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Capítulo 2 Crime, Punição e impunidade no Brasil

2.3 Fluxos de justiça e ocorrências de tráfico e porte de drogas

Na análise de fluxo de justiça é importante ter em mente a especificidade de cada tipo de infração penal e a organização institucional de cada unidade da federação, para entender o que acontece em cada etapa do fluxo: o total de boletins de ocorrência se transforma em um número menor de inquéritos, que porventura serão denúncias do Ministério Público, sendo finalmente uma proporção dos casos composta de processos criminais que culminam em condenação. Conforme alertaram Ribeiro e Silva (2010: 26):

apenas conhecer o número de casos que alcança um desfecho final não fornece os subsídios necessários para a implementação de uma política que viabilize a redução do que os próprios autores denominam como ineficiência do sistema. Para saber quais causas de um reduzido número de casos alcançaram a fase de sentença seria necessário realizar uma análise mais detalhada dos determinantes da passagem do caso de uma fase a outra ou de uma organização a outra.

A comparação entre fluxos de crimes diferentes pode dar retratos bem diferentes do sistema de justiça criminal. A revisão de Ribeiro e Silva (2010) sobre a produção brasileira de estudos sobre fluxo de justiça apresenta basicamente três estratégias metodológicas de pesquisa: longitudinal ortodoxa, transversal e longitudinal retrospectiva. As autoras só apontam três pesquisas que dão conta de todo o fluxo, a partir de um desenho longitudinal ortodoxo; duas são referentes a homicídios (Ribeiro, 2010) e a outra referente a estupros (Vargas, 2004). Até onde se tem notícia não há pesquisas sobre todas as etapas do fluxo de justiça para crimes previstos na legislação sobre drogas. Alguns trabalhos, no entanto, conseguem ressaltar como diferentes delitos geram processamentos muito díspares na justiça criminal brasileira.

A pesquisa apresentada por Adorno e Pasinato (2009) mostra que os delitos que apresentam a maior proporção de boletins de ocorrência convertidos em inquéritos policiais são “uso de entorpecentes” (89.92%) e “tráfico de entorpecentes” (92,71%), enquanto roubo (4,88%), estupro

(22,33%) e homicídio (60,13%) apresentam proporções significativamente menores de continuidade a partir da fase policial do fluxo. Uma pesquisa sobre prisões provisórias realizada na cidade de São Paulo chegou à seguinte conclusão:

Embora a ausência de dados de prisões provisórias segundo variáveis sociodemográficas e jurídicas não permita conhecer o movimento das prisões em flagrante por tráfico na cidade, há uma percepção geral por parte dos operadores do sistema, corroborada pelas estatísticas prisionais e dados de gestão dos órgão de justiça, de que as prisões por tráfico de drogas acentuaram-se nos últimos cinco anos. Esse fato está ligado à expansão e consolidação do comércio varejista de drogas, sobretudo nas periferias da cidade, bem como um possível aumento na repressão desse crime por parte das agências de controle e à promulgação da nova lei de drogas(Instituto Sou da Paz, 2012: 20).

Um olhar sobre o início do fluxo diz muito sobre o que acontece no final do processamento de casos de tráfico de drogas. Na pesquisa Prisão Provisória e Lei de Drogas (Jesus et al: 2011), integrantes do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo analisaram 667 autos de prisão em flagrante, registrados entre o final de 2010 e o começo de 2011. Em seguida, por não terem acesso aos autos, coletaram informações sobre os processos por meio da página do Tribunal de Justiça de São Paulo na internet. Em 82,28% dos casos o flagrante ocorreu em via pública, sendo a abordagem iniciada por patrulhamento em 62,28% das ocorrências. Em 69,12% dos casos somente 1 pessoa foi conduzida à delegacia, o que surpreende se pensarmos que a comercialização de drogas envolve pelo menos dois agentes, um vendedor e um comprador. Nas prisões por tráfico de maconha, 79,49% das apreensões são de quantidades entre zero e cem gramas da droga. Em 74% dos casos só havia o testemunho de dos condutores do flagrante.

As questões supracitadas sobre as circunstâncias do flagrante são abordadas na presente pesquisa de doutorado. Elas ajudam a esclarecer uma parte do processo de seletividade da justiça criminal. Se a maioria dos flagrantes ocorre em vias públicas, se pequenas quantidades de maconha predominam entre as apreensões, se uma minoria dos processos conta com testemunhas civis, é evidente que uma enorme parcela do tráfico de drogas não adentra o fluxo de justiça criminal. Fica de fora a comercialização e consumo de drogas cujo consumo se dá predominantemente em festas dentro de estabelecimentos comerciais ou em imóveis residenciais.

As informações sobre o perfil dos indivíduos incriminados também são relevantes para entender o desfecho do fluxo de justiça para as infrações à lei de drogas. Dados interessantes são apontados por Campos (2012), na pesquisa em que analisou 1256 casos de porte e tráfico de drogas, oriundos de duas delegacias de São Paulo e relativos ao período de 2004 a 2009. O quadro geral é o de homens jovens, solteiros, com ocupações de baixa remuneração e baixo grau de escolaridade sendo incriminados. Do total de casos, apenas 1,3% dos indivíduos tinham ensino superior completo, enquanto 1,4% tinham ensino superior incompleto. A pesquisa não apresenta um dado importante para a compreensão de processos de seletividade na justiça criminal, a cor/raça dos indivíduos.

Antes de comentar os dados sobre populações prisionais, apresento uma tabela com as informações sobre ocorrências policiais registradas no Brasil para o crime de tráfico de drogas. Essas ocorrências correspondem ao período de 2008 a 2011, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública reuniu os dados do Sistema Nacional de Estatísticas em Segurança Pública e Justiça Criminal (SINESPJC). Os números referentes ao Distrito Federal foram destacados em negrito4:

4 À primeira vista, pode parecer que os estados de fronteira possam englobar ocorrências de tráfico transnacional de

drogas. Não é o caso, pois o SINESPJC não recebe dados da Polícia Federal, instituição incumbida de investigar e reprimir o tráfico de drogas entre o Brasil e outros países. O Acre deixa de figurar nas primeiras posições desse ranking, porque em 2010 e 2011 só enviou dados referentes à capital, Rio Branco. Minas Gerais apresenta taxas de ocorrência de tráfico muito maiores em 2010 e 2011, porque é um dos Estados que não alimentam adequadamente o SISNEPJC. São Paulo está em posição de destaque em todos os anos da série. O Distrito Federal, por sua vez, está sempre entre as oito primeiras posições do ranking de cada ano.

Tabela 1 – Taxa1 de ocorrências policiais por tráfico de drogas no período de 2008 a 20112

Fonte: Anuário Brasileiro de segurança pública - edições dos anos 4, 5 e 6. (1) Taxa de ocorrências para cada 100 mil habitantes.

(2) Distribuição das unidades da federação conforme a ordem decrescente das taxas

(3) Alguns estados não tinham as informações disponíveis, portanto, o campo não foi preenchido.

ANO

2008 2009 2010 2011

Rondônia 67.2 Rondônia 74.3 Rondônia 89.9 Minas Gerais 105.1

São Paulo 60.9 São Paulo 67.4 Minas Gerais 89.0 São Paulo 85.6

Acre 59.6 Rio Grande do S. 58.0 São Paulo 73.7 Rondônia 84.7

Espírito Santo 46.8 Mato Grosso 53.9 Rio Grande do S. 68.1 Rio Grande do S. 79.4 Mato G. do Sul 44.7 Rio de Janeiro 44.4 Distrito Federal 60.7 Distrito Federal 79.4

Rio Grande do S. 43.8 Santa Catarina 42.8 Espírito Santo 57.8 Espírito Santo 70.8

Distrito Federal 39.8 Mato G. do Sul 39.4 Mato G. do Sul. 57.5 Mato G. do Sul 64.0 Santa Catarina 34.3 Distrito Federal 39.0 Mato Grosso 53.5 Santa Catarina 60.6 Mato Grosso 34.2 Espírito Santo 37.0 Santa Catarina 51.5 Paraná 51.8

Goiás 22.7 Goiás 29.2 Paraná 45.4 Pará 49.8

Minas Gerais 21.1 Pará 27.8 Pernambuco 36.8 Pernambuco 46.9

Rio de Janeiro 20.4 Pernambuco 22.8 Pará 31.7 Acre 45.0

Bahia 19.1 Bahia 22.7 Rio de Janeiro 29.7 Mato Grosso 41.7

Pará 17.9 Amazonas 20.7 Amazonas 29.1 Amazonas 37.4

Amapá 17.1 Tocantins 19.5 Bahia 27.5 Ceará 35.6

Amazonas 16.4 Ceará 18.9 Goiás 27.3 Tocantins 29.3

Pernambuco 13.4 Amapá 18.7 Tocantins 27.3 Goiás 29.1

R. Grande do N. 13.3 Alagoas 15.7 Acre 19.4 Rio de Janeiro 28.7 Alagoas 12.1 R. Grande do N. 15.6 R. Grande do N. 18.7 Bahia 26.7

Tocantins 9.9 Maranhão 10.5 Ceará 16.8 Alagoas 20.5

Paraíba 9.4 Minas Gerais 10.4 Alagoas 15.4 Paraíba 15.1

Roraima 6.1 Paraíba 8.6 Piauí 8.8 Maranhão 7.3

Piauí 6.0 Piauí 6.7 Paraíba 7.9 Sergipe 0.7

Maranhão 4.2 Roraima 5.5 Roraima 7.1 Amapá 0.6

Paraná 2.4 Paraná 2.7 Maranhão 6.9 R. Grande do N. –

Ceará 0.6 Sergipe – Amapá 3.3 Piauí –