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2   MARCOS CONCEITUAIS E ANALÍTICOS

2.5 OS CICLOS SISTÊMICOS DE ACUMULAÇÃO (CSA)

2.5.1 Flexibilizar, adaptar e expandir

Ao se aproveitar da flexibilidade do capital, torna-se possível que uma parte expressiva do lucro e da acumulação prescindam do processo genuinamente produtivo. Arrighi (2013, p. 9) afirma que as necessidades de expansões financeiras representam “[...] fases de mudanças descontínuas, durante as quais o crescimento pela via estabelecida já atingiu seu limite e a economia capitalista mundial “se desloca”, através de reestruturações e reorganizações radicais, para outra via”. Dessa maneira, a reprodução do capital

77 (financeiro) se dá pela fórmula dinheiro-dinheiro (as mudanças descontínuas do tipo DD’) que se propagam nos elementos voláteis da financeirização do sistema.

O que ocorre nessa fase é a “[...] explosão de novos instrumentos e mercados financeiros, ligada à ascensão de sistemas muito sofisticados de coordenação financeira em escala global” (HARVEY, 1993, p. 181). Dessa forma, a abordagem analítica e teórica de Arrighi (2013) auxilia a compreender a crescente oferta de derivativos financeiros na agricultura brasileira. Essa modalidade tem caracterizado uma parte expressiva de operações de “investimentos” nas últimas décadas, devido à queda de lucratividade em outros setores e à disponibilidade abundante de capital financeiro por meio dos bancos, empresas fornecedoras de insumos e das tradings companies.

Sob tal aspecto, o que se deseja é a valorização dos ativos dos acionistas, derivada da Teoria da Agência, cujo objetivo principal é maximizar os lucros, delegando poderes a um gestor (agente) destinado a comandar o empreendimento (EISENHARDT, 1988). Essa modalidade de operação abre mão de investimentos de longo prazo destinados a promover melhorias na capacidade organizacional e tecnológicas do processo produtivo. Isso se torna possível, pois em cada um dos CSA, os períodos de financeirização foram precedidos por um longo período de expansão material da economia global. O capital fluiu predominantemente para o desenvolvimento do comércio e da produção. No final do ciclo, se especializou em especulação e a intermediação financeira, o que Arrighi (2013) chamou de “o longo século” ou, o CSA, ao destacar que as expansões financeiras são:

[...] sintomáticas de uma situação em que o investimento da moeda na expansão do comércio e da produção não mais atende, com tanta eficiência quanto às negociações puramente financeiras, ao objetivo de aumentar o fluxo monetário que vai para a camada capitalista. Nesta situação, o capital investido no comércio e na produção tende a retornar na forma monetária e se acumular mais diretamente como na fórmula marxista abreviada (DD’). (ARRIGHI, 2013, p. 8).

Na medida em que a reprodução do capital se desvincula da produção de mercadorias, inaugura a ampliação da virtualização da economia potencializada pelas redes imateriais de comunicação. O motor de mudanças e estratégias é condicionado pela queda e arrocho nas taxas de lucros dos outros setores. O funcionamento e a lógica do espírito capitalista é a busca contínua de autopreservação, ao transformar os ativos fixos e materiais em forma líquida (dinheiro), e institui dessa forma, as ajustadas condições para a oferta ampliada de capital que viabiliza a expansão financeira do sistema. Consagra-se, desse modo, a relativização das concepções de tempo-espaço em que o capital busca a flexibilidade,

78 liberdade de escolha e de movimento para a manutenção e ampliação do lucro gerado do dinheiro e pelo dinheiro. É a consagração da histórica fórmula marxista (DD’) do capital.

O capital-dinheiro (D) significa liquidez, flexibilidade e liberdade de escolha. O capital-mercadoria (M) é o capital investido numa dada combinação de insumo-produto, visando ao lucro; portanto, significa concretude, rigidez e um estreitamento ou fechamento das opções. D’ representa a ampliação da liquidez, da flexibilidade e da liberdade de escolha. (ARRIGHI, 2013, p. 5)

É a busca e manutenção das taxas de lucro, por meio do capital fictício, entendido como um desdobramento do capital, e traz em seu bojo a lucratividade sob a forma de juros. É o divórcio entre o capital-propriedade e o capital-função, surge o que Marx escreveu no Livro III do Capital, a mercadoria-capital (MARX, 1983). Dessa forma, essa modalidade de capital será utilizada na compra dos meios de produção, contratar força de trabalho, e ao produzir as mercadorias, e produzirá igualmente a mais-valia em ciclos contínuos.

Ao se debruçar sobre essas questões, Harvey (2005) lança um olhar diferenciado ao incluir na análise a dimensão do espaço geográfico e suas implicações geopolíticas traduzidas sob a forma de transformação nas estruturas físicas e sociais necessárias aos processos produtivos e de consumo. Ainda segundo Harvey (2005, p. 129), o “[...] sistema de circulação de capital que tem o lucro como objetivo direto”. Esse processo, quase sempre é tensionado e conflituoso, uma vez que implica na substituição, ou mesmo, na metamorfose total nas concepções da organização do trabalho, e das infraestruturas produtivas existentes, os quais, diante das circunstâncias necessitam ser remodeladas e reestruturadas. O caso da modernização da agricultura é um exemplo emblemático desse artifício, efetivada por meio da aliança das empresas multinacionais com os Estados, pois,

[...] as empresas necessitam dos Estados “locais” (nacionais) para enfrentar a mundialização e para se mundializar, os Estados “locais” necessitam das empresas mundializadas para garantir a continuidade de sua legitimidade e seu futuro enquanto formação políticas e sociais “locais”. (PETRELLA et al. 1991, p. 398).

É esse movimento que está sendo percebido nas regiões rurais brasileiras, e criando as bases adequadas para a emergência e a sedimentação do novo e diferenciado padrão de acumulação influenciado pelo industrialismo tecnológico e gerencial e aplicados à agricultura. Esse processo está sendo conduzido pelo capital ao mobilizar as tecnologias, equipamentos

79 e especulação financeira (GOLDBLATT, 1996). Entretanto, para esse processo não existem apenas movimentos estáveis, mas estão sujeitos ao declínio e ressurgimento, tema que será ampliado adequadamente na próxima seção.

2.5.2 O declínio e o ressurgimento

Retomando os CSA, na concepção de Arrighi (2013), trazem em seu conteúdo a série episódica de expansões estáveis e estabilizadas da economia capitalista mundializada, ao alternar fases de turbulências, nas quais as condições que sustentavam o status quo do desenvolvimento estabelecido e vigente são derrocadas. Entretanto, ao mesmo tempo, criam-se as condições básicas para o nascimento de uma fase posterior amplamente monetarizada (Figura 7), precursora da crise terminal dessa fase do regime (T1, T2 e T3), e

ao mesmo tempo, preparar o terreno para a emergência de um novo Estado protagonista e comandante do novo ciclo de produção e de acumulação.

A fase de reclusão desorganiza a economia e modela as condições que fazem surgir outra ordem conduzida pela emergência de novo portador da hegemonia política e econômica (Estado) em escala mundial. As crises (S1, S2 e S3) que anunciam a desordem e

os limites do antigo regime são, igualmente, as precursoras do nascimento da outra ordem vindoura, cujo potencial suplanta a antiga ao emergir da crise na fase de expansão financeira. Os “momentos maravilhosos” e voláteis (R1, R2 e R3), na acepção de Arrighi

(2013), não são suficientes, contudo, para gerar uma nova rodada de expansão material. Na verdade, representam a expressão do acirramento concorrencial da etapa.

Figura 7 – Modelo de metamorfose dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação (CSA).

80 Os CSA repetem as contradições históricas e surgem reorganizadas em outros arranjos buscando captar e se moldar às novas demandas e às especificidades econômicas, políticas e culturais requisitadas pela ocasião. Essas etapas revelam um traço comum: a aliança do capital privado com o Estado. Sob tal condição permite novas arrumações necessárias à sobrevivência, e depois, a expansão. Arienti e Filomeno (2007) destacam que esse processo se tornou possível nos estágios do capitalismo histórico em que o:

Estado hegemônico e os agentes capitalistas a ele relacionados (“complexos particulares de órgãos governamentais e empresariais” ou aliança capital e Estado) estão na liderança do “andar superior” da economia. O Estado hegemônico lidera o sistema interestatal e seus agentes capitalistas lideram as principais cadeias de mercadorias, tornam- se os líderes dos processos sistêmicos de acumulação de capital e poder na escala do sistema-mundo. Esses agentes hegemônicos governamentais e empresariais possuem estratégias combinadas de acumulação de capital em escala global, concentração do excedente em novas atividades centrais, constituição de novos centros e novas periferias e nova hegemonia no sistema interestatal. Assim, o ciclo sistêmico de acumulação é o ciclo de vida desses agentes, de suas estruturas e estratégias que constroem, transformam e caracterizam cada estágio do desenvolvimento capitalista. (ARIENTI; FILOMENO, 2007, p. 20).

E, de fato, a “[...] a fusão entre o Estado e o capital foi o ingrediente vital da emergência de uma camada claramente capitalista por sobre a camada da economia de mercado, e em antítese a ela” (ARRIGHI, 2013, p. 20). O capitalismo tende a exclusivamente prevalecer quando põe em marcha o Estado a seu serviço. Desse modo, o crescente endividamento estatal por meio do financiamento sistemático da máquina pública retira parte expressiva da soberania estatal e a política, dessa maneira, vai se dissociando do poder. Esse fator se expressa por meio da crise fiscal do Estado que busca por meio de empréstimos privados a financiar os gastos públicos e os investimentos, cujo objetivo é ficticiamente equilibrar as contas públicas (KEUCHEYAN, 2014). Streeck (2013) alude ainda que os Estados, desse modo, apenas “compram o tempo” adiando o desfecho da crise, pois a Estado endividado substituiu o Estado fiscal e se transforma em Estado da consolidação (de dívidas) graças à crise financeira e orçamental. É dessa forma, que a burguesia financeira adquire e agrega a supremacia do poder político pela intercessão nos inúmeros mecanismos de transferência de recursos públicos, para a contínua acumulação privada (FORRESTER, 1997), por meio da financeirização do capital.

A relação entre Estado e a expansão capitalista na busca de hegemonia mundial na concepção de Arrighi (2013, p. 27) é “[...] especificamente a capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um sistema de nações soberanas”. O autor

81 faz uma ressalva importante, ao enfatizar que a hegemonia desejada não se trata tão somente da busca de poder, e da ação estatal, mas de poder exercer a hegemonia com credibilidade e legitimidade perante os outros Estados e de seus cidadãos. O estudo dos CSA permite descortinar que a ideia de expansão financeira não apresenta ser uma novidade, vem ocorrendo desde o período das cidades-estados italianas do século XV. Assim como não há ineditismos presentes nessa fase contemporânea do desenvolvimento do capitalismo. Apenas significa a disposição natural do sistema e demonstra, ao longo da constituição do capitalismo, como ocorre a transição de um antigo regime para o novo.

O processo do CSA é marcado por permanências, repetições, descontinuidades que caracterizam e marcam o surgimento de novos detentores da hegemonia financeira e política em escala mundial. Ocorre em cenários de disputa concorrencial, representada pela emergência de um novo Estado nacional detentor da hegemonia e uso da força e violência legítimas (WEBER, 2000). É quando “[...] o dono do dinheiro encontra-se com o dono, não da força de trabalho, mas do poder político” (ARRIGHI, 2013, p. 25). Aqui há o cruzamento da cíclica história do capitalismo, com o surgimento e consolidação do Estado nacional em sua concepção moderna. O autor enfatiza que o desenvolvimento do capitalismo, não adveio de forma involuntária. Foi uma tarefa articulada e tutelada entre distintos agentes governamentais e empresariais privados, que visavam conjuntamente ampliar poder e lucros.

O que impulsionou a prodigiosa expansão da economia mundial capitalista nos últimos quinhentos anos, [...] não foi à concorrência entre Estados como tal, mas essa concorrência aliada a uma concentração cada vez maior do poder capitalista no sistema mundial como um todo. (ARRIGHI, 2013, p. 13).

Os detentores de capital necessitam de um ator político, concreto e estável, expresso por meio de instituições de normas reguladoras e portadoras de segurança jurídica e de estabilidade política, capazes de estabelecer a distinção entre a propriedade privada (oferta de garantias) e o domínio público. Desse modo, converge uma relação siamesa e competitiva entre o Estado e as forças capitalistas emergentes. O primeiro busca obter, manter, ampliar e mesmo consolidar o poder político, e se possível acrescentar novos territórios. A segunda aspira expandir as possibilidades de lucros e de acumulação privada dos excedentes por meio da ampliação e abertura de novos mercados e na venda de ativos financeiros, inclusive para o Estado, subjugando-o pela via do endividamento público (STREECK, 2013). Isso se torna possível na medida em que “as potencias econômicas mantem o controle das dívidas de Estados que, que por essa razão, dependem delas e elas os mantem sob seus domínios” (FORRESTER, 2001, p. 30).

82 Arrighi (2013), ao identificar os CSA, periodiza o desenvolvimento histórico do capitalismo em quatro ciclos: a) ciclo italiano (Gênova, Veneza, Florença e Milão) se estendeu do século XV ao início do século XVII (1450 a 1630); b) ciclo holandês, do início no século XVII até́ a maior parte do XVIII (1630 a 1780); c) ciclo britânico teve início na segunda metade do século XIX, até́ a entrada do século XX (1780 a 1930), cujos ambientes foram cenários da primeira Revolução Industrial (máquina a vapor, inovações mecânicas) e da segunda (eletricidade e petróleo), e d) ciclo norte-americano, palco da Terceira Revolução Industrial baseada na microeletrônica e automação, a primeira fase começa com a depressão dos anos 30 e se estende até a década de 70.

Entretanto, os distintos CSA não se confirmariam se não forem movidos e engendrados uma sociabilidade capitalista, tema que será ampliado na seção seguinte.

2.6 A SOCIABILIDADE CAPITALISTA, A MONETARIZAÇÃO E AS RAZÕES PRÁTICAS