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Capítulo III – A Terceira Fase das Licitações Públicas no Brasil: o Fetichismo Legal

4. A Lei nº 8.666/93

4.2. A reforma da lei geral de licitações brasileira

4.2.1. Porque reformar o Decreto-Lei nº 2.300/86?

O Decreto-Lei nº 2.300/86, muito provavelmente em razão dos escândalos de corrupção envolvendo contratações públicas, era visto, pelos parlamentares, como a fonte de todos os males, o responsável pela “onda de corrupção, de desmoralização da função pública do país inteiro”147.

145

Diário do Congresso Nacional, Seção II, 22/01/93, p. 599.

146

Diário do Congresso Nacional, Seção II, 22/01/93, p. 665.

147

Os congressistas enxergavam na legislação vigente até o momento um sem número de “furos”, seja porque o diploma normativo deixava uma excessiva margem de discricionariedade para o agente público – como fica implícito na fala do Senador Pedro Simon148 –, seja porque o Decreto-Lei era detalhista demais e, em razão disso, dava azo às mais variadas interpretações, abrindo margem para a corrupção proliferar – como defendeu o Deputado Federal José Luiz Maia (PDS-PI)149.

No curso do processo legislativo emergiram temas do Decreto-Lei nº 2.300/86 apontados pelos parlamentares como problemáticos e que precisariam ser corrigidos. O primeiro deles, já mencionado anteriormente, diz respeito à possibilidade de se contratar diretamente, por inexigibilidade de licitação, os serviços técnicos, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização150.

Como aponta o Senador Pedro Simon, este dispositivo, ao dar ao administrador público a discricionariedade para decidir o que se enquadraria ou não no conceito de “notória especialização”, abria, a seu ver, uma válvula de escape para a corrupção. Confira-se151:

“Nobre Senador Eduardo Suplicy, a notória especialização rechaçada em inúmeras assentadas dos Ministros do Tribunal de Contas da União, quando tratada no art. 23 do malfadado Decreto-Lei nº 2.300, tem sido motivo dos maiores escândalos, pois o melhor engenheiro, no critério subjetivo do administrador, acaba, muitas vezes por ser sempre o seu melhor amigo”

148

Ao responder a uma provocação do Senador Eduardo Suplicy, o Senador Pedro Simon afirmou o seguinte: “Nobre Senador Eduardo Suplicy, a notória especialização rechaçada em inúmeras assentadas dos Ministros do Tribunal de Contas da União, quando tratada no art. 23 do malfadado Decreto-Lei nº 2.300, tem sido motivo dos maiores escândalos, pois o melhor engenheiro, no critério subjetivo do administrador, acaba, muitas vezes por ser sempre o seu melhor amigo” (Diário do Congresso Nacional, Seção II, 22/01/93, p. 674).

149

Ao propor uma emenda substitutiva do PL nº 1.491/91, o Deputado afirmou: "consideramos, no entanto, que o ideal sobre o assunto, que já está bastante codificado no Decreto-Lei nº 2.300/86, seria um projeto menos detalhado para evitar "furos". Em geral é sobre o excesso de detalhes que o fraudador e corrupto se debruça para encontrar caminhos esquecidos. Os detalhes em qualquer concorrência devem ser escritos no Edital por uma Comissão de Licitação que se reclinará nas indicações de um órgão técnico" (Diário do Congresso Nacional, Seção I, 28/05/92, p. 10945).

150

É o que dispunha o Decreto-Lei nº 2.300/86, após as alterações promovidas pelo Decreto-Lei nº 2.348/87 : “Art. 23. É inexigível a licitação, quando houver inviabilidade de competição, em especial: (...) II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 12, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização”.

151

Outro ponto do Decreto-Lei nº 2.300/86 ressaltado nos debates legislativos refere-se ao tipo de licitação denominada de preço-base, prevista em seu artigo 37, inciso IV152, e que o PL nº 1.491/91 tentou, em um primeiro momento, manter em seu artigo 44, inciso IV153.

O Deputado Israel Pinheiro (PRS-MG), em mais de uma ocasião, bradou contra o tipo de licitação por preço-base. Em linhas gerais, o Deputado alegou que este tipo de licitação dependia, invariavelmente, da elaboração, por parte da administração pública, de um cauteloso projeto executivo – algo não obrigatório de acordo com o Decreto-Lei nº 2.300/86. Assim, segundo o parlamentar, a administração, sem dispor dos estudos técnicos necessários, “chutava” um preço máximo para a licitação. Consequentemente, era comum que as empresas participantes do certame licitatório ajustassem suas propostas de modo a ocorrer um empate, levando a disputa a ser resolvida por sorteio. Confira-se154:

“(...)precisamos acabar com a figura do preço-base. Cabe ressaltar que isso é o que há de mais grave no projeto [nº 1.491/91]. O preço-base existe nos países do Primeiro Mundo com a finalidade de balizar e informar as empresas concorrentes. O Governo, que é a autoridade competente, estabelece um preço-base. Aqui no Brasil, quiseram adotar uma técnica que eu condeno e que está repetida neste projeto – ela vem do Decreto-Lei nº 2.300: o Governo não faz o cálculo do projeto executivo. Como tem pressa da execução da obra, coloca-a em licitação sem o projeto executivo. Diz que o preço-base é “X”, e qualquer empresa pode entrar com “X” menos 15%, tal como aconteceu com o metrô de Brasília e com a Linha Vermelha, no Estado do Rio de Janeiro, que não tem projeto final de engenharia. Resultado: todas as firmas entraram com o mínimo de 15% do preço- base. E o que aconteceu? Fizeram um sorteio”.

152

Art. 37. O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de licitação ou responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos. Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, constituem-se tipos de licitação: (...) IV – a de preço-base, em que a Administração fixe um valor inicial e estabeleça, em função dele, limites mínimo e máximo de preços, especificando no ato convocatório”.

153

Redação original do PL nº 1.491/91: “Art. 44 – O julgamento das propostas será objetivo devendo a Comissão de Licitação ou o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos. Parágrafo 1º - Para os efeitos deste artigo, constituem tipos de licitação para obras, serviços e compras, exceto nas modalidades de concurso e leilão: (...) IV – a de preço-base, em que a Administração fixa um valor inicial e estabelece em função dele limites mínimo e máximo de preços aceitáveis, especificados e explicitados no ato convocatório, caracterizando o mês e o ano a que se referem”. A versão original do PL nº 1.491/91 pode ser encontrada no seguinte endereço eletrônico: http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=192797

154

Nem todos os parlamentares manifestaram-se contrariamente ao tipo de licitação por preço-base, proveniente do Decreto-Lei nº 2.300/86. O Deputado Aloizio Mercadante (PT-SP), tal como ser observado no trecho abaixo, defendeu a manutenção da indicação do preço mínimo por parte da administração e a possibilidade de o licitante ofertar preço inferior a ele, desde que o PL nº 1.491/91 também incorporasse o chamado performance bond (seguro-garantia) para proteger o poder público em caso de inadimplemento contratual. Veja-se155:

“(...) acreditamos que é possível manter o preço mínimo, desde que haja o seguro obrigatório exclusivamente para esse caso. Dessa forma, o Poder Público estará protegido diante de eventual contrato, com a segurança de um seguro, o performance

bond, como existe hoje na Europa e nos Estados Unidos. Podemos trabalhar com o

preço-base, desde que seja permitido o lance mínimo, assegurado através de uma carta de fiança de seguro (...)”.

O último dos aspectos problemáticos do Decreto-Lei nº 2.300/86 salientado pelos congressistas diz respeito aos limites pré-estabelecidos em lei para as modalidades de licitação (convite, tomada de preços e concorrência), artigo 21156, e a possibilidade de parcelar a execução de obras ou serviços.

O Senador Gerson Camata, alertou para uma prática que, segundo o parlamentar, costumava ser recorrente. O poder público segmentava determinadas obras ou serviços em tantas partes quantas fossem necessárias para realizar uma série de convites ou tomadas de preços, ao invés de apenas uma concorrência – o que, pelo valor da obra ou serviço, em sua integralidade, seria obrigatório. Transcrevo abaixo um trecho do depoimento do Senador:

“O que os prefeitos estão fazendo hoje? (...) Com uma carta-convite, eles chamam três amigos e dizem assim: ‘fulano, você apresenta o preço tal, que você vai ganhar; depois o outro ganha a outra; e, aí, você nos arranja tantos por cento’. Eles estão fazendo o

155

Diário do Congresso Nacional, Seção I, 28/05/92, p. 10926.

156

Decreto-Lei nº 2.300/86: “Art. 21. As modalidades de licitação, a que se referem os incisos I a III do artigo anterior, serão determinadas em função dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratação: I – para obras e serviços de engenharia: a) convite até CZ$ 1.500.000,00 b) tomada de preços até CZ$ 15.000.000,00 c) concorrência acima de CZ$ 15.000.000,00; I – para compras e serviços não referidos no item anterior: a) convite até CZ$ 350.000,00 b) tomada de preços até CZ$ 10.000.000,00 c) concorrência acima de CZ$ 10.000.000,00.

seguinte: (...) ‘tomada de preço para terraplanagem do terreno onde será construída a escola’; vai no limite. Então ganha o amigo dele, vai lá e terraplana. Diz assim: ‘tomada de preço para o fornecimento de tijolos e telhas para a construção da escola’; vai no limite. Ele não faz licitação. Depois: ‘tomada de preço para obras de construção de alicerce’. Então, com cinco tomadas de preço, ele faz uma obra de 10 bilhões de cruzeiros”.

Apesar de os congressistas terem apontado alguns dos pontos controversos do Decreto- Lei nº 2.300/86, tenho a impressão de que a grande razão que justificaria a sua revogação recai sobre o simples fato de um complexo sistema de corrupção nas contratações públicas ter sido instalado à despeito da sua existência. Tudo indica que o problema não estava neste ou naquele dispositivo, mas na manutenção de um diploma normativo que, apesar da tentativa de regulamentar as compras governamentais, tivesse permitido o alastramento de práticas ilícitas. Em outras palavras, o caso PC Farias não teria passado de um pretexto para se alterar a legislação vigente.