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Capítulo IV – A Quarta Fase das Licitações Públicas no Brasil? Entre tensões e ajustes

3. Reformas legislativas no regime jurídico das contratações públicas específicas

3.2. As tendências nas reformas jurídicas das contratações públicas específicas

3.2.5. Tratamento especial conferido às empresas estatais

Dificilmente alguém, nos dias de hoje, refutaria o argumento de que as empresas estatais – categoria que abrange as empresas públicas e as sociedades de economia mista – estão sujeitas ao dever de licitar, ainda que na sua acepção mais genérica399. Entretanto, esta ideia, quase que

397

Cf. SUNDFELD, Carlos Ari, “Administrar é Criar?”, in Direito Administrativo para os Céticos, no prelo, p. 2.

398

Cf. SUNDFELD, Carlos Ari, “Administrar é Criar?”, in Direito Administrativo para os Céticos, no prelo, pp. 2 e 4.

399

Para Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani de Souza, as empresas estatais estão, sim, sujeitas ao dever de licitar – o que não implica, necessariamente, que devam obedecer as regras da Lei nº 8.666/93 (“Licitação nas estatais: levando a natureza empresarial a sério” in Revista de Direito Administrativo nº 245, Rio de Janeiro, Atlas e FGV, maio-agosto 2007, p. 13). Para Celso Antônio Bandeira de Mello, as empresas estatais também sujeitam-se ao dever

intuitiva ao intérprete do direito contemporâneo, foi se construindo e consolidando ao longo dos anos nos textos legais, na jurisprudência e nas mentes das pessoas ligadas ao mundo jurídico.

Voltando-se os olhos para os diplomas normativos que deram origem tanto à primeira quanto à segunda fase das licitações públicas no Brasil – o Regulamento Geral de Contabilidade Pública da União e o Decreto-Lei nº 200/67, respectivamente –, vê-se que não se punha, ao menos no plano legislativo, a questão de instituir para empresas estatais o dever de licitar. Foi o Decreto-Lei nº 2.300/86 quem, pela primeira vez, determinou que empresas estatais – além das fundações públicas e demais entidades controladas direta ou indiretamente pelo poder público – estariam obrigadas a licitar com base nas suas normas, até que fossem editados regulamentos próprios contendo procedimentos seletivos simplificados, que teriam que observar os princípios básicos da licitação400.

A Constituição Federal, em 1988, foi responsável pela constitucionalização do discurso que sustentava que administração pública, direta e indireta, incluídas as empresas sob seu controle, deveriam contratar – serviços e obras, alienar e comprar bens – mediante a realização de prévio procedimento licitatório. Confira-se a redação original dos seus artigos 22, inciso XXVII, e 37, inciso XXI:

Constituição Federal de 1988

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...)

XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, nas diversas esferas do governo, e empresas sob seu controle. Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte: (...)

de licitar (Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros Editores, 26ª edição, 2009, p. 531). Henrique Motta Pinto faz um interessante relato da evolução da legislação e jurisprudência acerca da imposição, às empresas estatais, do dever de licitar. Para o autor, as “limitações [dentre as quais estaria o dever de licitar] são normas próprias às empresas estatais, que impõem restrições à atuação empresarial do Estado. Elas decorrem da circunstância de as empresas serem controladas, direta ou indiretamente, por uma pessoa jurídica de direito público. Esta relação de controle por uma pessoa de direito público faz com que a empresa seja estatal, e assim sofra o influxo de normas incidentes sobre a administração pública. Aplicam-se à empresa regras restritivas, típicas e necessárias a uma entidade estatal, que limitam e condicionam sua vida empresarial” (Empresa estatal: modelo jurídico em crise?. Dissertação de Mestrado. Orientador: Carlos Ari Sundfeld. São Paulo, Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010, pp. 47-48).

400

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e

alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure

igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações” (grifo meu).

A Lei nº 8.666/93 regulou estes dispositivos, elencando uma série de normas que alcançaram indistintamente quaisquer entidades da administração pública, inclusive as empresas estatais. “Não há, portanto, um tratamento licitatório diferenciado para as empresas estatais no sistema da Lei 8.666/93, que ficam sujeitas às mesmas regras aplicáveis às demais entidades estatais. Não obstante seu art. 119 permita que as empresas estatais editem regulamentos próprios, com a condição de que sejam aprovados pela autoridade de nível superior a que estiverem vinculadas, há a obrigatoriedade de que elas permaneçam sujeitas às disposições da Lei 8.666/93, o que restringe significativamente a sua margem de conformação para adaptações do regime licitatório às necessidades empresariais”401. A Lei Geral de Licitações e Contratos pretendeu, assim, enrijecer as normas sobre licitações, impedindo que as empresas estatais delas escapassem.

Com a sobrevinda da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, acrescentou-se àqueles dispositivos constitucionais – art. 22, inciso XXVII e art. 37, inciso XXI – o inciso III do § 1º do art. 173, por ela incluído402. Confira-se a redação do dispositivo citado:

Constituição Federal de 1988

“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de

economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção

ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (...)

III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os

401

PINTO, Henrique Motta, Empresa estatal: modelo jurídico em crise?. Dissertação de Mestrado. Orientador: Carlos Ari Sundfeld. São Paulo, Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010, p. 49.

402

princípios da administração pública; (...)” (grifo meu).

A Emenda, além disso, deu nova redação ao inciso XXVII do art. 22, mantendo a competência legislativa privativa da União para instituir normas gerais de licitação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais dos entes federativos – “obedecido o disposto no art. 37, XXI” – e, também, para as empresas públicas e sociedades de economia mista, acrescentando a seguinte expressão: “nos termos do art. 173, § 1º, III”403.

Conclui-se, dessa forma, que “foi constitucionalmente explicitada a possibilidade de o legislador fixar regimes licitatórios flexíveis para as diversas entidades estatais, conforme o seu formato organizacional e a sua personalidade jurídica. Daí a diferenciação entre as figuras estatais realizada pelo inciso XXVII do art. 22, separando-as conforme o regime jurídico, predominantemente de direito público ou de direito privado”404.

A reforma realizada pela Emenda Constitucional nº 19/98 foi bastante curiosa. Pelo fato de a Lei nº 8.666/93 ter dado interpretação restritiva a um dispositivo constitucional, alterou-se a própria CF na expectativa de que o Legislativo, em momento posterior, compatibilizasse a Lei Geral de Licitações e Contratos à nova redação do texto constitucional. Preferiu-se modificar a CF à Lei. O pior é que a estratégia idealizada fracassou, já que as estatais, até hoje, submetem-se aos ditames da Lei nº 8.666/93 – salvo exceções pontuais.

Assim, as condições para o surgimento de regimes jurídicos contratuais mais adequados às empresas estatais – idealizadas, pela primeira vez, no Decreto-Lei nº 2.300/86, constitucionalizadas na Carta de 1988, mitigadas, posteriormente, pela Lei nº 8.666/93 e finalmente revitalizadas pela Emenda Constitucional nº 19/98 – levaram à construção de uma tendência cujo marco inicial é a edição da Lei do Petróleo. Confira-se o conteúdo do seu art. 67:

Lei nº 9.478/97

“Art. 67. Os contratos celebrados pela PETROBRÁS, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República” (grifo meu).

403

Idem, p. 49.

404

Vê-se que a Lei nº 9.478/97 – antes mesmo da Emenda Constitucional nº 19/98 – autorizou, de forma expressa, que a Petrobrás, sociedade de economia mista atuante no setor petrolífero em competição com empresas privadas, tivesse um regime licitatório próprio – mais simples do que o da Lei nº 8.666/93 – a ser definido em decreto presidencial. O permissivo legal veio a se materializar no Decreto nº 2.745/98.

Henrique Motta Pinto dá a notícia de que, “após a EC 19/98, a Lei nº 11.652/08 adotou semelhante solução legislativa para as licitações da EBC – Empresa Brasil de Comunicações S.A., cujo regulamento simplificado encontra-se no Decreto 6.505/08. A fórmula também foi prevista pela Lei nº 11.943/09, que alterou a lei que autorizou a constituição da ELETROBRÁS – Centrais Elétricas Brasileira S.A. para permitir que as aquisições de bens e as contratações de serviços, que ela e suas controladas realizem, ocorram por meio de procedimento licitatório simplificado, que deverá ser definido em decreto do Presidente da República”405.

São poucas, portanto, as empresas estatais que já dispõem de regulamento próprio para licitações. E, aparentemente, não parece haver um padrão ou um conjunto de pré-requisitos necessários para gozem deste benefício, já que ele foi concedido tanto a empresas atuantes e não atuantes em ambiente de competição e a empresas estatais dependentes e não dependentes406 – como são os casos da Petrobrás e da Empresa Brasil de Comunicações, respectivamente. Tudo indica, no entanto, que este rol tende a aumentar.

Deve-se dizer, também, que há fortes resistências a esta tendência. Henrique Motta Pinto, em sua dissertação de mestrado, descreve os conflitos envolvendo o tema que já chegaram ao Supremo Tribunal Federal, denotando uma postura conflitante entre a cúpula do Judiciário – que a tem endossado – e a base do Judiciário e os Tribunais de Contas – que a ela têm sido refratário, exigindo que as empresas estatais sigam, na íntegra, a Lei nº 8.666/93407.

405

Idem, p. 50.

406

A definição de empresa estatal dependente vem do art. 2º, inciso III da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal. De acordo com o dispositivo, empresa estatal dependente é aquela que “receba do ente controlador recursos financeiros para pagamento de despesas com pessoal ou de custeio em geral ou de capital, excluídos, no último caso, aqueles provenientes de aumento de participação acionária”. Assim, não estão abrangidas pelo conceito aquelas que recebam recursos financeiros como contraprestação por serviços prestados ou bens fornecidos (Cf. SUNDFELD, Carlos Ari e SOUZA, Rodrigo Pagani, “Contratualização do Vínculo do Estado com suas Empresas”, in SUNDFELD, Carlos Ari e MONTEIRO, Vera (coordenadores), Introdução ao Direito

Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2008, p. 238).

407

Transcrevo trecho da dissertação de mestrado de Henrique Motta Pinto que auxilia a compreender os conflitos envolvendo esta tendência: “A discussão sobre a validade dos procedimentos licitatórios simplificados para empresas