Lei nº 8.666/93381. Cenário em alguma medida semelhante se verifica no caso das Leis de Concessões e a de Parcerias Público-Privadas, que, apesar de serem permeadas por uma lógica diversa daquela da Lei Geral de Licitações e Contratos, aplicam-se a objetos

377

Lei nº 12.462/11, art. 9º, § 2º, inciso I, alíneas “a”, “b”, “c”, “d”.

378

Lei nº 12.462/11, art. 8º, § 7º.

379

Lei nº 12. 462/11, art. 9º § 4º.

380

Cf. JURKSAITIS, Guilherme Jardim, “Em defesa do regime diferenciado de contratações”, texto publicado no

Informativo Direito Público e Cultura Jurídica da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP – nº 52,

13/09/2011, pp. 2-3.

381

Vera Monteiro, em seu Licitação na Modalidade Pregão, defende não haver razões apriorísticas que justificassem a exclusão de obras e serviços de engenharia – ao menos os que pudessem ser classificados como “comuns” – do âmbito de incidência do pregão (p. 96).

distintos – o foco é sobre a prestação de serviços, que podem ou não envolver a realização de obras ou serviços de engenharia (em geral de grande vulto)382.

O Regime Diferenciado de Contratação, como se verá, rompe, neste e noutros aspectos, com a espinha dorsal do modelo de regulação das licitações públicas que permeia a Lei nº 8.666/93. Procurarei demonstrá-lo nos tópicos seguintes e na conclusão final.