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Capítulo 6 – Análise qualitativa dos processos

6.3 Lança-perfume

No capítulo sobre metodologia, onde se explica o processo de elaboração da amostra, foi descrito como a atuação de diferentes instituições policiais levam a diferentes processos penais por tráfico de drogas. No caso da Polícia Federal, se verifica a apreensão de quantidade bem maior de drogas. Podemos falar em tráfico no atacado, quando indivíduos com conexões interestaduais encomendam quantidade de drogas em grande escala, para ser revendida para traficantes locais.

Isso pode ser exemplificado nas ações penais instauradas a partir de uma prisão por tráfico de cloreto de etila, mais conhecido como “lança-perfume”. Em 2003, a Superintendência Regional do Distrito Federal investigava denúncias de um grande distribuidor de “lança-perfume”, quando chegaram ao suspeito Wesley29. Depois de descobrir onde Wesley armazenava as drogas, policiais federais passaram a monitorá-lo. Em uma ocasião, policiais o seguiram até Ribeirão Preto, onde deixou o carro com outra pessoa, que seguiu rumo ao Pará. O receptor do veículo, dias depois estaria em um caminhão que era aguardado por Wesley na BR 040, no acesso à cidade do Gama- DF. O caminhão foi interceptado pelos agentes federais, que encontraram nele quarenta caixas contendo 4609 frascos de “lança-perfume”. Foram então à residência de Wesley, no conhecido procedimento de entrada franqueada, onde mais 474 tubos foram apreendidos, fechando um total de 5083 frascos.

Um detalhe interessante desse caso foi a sentença, que partiu do mínimo legal de 3 anos, com base no seguinte argumento: “(...) os motivos não o beneficiam porque por ganância, em associação, mantinha em depósito e vendia grandes quantidades lança perfume; as circunstancias [sic] foram atenuadas pela prisão em flagrante e apreensão da grande quantidade de entorpecente”. A pena foi fixada definitivamente em 4 anos e 6 meses de reclusão, depois de considerada a agravante da associação para o tráfico.

Outro processo relativo ao tráfico de lança-perfume ajuda a pensar sobre a proporcionalidade das penas. O chefe da Seção de Repressão a Tóxicos da delegacia do Lago Sul

investigava Hebert, por supostamente ser ele o distribuidor de lança-perfume em raves de Brasília. Hebert seria preso em frente ao Conjunto Nacional, ao realizar a venda de 36 frascos contendo cloreto de etila. Em seguida, Sem mandado de busca e apreensão, policiais adentraram o apartamento do indiciado, efetuando a prisão de outros dois indivíduos que lá estavam, além de terem apreendido mais 17 frascos de lança-perfume. Na sentença que o condenou, a conduta de Herbert foi considerada “de alta reprovabilidade”, sua personalidade, “dissimulada” – tudo isso a despeito de ser réu primário e com bons antecedentes. O motivo do crime não o beneficiava, pois “buscava o lucro fácil mediante a mercancia ilegal de drogas em detrimento à saúde pública”. Por essas razões, a pena-base de Hebert foi 4 anos de reclusão. Diminuída em seis meses, por ter havido confissão espontânea, e majorada por conta da eventual associação com o outro réu, a pena chegou a 5 anos de reclusão. A pena de Herbert foi seis meses superior a de Wesley, embora este tenha traficado uma quantidade 96 vezes maior de lança-perfume. Na fase policial do processo, Herbert e Wesley são identificados como indivíduos de cor parda com grau de escolaridade referente ao 1º grau incompleto.

O último caso de indiciamento por tráfico de lança-perfume encontra um desfecho diferente dos mencionados anteriormente. Felipe era investigado pela Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes (DTE), desde que foram recebidas denúncias de comercialização de lança-perfume em uma academia de musculação situada na Asa Sul. Os policiais realizaram a campana no fim de uma tarde de julho de 2003. Acompanharam um indivíduo que saiu da academia em uma moto, voltando logo depois a pé. Depois que este indivíduo se encontrou brevemente com Felipe, os policiais o surpreenderam carregando uma sacola com 23 tubos de lança-perfume. Após o flagrante, ele disse que usaria a droga na Micarecandanga e disse ter pagado R$640 a Felipe. Este foi abordado por policiais, quando saia da academia e alegou que apenas intermediou a relação entre o consumidor final e o vendedor, que era conhecido seu. O vendedor teria adquirido a droga de outra pessoa, que, por sua vez, teria comprado caixas de lança-perfume de um distribuidor residente na Asa Sul — esses três indivíduos moram no mesmo bairro. É o que se depreende da leitura do auto de prisão em flagrante, das oitivas e interrogatórios.

Em seu depoimento, Felipe alega que, por estar preso, não poderia se matricular no quarto semestre do curso superior de publicidade. É identificado ao longo do procedimento penal como indivíduo branco, empregado, residente no Lago Sul. Esse perfil pesa na sentença proferida em

março de 2004. Por ser “pessoa recuperável” que “não tem a personalidade voltada para o crime”, “estudante universitário (...) com emprego fixo”, sua pena-base foi fixada no mínimo legal, ou seja, três anos de reclusão. Sua pena foi atenuada com base em um artigo da lei 9807/99 (lei que instituiu o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas) que dispõe sobre medidas para os réus colaboradores. Em seguida, o juiz explica em detalhe o porquê de determinar a substituição da pena de reclusão por penas restritivas de direito:

Todos os sentenciados são estudantes universitários, tem residência fixa, trabalham, são de família estruturada, são benquistos na comunidade em que vivem, cometeram um crime que ocorre, no DF, quase que exclusivamente na época de carnaval e Micarecandanga e desconheço, nos oito anos que sou juiz titular (...), a existência de dependentes quimícos do consumo de lança-perfume. Por isso os sentenciados, perfeitamente recuperáveis, não devem ser recolhidos em um cárcere, local em que jamais serão educados e ressocializados, muito pelo contrário, naquele ambiente deletério, saíram [sic] verdadeiros e perigosos criminosos.

Assim, para este caso, excepcionalmente, ultrapasso a vedação legal prevista na lei dos crimes hediondos e aplico aos sentenciados, por inexistência de óbice legal expresso, o previsto na Lei nº 9.714/98. Substituo a pena privativa de liberdade aplicada por duas penas restritiva [sic] de direito; a primeira restritiva de direito será na modalidade de prestação de serviço à comunidade, em hospital da rede pública, por 04 horas aos finais de semana e pelo período de 02 anos; a segunda pena restritiva de direito será a de entregar mensalmente e pelo período de 02 (dois) anos e 08 (oito) (meses), uma sesta [sic] básica para uma das entidades filantrópicas cadastradas (...) [texto com os grifos originais].

O único autuado por porte de lança-perfume para consumo pessoal foi Talib, surpreendido com três frascos da droga quando foi revistado em uma blitz ocorrida em Samambaia. O caso foi encaminhado a uma Vara de Entorpecentes, mas houve o declínio de competência em favor de um Juizado. Na audiência preliminar, ocorrida em outubro de 2004, Talib e seu advogado concordaram com a proposta de transação penal oferecida pelo Ministério Público. Comparecer às sessões designadas pelo Núcleo Psicossocial do Juizado Central Criminal (NUPS). No início do

ano de 2005, Talib requereu uma autorização judicial para viagem ao exterior, alegando que o requerente “tentou, sem sucesso, o cumprimento de toda a terapia até o início do mês fevereiro”, porque não havia vagas nas sessões realizadas pelo NUPS nos meses iniciais do ano. O pedido destaca a dificuldade do requerente em obter um visto para estudar durante 1 ano nos Estados Unidos, especialmente por ser ele um brasileiro de ascendência síria. O Ministério Público não criou óbice ao apelo, e alterou a transação penal para uma prestação de serviços na Administração Regional do Núcleo Bandeirante. A nova transação foi cumprida e foi declarada a extinção de punibilidade do autor do fato.

Na pesquisa aqui apresentada não apareceu qualquer autuação de indivíduo portando lança- perfume em shows ou carnavais fora de época. Entretanto, na data da edição de 2005 da Micarecadanga, um indivíduo foi encaminhado à delegacia por porte de drogas. Anderson estava no carro de um amigo, no estacionamento do Centro de Convenções Ulisses Guimarães, quando foi abordado por policiais às 23:00 de um domingo. No carro foram encontradas algumas porções de maconha que inteiravam 1,22g de massa líquida, de acordo com o Laudo de Exame em Substância Vegetal. De acordo com o boletim de ocorrência, os autores afirmaram ser usuários de maconha, que estavam “indo curtir a micarecandanga” quando foram abordados por policiais militares. Na audiência em que ocorreu a homologação da transação penal, Anderson concordou em prestar 96 horas de serviços, 8 horas por semana, a serem concluídos em até 03 meses, no Lar dos Velhinhos. O autor não apresentou a folha de frequência quando foi requerida. Então foi oferecida a denúncia em novembro de 2005. Foi marcada audiência intermediária em janeiro de 2006, quase cinco meses após a data do fato, sendo extinta a punibilidade, apesar do cumprimento parcial das obrigações estabelecidas na transação.