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CAPÍTULO 3 – O GEOSSISTEMA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO CORUJA-

3.6 FASE DE PRODUÇÃO

3.6.2 Processo poluição esterqueira – rio

3.6.2.2 Fluxo indireto: esterqueira – solo – rio

A. Esterqueira – solo

Na bacia do rio Coruja-Bonito, o material armazenado nas esterqueiras é utilizado como fertilizante orgânico em pastagens e cultivos. Essa destinação dada aos dejetos é declarada por 97% dos suinocultores entrevistados93 (BRASIL e HADLICH, 2002).

A principal forma de distribuição dos dejetos no solo é o espalhamento do material transportado até as áreas de aplicação através de sistema de bombeamento (conjunto moto- bomba) e tubulações.

93 92% dos suinocultores entrevistados declaram que aplicam os dejetos (todo material armazenado na

esterqueira, líquido e sólido) em lavouras próprias, e 5% em lavouras dos vizinhos. Alguns dos suinocultores que utilizam dejetos na lavoura própria, afirmaram que, em caso de “sobra” de dejetos, aplicam em lavouras de vizinhos. Os 3% restantes utilizam a parte sólida dos dejetos para alimentação de bovinos e a parte líquida, após armazenamento em esterqueira, é também bombeada para lavouras. Ou seja, como era de se esperar, nenhum dos suinocultores afirmou jogar dejetos nos corpos d’água, mesmo aqueles que consideram sua infra-estrutura de armazenamento insuficiente.

Tecnicamente, os dejetos devem ser aplicados em quantidade e em época recomendada, em áreas não muito declivosas e longe do sistema de drenagem natural, segundo recomendações técnicas específicas (SOCIEDADE..., 1997; EPAGRI, 1995).

Apesar de a adubação orgânica ser a principal recomendação da assistência técnica em todo Estado para destinação dos dejetos de suínos, ocorrem problemas de aplicação, na bacia, relacionados ao relevo e a características físicas dos dejetos. Acentuadas declividades dificultam o trabalho de espalhamento dos dejetos em uma área, e dificultam também o bombeamento dos dejetos até essas áreas, exigindo, muitas vezes, conjuntos moto-bomba com grande potência e elevado consumo de energia elétrica. Ademais, a diluição dos dejetos devido à grande quantidade de água desperdiçada nas granjas faz com que alguns suinocultores se desinteressem pela aplicação, afirmando que “não irão gastar energia para aplicar água nas lavouras e pastagens”. Ou a heterogeneidade do material líquido-sólido provoca entupimentos e danos no sistema de bombeamento.

FIGURA 32: Aplicação de dejetos em pastagem na beira do rio, em área de elevada declividade.

Outra forma de aplicação é através de espalhador acoplado a um trator. No entanto, poucos são os suinocultores que dispõem dessa tecnologia de aplicação, a qual é desfavorecida pelo relevo local.

É muito importante salientar que, segundo análise realizada por EPAGRI-CIRAM (2000), apenas 42% da área da bacia possui condições de solo e relevo para recebimento de

dejetos de suínos. E, mesmo que os dejetos fossem aplicados uniformemente na área potencial, ainda assim ter-se-ia um excedente de aproximadamente 20,5 m³/ha.ano.

Assim, a prática de distribuição de dejetos em áreas de pastagens e em áreas de cultivo resolve em parte o problema, pois esse uso evita transbordamento das esterqueiras. Porém, a sobrecarga de dejetos e características da bacia (relevo, solos) levam à poluição dos rios de forma indireta – os dejetos passam, primeiramente, pela aplicação nos solos, para depois atingir cursos d’água.

B. Solo – rio

Há duas formas básicas de os dejetos poluírem as águas após aplicados no solo: por processos erosivos, ou por transporte de materiais solubilizados – ambos condicionados, portanto, às precipitações pluviométricas.

A partir dos dejetos aplicados no solo, a poluição da água ocorre quando um contaminante encontra um caminho desde a fonte (dejeto no solo) até o corpo d’água receptor, em tais quantidades que comprometam o uso desejável dessa fonte de abastecimento. O caminho que um contaminante percorre para alcançar um corpo d’água depende de suas características físicas e químicas, bem como das características superficiais e sub-superficiais do solo (SEIFFERT, s.d.). Muitos constituintes dos dejetos movimentam-se como pequenas partículas orgânicas (sedimentos suspensos, bactérias), enquanto outros (amônia, fósforo) são adsorvidos a partículas orgânicas do solo. Sedimentos, partículas orgânicas ou substâncias adsorvidas podem sofrer erosão, ou seja, serem deslocadas fisicamente da superfície do solo, pelo impacto e escoamento da água da chuva, em direção à rede de drenagem. Partículas e substâncias adsorvidas não se movem ao longo do perfil pedológico devido à ação filtrante do solo. Entretanto, substâncias solúveis, tais como os nitratos, podem percolar facilmente e alcançar o lençol freático, ou podem mover-se lateralmente, migrando juntamente com o fluxo d’água superficial ou sub-superficial, em direção aos corpos d’água. Cabe lembrar que a matéria orgânica contida nos estercos favorece a solubilização dos fosfatos; em solos argilosos, os problemas com percolação de fosfatos são minimizados, pois o seu movimento é insignificante. Em compensação, esse fosfato acumulado nas camadas superficiais pode atingir as águas através de processos erosivos.

Outra forma de os dejetos poluírem as águas é a aplicação em excesso, principalmente em áreas de elevada declividade ou próximo aos rios, quando ocorre escorrimento superficial da parte líquida dos dejetos diretamente para a rede de drenagem.

O solo também é intermediário entre dejetos e rio quando os dejetos são armazenados em simples buracos escavados no chão, em esterqueiras ou lagoas sem revestimento impermeabilizante, o que possibilita a infiltração de dejetos, podendo diferentes constituintes atingir corpos d’água superficiais, subsuperficiais ou subterrâneos, gerando problemas de poluição.

Este processo de poluição, solo – rio, está condicionado pela quantidade de dejetos aplicada, suas características, pelas características físicas, químicas e biológicas dos solos e da estrutura geológica, pela hidrologia local, pelo relevo, pela intensidade e quantidade de chuvas, e, na origem do processo, pelo homem que realiza a aplicação.

Fugindo do processo de poluição propriamente dito, aproveito para citar alguns pontos que considero importantes a respeito da recomendação, por parte de grande parte do serviço de pesquisa e extensão no estado, quanto ao uso de dejetos como adubo orgânico.

Quanto à aplicação de dejetos no solo, ainda prevalece a idéia de elaboração de planos de adubação com base na composição química dos dejetos (avaliada por densímetro), área a ser utilizada, fertilidade (resultado da análise do solo) e tipo de solo, exigências da cultura a ser implantada. Ou seja, o balanço é feito não sob o enfoque da dinâmica ambiental dos elementos presentes nos dejetos, mas, sim, sob o enfoque de produtividade agrícola, a partir do qual se afirma que não ocorrerão danos ambientais (MIRANDA et al., 2000). Sob esta perspectiva, persiste a idéia de que somente o volume de dejetos que extrapola o limite de utilização agronômica da propriedade, deve ser obrigatoriamente tratado ou cedido a terceiros, como cita PERDOMO (2000).

Cabe lembrar que, de acordo com orientação do Escritório Regional da EPAGRI em Chapecó, para solos bem desenvolvidos, profundos, como os Latossolos ou mesmo Terras Roxas ou Brunas, podem receber aplicações de até 80m³ por hectare de esterco líquido de suínos com matéria seca entre 4 a 6%, “sem risco de poluição das águas subterrâneas com nitrato” (FEDERAÇÃO..., p.27).

Ora, se no Oeste de Santa Catarina, onde são utilizados sistemas de bioesterqueira e esterqueira (para 88% do volume de dejetos produzidos), e 84% é aplicado nas lavouras94,

94 SEIFFERT (s.d.) afirma que, no oeste catarinense, a utilização de dejetos como fertilizante agrícola não ocorre

em todas as propriedades devido à composição diluída (cerca de 97% de água), que desencoraja sua aplicação no solo devido aos custos de transporte e aplicação, aviltados pelo excesso de água e pela baixa resposta vegetal. Além disso, devido às condições topográficas predominantes nas pequenas propriedades (relevo bastante declivoso), solo raso (menos de 50cm de profundidade) a pouco profundo (menos de 100cm) e pedregoso, existe uma escassa disponibilidade de áreas próprias para cultivos anuais mecanizados e aplicação de fertilizantes orgânicos.

principalmente de milho, com uma média por propriedade de 44m³ de dejetos/ha (recomendado para a cultura: 40m³/ha.ano) (GOSMANN, 1997), como explicar a poluição, por coliformes fecais, de 84%95 dos mananciais de água consumida pela população? Não terá o deslocamento de constituintes do solo até os corpos d’água participação nessa poluição?

Estudos realizados na Bretanha, França, área mais contaminada do mundo com dejetos de suínos, comprovaram o acúmulo de metais pesados no solo e a possibilidade de poluição de recursos hídricos por estes elementos oriundos da aplicação dos dejetos no solo, bem como problemas de eutrofização de águas devido ao excesso de nutrientes, ressaltando-se nitrogênio e fósforo, no sistema (HADLICH, 1993; COPPENET e GOLVEN, 1984; COPPENET et al., 1993; POCHON, 1991; PIREN-CNRS, 1991).

Em decorrência da falta de informações precisas sobre a composição e concentração de elementos químicos nos dejetos, sobre a aptidão dos diferentes tipos de solos e culturas para o recebimento desses elementos, bem como seu efeito sobre o meio ambiente a curto e a longo prazos, a aplicação desses dejetos no solo tem sido, de certa forma, limitada em quantidade. Em Santa Catarina, essa limitação tem sido feita, com freqüência, em relação à quantidade de nitrogênio a ser aplicada na cultura do milho, que é tomada como base para o balanço de nutrientes (que relaciona necessidade da cultura e quantidade de nitrogênio nos dejetos).

Entretanto, sob uma ótica de “proteção ambiental”, SEGANFREDO (2000) recomenda calcular a adubação orgânica segundo o nutriente que a cultura menos precisa (no exemplo citado no artigo, foi o cobre); nesse caso, há necessidade de complementar com adubação N- P-K mineral. No caso do balanço pelo nitrogênio, propõe adubar segundo a necessidade da cultura de nitrogênio de base (quantidade necessária no início do desenvolvimento vegetativo), mas jamais pelo nitrogênio total necessário para todo ciclo da planta, pois ocorre muita sobra deste elemento, propiciando a percolação dos nitratos formados até os lençóis freáticos.

Alguns pesquisadores propõem a determinação da capacidade de suporte dos solos no que se refere ao recebimento de dejetos. Essa capacidade referir-se-ia à quantidade que o solo pode receber de dejetos sem riscos de “transmitir” poluentes para os corpos d’água. Para tanto, seriam avaliadas capacidades de adsorção e transformação/degradação desses compostos. A capacidade de suporte, portanto, tem sido vista por muitos como uma questão científica que relaciona dejetos e solos.

No entanto, conforme bem coloca BRASIL (2002, p. 98),

a determinação da capacidade de suporte de um geossistema depende não só dos aspectos naturais, mas do tipo de atividade desenvolvida, de hábitos e costumes e determinações econômicas e sociais. Conforme salienta Enrique Leff (1994: 43) “o potencial ambiental de uma região não está determinado tão só por sua estrutura ecossistêmica, mas também pelos processos produtivos que nela desenvolvem diferentes formações sócio-econômicas”. A determinação da capacidade de suporte de um sistema possibilita o estabelecimento do volume de produção aceitável de determinada atividade.

Qual seria, então, a capacidade de suporte do meio no que se refere aos dejetos de suínos produzidos na bacia?

A preocupação que levanto é de o serviço de extensão do Estado (EPAGRI) e dos municípios (Secretarias de Agricultura) estar recomendando uma prática que, baseada na justificativa de diminuir custos de adubação mineral na propriedade, aparentemente resolve o problema de poluição das águas por dejetos de suínos – uma prática que cada vez mais se propaga e instala em áreas de produção agropecuária como retorno econômico (que efetivamente ocorre, pois reduz a necessidade de aplicação de adubos minerais) e como “resolução do problema ambiental da suinocultura”. Uma prática que, segundo muitos técnicos, “só causa problemas quando aplicada da forma incorreta devido à ignorância do produtor” – que realmente ignora os danos possíveis advindos tanto da aplicação “incorreta”, bem como da “correta” (quantidades limitadas, locais apropriados, etc.): – temos o exemplo da Bretanha, França, que, embora com condições climáticas e pedológicas completamente diferentes das nossas, evidencia a insustentabilidade de “aplicar corretamente” dejetos de suínos no solo por vários anos (mais de 15 ou 20 anos). Uma prática que, vista hoje como resolução de um problema, pode, na dinâmica de um sistema complexo, tornar-se um problema ambiental muito maior futuramente: qual o custo para despoluir solos? qual o custo para retirar nitratos de lençóis freáticos ou águas subterrâneas, que são fontes de água na maior parte das granjas de suínos na bacia, quiçá no Estado?

FLORIT (1998, 1999), analisando a poluição provocada pela suinocultura e o Projeto Microbacias/BIRD implementado em todo Estado no início dos anos 90, afirma que a proposta de implantação de (bio)esterqueiras e uso dos dejetos como adubo é mais uma solução política do que técnica, pois é utilizada para neutralizar uma situação de conflito de interesses que envolvem os agricultores, as agroindústrias e o resto da sociedade que reclama pela qualidade do ambiente.

Penso, neste momento, no problema advindo da localização física das granjas na propriedade, da sua proximidade de rios. Muitos suinocultores, quando “acusados” por técnicos da área rural de estarem violando leis, mostram-se indignados: “Mas foram vocês

mesmos que recomendaram instalar próximo do rio!” – uma recomendação antiga, mas já posterior ao Código Florestal de 1965 que trata, entre outros, da manutenção de faixa de mata ciliar; uma recomendação técnica que não visualizou períodos de tempo longos.

“Recomendações técnicas”- que não consideram que a suinocultura é uma atividade que faz parte de um sistema complexo, com sua historicidade, com conseqüências (in)imagináveis e (im)previsíveis que vão muito além do que podemos “controlar”. Se há anos atrás não existia suporte teórico para esta compreensão, do complexo (ou, pelo menos, do “complicado”), hoje existe, e diante da velocidade de degradação de recursos naturais não podemos nos dar ao luxo de acharmos que estamos “acertando” quando há exemplos históricos, locais ou mundiais indicando a possibilidade (certeira) do erro.

Essas considerações não impossibilitam o uso de dejetos de suínos como adubo orgânico. Mas atentam para o fato de que essa não é uma solução definitiva, muito menos quando se considera a forma como vem sendo feita. Há problemas metodológicos na definição das quantidades que podem ser aplicadas, há problemas na pesquisa; antes: há problemas na percepção do problema, é a “crise de percepção”, como nos diz Fritjof Capra.