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Capítulo 2 Crime, Punição e impunidade no Brasil

2.2 Punição, fluxos de justiça e impunidade

A partir dessa descrição prévia sobre atuação das polícias como filtro do sistema de justiça criminal, é pertinente perguntar: qual é o papel do sistema penal brasileiro na manutenção da ordem e no exercício do controle social? Como é possível avaliar a eficácia das instituições estatais responsáveis por colocar em prática diferentes formas de punição? Somando-se a essa questões, existe uma pergunta recorrente no debate público sobre a criminalidade, bem como nos círculos jurídicos e acadêmicos: no Brasil, pune-se em excesso, a contento, ou aquém do desejável? Antes de medir esses graus da punição, é preciso saber quem é punido e com que propósito isso ocorre.

A mensuração das punições estatais pode ser feita pelo levantamento de taxas de criminalidade em relação às taxas de aprisionamento e taxas de condenação à prisão da população. O quadro que sai dessa investigação é o de um país pune alguns setores da população mais que outros, e pune mais os infratores de determinadas modalidades penais. Isso não é prerrogativa brasileira; não há sistema penal neutro.

Como foi discutido no primeiro capítulo desta tese, generalizações sobre mudanças que ocorreram nas sociedades contemporâneas (ou pós-modernas) não dão conta de explicar por que alguns países foram na direção de um aumento na diversidade e intensidade das punições, aumentando significativamente a população carcerária, enquanto outros ampliaram consistentemente as alternativas ao encarceramento, reduzindo a população prisional. Na mesma direção segue a constatação de que um país pode aprovar leis que agravam penas para certos delitos concomitantemente à aprovação de leis que definem penas alternativas à prisão para outras infrações. Esse é o caso do Brasil.

Quando se estuda o Legislativo, se repara que são aprovadas muito mais projetos de lei que ampliam o leque punitivo estatal do que projetos de lei que visam a criar alternativas à prisão, ou que aumentam direitos dos sujeitos incriminados (Campos, 2010). Devemos salientar que não necessariamente as penas alternativas à prisão são utilizadas para substituir penas restritivas de liberdade. Na própria doutrina jurídica, Bittencourt (2006) critica a imprecisão da expressão “penas alternativas”. E alguns trabalhos empíricos confirmam a tese de que as penas não restritivas

de liberdade podem ser somadas e atingir outros indivíduos, que em outros tempos não teriam sua infração levada à resolução judicial, havendo um aumento da população carcerária simultâneo ao crescimento no número de indivíduos que cumprem penas restritivas de direito (Berdet, 2014).

Os atores políticos são suscetíveis a alguns clamores populares. Se pesquisas de opinião pública apontarem uma percepção de impunidade na população brasileira, alguns parlamentares se mostrarão prontos a reduzir a impunidade por meio da aprovação de leis que aumentem penas ou restrinjam direitos dos acusados de cometer crimes. Note-se a diferença entre impunidade e percepção da impunidade. Muitas propostas legislativas e políticas do Executivo na área de segurança pública surgem com a intenção declarada de reduzir a impunidade, mas na verdade se desdobram em ações que atuam na percepção de impunidade presenta na população. Para fins eleitorais importa convencer a opinião pública de que a criminalidade está diminuindo, ou de que a impunidade é menor do que antes.

Quando se fala em impunidade na justiça criminal brasileira, é comum apontar o grande número de inquéritos instaurados a cada ano, os quais geram um número reduzido de denúncias e destas decorrem uma quantidade ainda menor de condenações. Como será discutido na próxima seção, tipos penais diferentes correspondem a fluxos de justiça distintos, não suscetíveis à comparação direta. Não há, portanto, fundamentos para utilizar as mesmas métricas (taxa de condenações, por exemplo) para comparar crimes de homicídio e crimes patrimoniais.

Quanto aos homicídios, onde a regra é uma baixa taxa de esclarecimento3, é seguro dizer que há impunidade no Brasil. Agora se considerarmos as ocorrências de tráfico de drogas, a situação é diferente. Na pesquisa que fundamenta a presente tese foram analisados processos com dez, doze indiciados, sendo apresentadas denúncias contra alguns desses indivíduos. No caso das mulheres, não é raro que elas sejam indiciadas por aparecerem em interceptações telefônicas tratando de assuntos alheios ao comércio de drogas. Também há indiciamentos com base em falsos testemunhos de pessoas que tentam se livrar da responsabilidade pelo crime a elas imputado. Nessas situações, é impróprio dizer que houve impunidade, porque o inquérito não suscitou a denúncia de várias pessoas.

Para continuar a argumentação, pode ser utilizado como exemplo o artigo de Adorno e Pasinato (2009), que afirma ser a impunidade “a desistência de aplicação da lei penal para crimes reportados à autoridade policial ou judicial”, e que a impunidade “está fundada na observação empírica do movimento de crimes selecionados no fluxo de justiça criminal”. Na hora de operacionalizar o conceito de impunidade, o autor e a autora utilizam indicadores como: “1) proporção daqueles que foram investigados, denunciados (e pronunciados, nos casos de homicídio) e condenados; 2) proporção dos condenados face àqueles que não obtiveram desfecho processual conclusivo; 3) proporção daqueles que, tendo cometido idêntico crime, não obtiveram o mesmo desfecho processual”. Com esses parâmetros, uma grande proporção de rejeição de denúncias soaria como um traço de impunidade.

É preciso conhecer as razões para a interrupção no fluxo de justiça criminal. Se a polícia de uma determinada unidade da federação apresentar ao judiciário um indivíduo autuado em flagrante e, ao examinar o inquérito e a denúncia do Ministério Público, o juiz constatar que são frágeis as evidências da autoria do crime, não instaurar a ação penal seria deixar de punir um indivíduo. Se houver uma prática sistemática de flagrantes forjados por um determinado batalhão de polícia, o Ministério Público pode constantemente requerer o arquivamento do inquérito, e isso é deixar de punir pessoas.

A definição de impunidade atrelada a taxas de conversão de boletins de ocorrência em inquéritos e de inquéritos em denúncias, no entanto, não invalida os resultados da pesquisa sobre a discricionariedade de agentes policiais e a seletividade que ocorre no processamento de ocorrências. Adorno e Pasinato (2009) ressaltam o caráter de seletividade que existe no fluxo. Constatam, por meio de dados empíricos, que determinados crimes tem maiores chances de serem investigados do que outros. Quando se trata de homicídios fica claro haver uma enorme proporção de inquéritos que não apontam a autoria do crime e que, consequentemente, são arquivados, enquanto a atenção da polícia civil pode se dirigir àqueles onde a prova testemunhal já apontou o autor do fato. Se aceitarmos a tese de que a polícia deveria ser pautada por metas para aumentar as taxas de esclarecimento, conforme sugerem os autores, isso não pressupõe o aprimoramento do trabalho da polícia técnica, pericial; pode se intensificar a frequência de inquéritos com autores apontados, sem base em evidências sólidas, sujeitos a uma posterior condenação pelo Tribunal do Júri, o que funcionaria como indicador de diminuição da impunidade.