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Capítulo IV – A Quarta Fase das Licitações Públicas no Brasil? Entre tensões e ajustes

2. Reformas legislativas no regime jurídico das contratações públicas em geral

2.2. Panorama das reformas legislativas da Lei nº 8.666/93

2.2.3. Outras implicações da adoção de um modelo legal maximalista

A observação do panorama das reformas da Lei nº 8.666/93 revela que o fato de ela se pretender muito abrangente – tratando de temas não diretamente ligados às licitações e procurando abarcar todos os entes da administração pública direta e indireta da União, dos Estados e dos Municípios – impactou no funcionamento de diversas esferas da administração – e, também, de políticas públicas específicas –, levando ao surgimento de uma onda de modificações

com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação”

em seu texto com a finalidade de torná-lo menos abrangente, ou simplesmente de ajustar o sentido de suas normas a contextos específicos. Este traço da Lei Geral de Licitações e Contratos sobressai ainda mais em razão do seu alto grau de detalhamento e objetividade, algo que incentiva, quase que naturalmente, o surgimento de interpretações restritivas – haja vista o estimulo que se dá à lógica de que só é permitido o que está expressamente disposto em lei – e generalizantes – em razão da sua vocação universalizante.

Uma das evidências mais palpáveis do que se afirmou acima refere-se ao transbordamento dos efeitos da Lei nº 8.666/93 para a política estatal de gestão do patrimônio público – muito em função do que dispõe seu art. 17, voltado à disciplina da alienação dos bens da administração. Em linhas gerais, o dispositivo citado traz uma longa lista de condicionantes para as alienações de bens móveis e imóveis, prevendo, casuisticamente, hipóteses em que elas poderiam, excepcionalmente, ser realizadas mediante dispensa de licitação.

O Deputado Federal José Serra (PSDB – SP), quando da tramitação do PL nº 1.941/91, manifestou-se para apontar a impertinência e a inconveniência de se tratar deste assunto em uma lei geral de licitações e contratos. Veja-se:

“Fala-se em projeto de licitações, mas, na verdade, a matéria não diz respeito apenas a licitações, mas inclui várias outras coisas, como a alienação de bens públicos. (...) A meu ver, não deveria ter entrado nesse projeto. (...) Não se deveria descer a um nível de detalhe que crie tantas amarras à flexibilidade que a área pública deve ter em nosso País”267.

A fala do Deputado revela que, a seu ver, seria um equívoco estrutural do PL disciplinar o tema das alienações pois, dessa forma, estar-se-ia, desnecessariamente, abrindo o flanco para uma série de polêmicas desconectadas do tema central da lei que se pretendia elaborar. O transcurso do tempo, tal como aponta o gráfico abaixo, confirmou as suspeitas levantadas por José Serra, já que o art. 17 foi um dos principais alvos das modificações levadas à cabo pela Lei nº 8.666/93268.

267

Diário do Congresso Nacional, Seção I, 21/05/92, p. 9974.

268

Para a elaboração do gráfico, levei em consideração as 198 alterações normativas que se tentou promover na Lei nº 8.666/93 (neles foram incluídos os dispositivos vetados e não vetados). De modo a facilitar sua visualização e a focar nas informações realmente importantes, selecionei os dispositivos mais atingidos pelas leis modificadoras da Lei Geral de Licitações e Contratos e concentrei na categoria “outros” os dispositivos que sofreram intervenções

Dispositivos da Lei nº 8.666/93 Modificados

(Gráfico 4 – Fonte: elaboração própria)

Observa-se que o art. 17, no que tange à quantidade de modificações sofridas – ou que se tentou implementar – desde a edição da Lei nº 8.666/93 até o momento presente, mostra que a alienação de bens públicos, um tema que apenas tangencia o objeto central da Lei, praticamente monopolizou as alterações legislativas, juntamente com as dispensas de licitação (art. 24 da Lei nº 8.666/93)269.

A grande preocupação do legislador nestas iniciativas de reforma, ao que tudo indica, foi relativizar o grau de abrangência do dever de licitar para a alienação de bens públicos, visto que 19 das 22 alterações versaram sobre o tema das dispensas e inexigibilidades de licitação270. Para ilustrar esta afirmação, menciono algumas modificações que julgo serem ilustrativas.

normativas pontuais ao longo do tempo. A expressividade da categoria “outros” é apenas aparente, visto que ela congrega alterações pontuais em partes distintas da lei.

269

As leis nº 8.883/94, 9.648/98, 11.196/05, 11.481/07, 11.763/08 e 11.952/09 previram modificações no art. 17 da Lei nº 8.666/93.

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Floriano de Azevedo Marques Neto, em artigo destinado a comentar o acórdão do STF em medida cautelar na ADI º 927-3/RS, dá notícia de que, também no Judiciário, houve conflitos envolvendo o art. 17 da Lei nº 8.666/93. Nesta ação judicial, o Governador do Estado do Rio Grande do Sul insurgia-se contra a incidência de uma série de dispositivos do art. 17 a Estados e Municípios. Alegou-se, na ocasião, que eles não seriam, como anuncia a Lei nº 8.666/93 em seu art. 1º, normas gerais, mas normas específicas aplicáveis unicamente à União. Vê-se que o que realmente estava em jogo neste caso era saber se a Lei nº 8.666/93 efetivamente continha apenas normas gerais. Vale ressaltar que o STF limitou-se a avaliar a constitucionalidade dos dispositivos impugnados e a suspender sua eficácia (os efeitos da medida cautelar perduram até hoje; o mérito ainda não foi julgado). Segundo Floriano, “(...) o Excelso Pretório [decidiu] com grande acerto, apesar de já referida divergência de votos havida. Efetivamente, subverteria completamente o princípio federativo e a autonomia constitucional de Estados e Municípios pretender que a gestão e a alienação dos seus bens ficassem estritamente regradas pela norma federal, que, neste particular, é extremamente detalhada, fixando critérios e ritos específicos.” (“Normas Gerais de Licitação – Doação e Permuta de Bens de Estados e de Municípios – Aplicabilidade de Disposições da Lei Federal 8.666/93 aos Entes Federados (comentários

A primeira delas refere-se à do art. 17, § 2º, da Lei nº 8.666/93, contida no projeto da Lei nº 8.883/94271. O dispositivo inicialmente autorizava a administração pública a conceder direito real de uso de bens imóveis, dispensada a licitação, quando o uso se destinasse a outro órgão ou entidade da administração. O projeto da Lei nº 8.883/94, por sua vez, procurou estender a dispensa às concessionárias de serviços públicos, ou a outros entes estatais quando se verificasse interesse público devidamente justificado, inclusive na hipótese de se tratar do programa de regularização de posse de terra urbana.

A segunda, perpetrada pela Lei nº 11.196/05, procurou – desta vez com sucesso – alterar o mesmo dispositivo citado acima. De acordo com o novo texto, a administração também poderia conceder título de propriedade – para além do direito real de uso de imóveis –, dispensada a licitação, quando o uso se destinasse a outro órgão ou entidade da administração pública, qualquer que fosse a localização do imóvel.

Evidencia-se, assim, a tentativa de se flexibilizar a rigidez da legislação sobre o tema e de reduzir o grau de abrangência do dever de licitar, calibrando-a de modo a ajustá-la às necessidades da administração quanto à política de gestão de bens públicos. Além disso, deve-se ressaltar que a menção ao “programa de regularização de posse de terra urbana” na Lei nº 8.883/94 também é um indício de que as disposições da Lei nº 8.666/93 acabam resvalando em outras políticas públicas, que não a de contratações públicas.

Há outros elementos que reforçam esta percepção, ou seja, de que a Lei Geral de Licitações e Contratos – por ser excessivamente abrangente e universalizante, não criando nuances de procedimentos ou de conteúdos adaptáveis aos mais variados entes da administração pública federal, estadual ou municipal – imbrica-se indissociavelmente a políticas públicas ou a setores específicos da administração.

Ao se olhar de perto as leis que interferiram na redação da Lei nº 8.666/93, chega-se à conclusão de que apenas 4 do total de 15 diplomas normativos foram editados exclusivamente com o escopo de reformar, em maior ou menor intensidade, a Lei Geral de Licitações e Contratos272. Os demais, com a exceção de dois deles273, surgiram com a finalidade primordial de

a acórdão do STF na ADIncosnt 927-3-RS)”, in Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, Malheiros Editores, Volume nº 12, 1995, p. 180).

271

Este dispositivo foi objeto de veto do Presidente da República.

272

disciplinar segmentos específicos da administração pública – como os setores de energia elétrica e de saneamento básico, por exemplo – e, para tanto, viram-se obrigados a fazer alterações cirúrgicas na legislação sobre licitação e contratos em geral274. Em outras palavras, a viabilidade de certas políticas dependia, nestas situações em particular, de adaptações e ajustes na Lei Geral de Licitações e Contratos.

2.2.4. Conclusões parciais

O panorama traçado em tópico anterior deixa transparecer que a atual Lei Geral de Licitações e Contratos foi construída sobre uma frágil base consensual. Tem-se a impressão de que o Congresso Nacional, impulsionado por grupos e setores da sociedade específicos, aprovou- a já pensando na sua reforma – daí a afirmação de que ela foi editada em duas etapas distintas: a primeira em 1993 e a segunda em 1994, com o surgimento da Lei nº 8.883. Ocorre, no entanto, que as modificações normativas, tal como visto, não pararam por aí. Pelo contrário, elas foram uma constante na história da Lei nº 8.666/93, marcada por incessantes disputas e conflitos. Entretanto, é interessante notar que, apesar do cabo de guerra travado no Legislativo, o núcleo deste diploma normativo manteve-se, até hoje, praticamente intacto.

De fato, ao que tudo indica, a Lei nº 8.666/93 parece ter alcançado o mais alto grau de abrangência do dever de licitar, abarcando as administrações direta e indireta da União, Estados e Municípios. Como resultado do seu ímpeto universalizante, dois efeitos principais puderam ser

273

Refiro-me às Leis nº 9.032/95 e 11.1079/04. Na primeira delas, previu-se, em uma lei que dispunha sobre o salário mínimo, alterações no art. 71 da Lei nº 8.666/93, introduzindo modificações sobre o tema da inadimplência do contratado e da possibilidade de a administração pública a ele solidarizar-se. Vê-se, assim, que a norma sobre licitações e contratos tomou “carona” num diploma normativo qualquer. Já a segunda das leis acima elencadas – destinada à criação das chamadas Parcerias Público-Privadas – previu alterações no art. 56 da Lei nº 8.666/93 para criar condicionantes ao uso de uma das modalidades de garantia. Nota-se, portanto, que esta lei, apesar de não ter sido editada primordialmente para alterar a Lei Geral de Licitações e Contratos, lidou, também, com a política de contratação pública do Estado.

274

Refiro-me às Leis nº 9.648/98 (destinada à reestruturação da ELETROBRÁS e de suas subsidiárias), 10.973/04 (incentivo à inovação e pesquisa científica e tecnológica), 11.107/05 (disciplina os consórcios públicos), 11.196/05 (cria o Regime Especial de Tributação para a Plataforma de Exportação de Serviços de Tecnologia da Informação), 11.445/07 (disciplina o setor de saneamento básico), 11.481 (prevê medidas voltadas à regularização fundiária de interesse social em imóveis da União), 11.484/07 (dispõe sobre incentivos à indústria de equipamentos para a TV digital), 11.952 (dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da união) e 12.188 (institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária).

sentidos. O primeiro deles refere-se ao enrijecimento das contratações realizadas por entes aos quais, antes, não se cogitava impor a obrigação de licitar – ao menos não no formato da Lei nº 8.666/93; o segundo, diz respeito ao transbordamento dos efeitos da Lei nº 8.666/93 para outras políticas públicas, que não estritamente a de compras governamentais.

Em reação aos excessos da solução normativa trazida pela Lei nº 8.666/93, grupos que se enquadravam numa das situações anteriormente descritas e que dispunham dos meios necessários para fazer seus pleitos chegarem ao Congresso, procuraram, a todo custo, inserir, no texto da Lei, hipóteses de dispensa de licitação – criando verdadeiros bolsões imunes às exigências legais –, ou nuances procedimentais que se ajustassem a realidades e contextos particulares. Houve, portanto, uma série de ajustes legais destinados a conter as pretensões universalizantes da Lei nº 8.666/93.

Esta não foi, no entanto, a única linha de reforma adotada pelo Poder Legislativo. Paralelamente a ela, o Congresso – uma vez mais motivado ou impulsionado por interesses determinados – tentou modificar ou inserir dispositivos na Lei nº 8.666/93 que em alguma medida alterassem o equilíbrio de forças que havia se cristalizado nas suas normas, mexendo, basicamente, nas condições de acesso ao mercado público (requisitos de habilitação e critérios de julgamento). Dito de outra maneira, procurou-se fazer com que o dado viciado, previamente programado por regras jurídicas para favorecer certos grupos de licitantes, também passasse a conduzir as licitações a grupos cujas pretensões não haviam sido atendidas quando do processo legislativo da Lei Geral de Licitações e Contratos.

A disputa por espaço no mercado público, tal como visto no capítulo III, tem suas raízes profundas na apropriação, por grupos empresariais, dos discursos correntes à época da elaboração da Lei nº 8.666/93 – e que em boa medida resistiram ao tempo, haja vista os argumentos presentes nos vetos presidenciais. Segundo se alegava, as regras e princípios jurídicos deveriam ser valorizados e a corrupção – cujo epicentro estaria na liberdade de que supostamente gozava a administração para dirigir os resultados das licitações – tinha que ser combatida acima de qualquer coisa.

O último dos aspectos do panorama das reformas legislativas da Lei nº 8.666/93 que ressalto é o fato de que foi preciso mobilizar o Congresso Nacional, por diversas vezes, com o escopo de operar singelas alterações redacionais – ou, então, voltadas a alterar, pontualmente, o conteúdo das normas. É preciso que se diga que estes esforços desprendidos pelo parlamento

decorrem do modelo altamente legalizado de regulação jurídica da Lei nº 8.666/93. A superlegalização faz, em geral, com que o foco do Legislativo deixe de ser apenas a fixação de grandes políticas públicas ou diretrizes e passe a ser, também, gerir minúcias, muito possivelmente invadindo o espaço que normalmente seria do regulamento.

2.3. Conteúdo relevante das reformas legislativas no regime jurídico das contratações públicas