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7 ESTADO BRASILEIRO E SUAS REFORMAS ADMINISTRATIVAS

7.1 FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

A história da formação do Estado brasileiro é um amálgama de avanços e recuos sem, contudo, romper com estruturas e práticas estabelecidas desde o período colonial (LEITE JÚNIOR, 2009; COSTA, 1999). A literatura sobre a formação do Estado brasileiro destaca como as práticas do mandonismo, patrimonialismo, clientelismo e seus derivantes vão se constituir ora como problema estrutural, ora como herança cultural que perpassam o período imperial e desembocam na República. Essas práticas e outras foram construídas e ainda são mantidas em vigor como forma de estruturar as relações entre sociedade e Estado no Brasil (NUNES, 2003).

Para Costa (1999), a despeito das transformações ocorridas entre 1822 e 1889, as estruturas econômicas da sociedade brasileira não se alteraram profundamente de modo a provocar conflitos sociais mais amplos. O sistema de

clientela e patronagem que permeava toda a sociedade minimizou as tensões de classe e de raça.

A instalação da corte portuguesa em terras brasileiras, a partir de 1808, ensejou as bases do Estado brasileiro e de seu aparato administrativo para dar suporte às necessidades da família real e de seus asseclas. Essa nova configuração político-administrativa teve como fortes características o autoritarismo, a centralização, o clientelismo, o paternalismo e o patrimonialismo.

A revisão de literatura revela que práticas danosas do período colonial, oriundas de Portugal, persistem na atualidade brasileira. Apesar das diversas mudanças e alterações de comando e poder na condução do Brasil a partir da vinda da coroa portuguesa, essas práticas foram reinventadas e encontram formas modernas de coexistir com outras, tais como: o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos. A administração pública evoluiu de um estamento burocrático precário e assistemático, instalado no período colonial, a um sistema complexo de normas e procedimentos de controle da administração na República.

Para Abrucio, Pedroti e Pó (2010), a burocracia formada a partir da monarquia cumpria duas funções: a primeira competia a uma alta burocracia – selecionada pelo mérito de relacionamentos pessoais e apadrinhamento – participar da definição de diretrizes; a segunda, servia para a patronagem de cargos em troca de apoio das elites urbana (não nobres) e as oligarquias agrícolas. Todavia, este modelo centralizador com uma pequena elite de mérito não chegava aos recônditos do país. Por isso, Prado Júnior (2011) diz que houve diferenciações regionais do emprego do patrimonialismo e clientelismo.

Abrucio, Pedroti e Pó (2010, p. 33) ressaltam ainda que as administrações públicas pelo “mundo afora ainda eram igualmente marcadas por fortes traços patrimonialistas. As primeiras reformas de sentido burocrático-weberiano começaram na segunda metade ou final do século XIX.” O Brasil começou a perder o bonde da história com a República Velha, quando houve um enfraquecimento do Estado brasileiro, no plano central, devido à prevalência do sistema estadualista e oligárquico.

Além das discussões acerca de tais práticas e sua institucionalização na formação do Estado brasileiro e da administração, há outras contribuições teóricas que elucidam questões relativas à implantação do modo capitalista no país e suas

consequências. Oliveira (2003)15, por exemplo, discorda do dualismo ‘moderno e

arcaico’ e ‘desenvolvido e subdesenvolvido’ empregado por estudiosos da formação do Estado no Brasil e diz que essas teorias desconsideram o processo de acumulação interno que foi empregado no Brasil desde 1930, que, para se viabilizar, concentrou renda e propriedade em escala assombrosa, como estratégia para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro.

Por exemplo, as políticas criadas para o desenvolvimento da agricultura se caracterizaram como um capitalismo primitivo, o qual fornecia condições para existir, contudo, não suficientes para tornar-se autônomo. E assim, a ideologia desenvolvimentista conseguia manter uma força de trabalho urbana disponível para a indústria e outra rural para a agricultura, que, por sua vez, também almejava as promessas do trabalho urbano-industrial.

Para Oliveira (2003), a agricultura atrasada financiava a agricultura moderna e a industrialização e, assim, ele desmitifica as teses defendidas de que o setor “agricultor atrasado” significava fator impeditivo para o desenvolvimento, bem como o inchaço das cidades levava à marginalidade e à incompatibilidade da legislação do salário mínimo com a acumulação de capital. Essas razões dualistas impedem a observação da formação do Estado brasileiro sob a perspectiva de tomadas de decisão conscientes para a promoção do modo capitalista e aprofundamento das condições de subdesenvolvimento.

Faoro (2001) defende que a realidade brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial resistindo progressivamente à experiência capitalista. Esse autor também questionou o dualismo entre o moderno e o tradicional para explicar a formação do Estado brasileiro e destaca o predomínio do quadro administrativo e o do estamento burocrático. Defende que o patrimonialismo se adapta às mudanças impostas pelo pré-capitalismo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação monopolista sobre as manipulações financeiras, concessão pública de atividades, controle de crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa variação escalar que vai da gestão direta à regulamentação material da economia.

15Oliveira (2003, p. 127) discorda da ideia darwiniana do subdesenvolvimento como uma evolução,

mas ao contrário a entende como a “produção da dependência pela conjunção de lugar na divisão internacional do trabalho capitalista e articulação de interesses internos [dos países].”

Alguns traços importantes da formação nacional não constituem privilégios e singularidades brasileiras. Esses estão presentes também em inúmeros países latino-americanos e em alguns países mediterrâneos. O que é singular “entre nós é o desejo de diferenciação, o reconhecimento (ainda que equivocado) dessa singularidade e a valorização positiva de alguns de seus aspectos – cordialidade, estabilidade, lealdade, esperteza, etc.” (COSTA, 2006, p. 141).

Costa (2006) examina algumas características recorrentes nas interpretações do Brasil, tais como: patrimonialismo, personalismo e autoritarismo. Invoca também outras disfunções a elas relacionadas: formalismo, clientelismo e o mandonismo, que se configuram em restrição ao exercício da cidadania. Sua análise permite caracterizar esses fenômenos como estrutura e função, bem como sua influência e impactos sobre práticas sociais, políticas, administrativas do Estado. Para o autor, a modernidade brasileira, iniciada a partir do governo de Getúlio Vargas, jamais logrou minar as bases dos interesses oligárquicos e estamentais que dele se beneficiam, pois “prevaleceu a força da tradição legitimadora da privatização do Estado, que se mantém como principal arena da política de grupos.” (COSTA, 2006, p. 145).

Já Nunes (2003), ao estudar a formação do Estado brasileiro, compreendido entre 1930 e 1970, salienta que as instituições formais e informais brasileiras dão a tônica na formação do Estado no Brasil e também do modo de produção capitalista aqui instalado. Para este autor, os estudos tendem a analisar com mais frequência as práticas formalizadas em códigos e procedimentos legais, tais como: o corporativismo, o autoritarismo burocrático, a formulação autoritária de políticas e outros. Ignoram também o uso das instituições aparentemente informais e fluídas, a exemplo do jeitinho, da amizade e das redes de relações sociais adotadas pelos governantes e demais grupos políticos.

O dualismo construído pelo capitalismo periférico como uma transição do tradicional para o moderno impede a análise da combinação de elementos distintos e duráveis que caracterizam uma sociedade específica, no caso a brasileira. Condições “estruturais similares podem produzir diferentes resultados em sociedades distintas, dependendo do padrão das escolhas feitas pelos principais atores políticos” (NUNES, 2003, p. 25).

Para este autor, as instituições políticas desempenharam um papel “crucial na manutenção e integração, dentro de um marco nacional, de relações de classe e de padrões de acumulação de capital, no processo de implantação de uma moderna

ordem econômica industrial no Brasil.” (NUNES, 2003, p. 17). Paradoxalmente, essas instituições não refletem a existência de um modo moderno de produção capitalista no país. Os estudos de Nunes (2003) evidenciam como a introdução do capitalismo moderno no Brasil interagiu com a criação de um sistema institucional sincrético, antes regional e dualista, agora nacional e multifacetado.

Nunes (2003) usa a noção de gramática para indicar a existência de princípios que estruturam as diferentes linguagens em uso no mundo da política. Estes princípios estão presentes no modo pelo qual instituições e sistema social se articulam e como ações e expectativas humanas são produzidas, ou seja, são padrões institucionalizados de relações que estruturam os laços entre sociedade e Estado brasileiro. No Brasil, existem quatro gramáticas preponderantes: clientelismo (e suas duas formas patrimonialismo e fisiologismo), corporativismo, universalismo de procedimentos e insulamento burocrático. Estas últimas emergem nos anos 1930, sob o governo de Getúlio Vargas.

Para Bresser-Pereira (2003, p. 11), essas quatro instituições políticas dividem o trabalho: o clientelismo e o corporativismo servem como instrumentos de manutenção e legitimidade política; o insulamento burocrático, como meio pelo qual as elites modernizantes tecnocráticas e empresariais promovem o desenvolvimento; o “universalismo de procedimentos, a afirmação lenta de um regime burocrático racional-legal e eventualmente democrático.”

Nunes (2003) usa as categorias personalismo e impersonalismo para explicar como as gramáticas coexistem no Brasil e como a formação histórica, política e social contribuem para reforçar e reconhecer tais práticas. Por exemplo, o clientelismo é a materialização do personalismo em oposição ao impersonalismo proposto pelo universalismo de procedimentos. Já o corporativismo e o insulamento burocrático lançam mãos tanto do personalismo quanto do impersonalismo.

Costa (2006, p. 146) também usa o personalismo para caracterizar uma forma particular de hierarquização social baseada na distinção entre indivíduos e pessoas. O autor expõe que numa sociedade relacional, “os elementos que conferem racionalidade e legitimidade à dominação burocrática, como a igualdade perante a lei, a universalização na aplicação da norma e o princípio de isonomia,” estão sujeitos à hierarquização social que distingue indivíduos (não é um cidadão completo) e pessoas (filho do deputado, governador, coronel) e posiciona estes membros de acordo com o peso de seus relacionamentos. Esse indivíduo não é

percebido como o patrão, cliente e a própria razão de ser dos Estados e dos serviços prestados, por quem está dos dois lados dos balcões da burocracia.

Com relação ao autoritarismo e democracia, Costa (2006) afirma que na maior parte do Estado brasileiro não vigora um sistema legal que assegure a efetividade dos direitos e garantias de indivíduos e grupos, que, mesmo fundado em relações assimétricas, possa garantir a ordem e a previsibilidade de comportamentos consistentes com a lei. O autor assevera que onde impera esse vazio legal, não há cidadania. Esse sistema de sujeição está na raiz do mandonismo local, configurado pelo domínio e reprodução das estruturas de poder oligárquico e de sua representação fisiológica e clientelista no sistema político nacional. Então, as relações entre Estado e sociedade, que configuram esse sistema e a democracia, caracterizam não somente um regime autoritário, mas também um Estado autoritário.

Em contextos clientelistas, como o brasileiro, as trocas são generalizadas16 e

pessoais diferentemente de contextos da troca específica que caracteriza o capitalismo moderno (NUNES, 2003). No Brasil, as relações sociais ainda são permeadas por estas instituições aparentemente informais. A situação de desigualdade social e econômica é, pois, imprescindível para que tais relações de lealdade se perpetuem entre os patrons e clientes.

Na época do coronelismo, os donos do meio de produção eram considerados

patrons, enquanto que os camponeses eram os clientes, isto é, relações

personalísticas e trocas generalizadas e pessoais. No Brasil contemporâneo, as políticas sociais e personalísticas ainda tentam criar laços tipo patron e clientes, contudo, lançando mão de meios racional-legais e de estratégias legais e institucionalizadas por meio de programas governamentais que criam condições para a população de baixa renda subsistir, mas não suficientes para tornar-se autônoma ou emancipada.

O evento da vitória do movimento republicano, liderado por oficiais do exército e apoiado por elites oligárquicas insatisfeitas, altera a forma de governo de Império para República, mas não elimina os males sociais, o nepotismo, a patronagem e o

16 Trocas generalizadas e pessoais porque cada objeto ou ação que é trocado contém uma referência

à condição geral do grupo (NUNES, 2003, p. 27). A relação de compadrio inclui o direito do cliente à proteção futura por parte do seu patron. Já no contexto do capitalismo moderno, capitaneado pelas economias desenvolvidas, as trocas são específicas e impessoais, isto é, o trabalho é comprado e vendido num mercado livre.

patrimonialismo. Diversos fatores contribuíram para a conformação atual do Estado contemporâneo, tais como: a definição do sistema presidencialista, o voto direto para os poderes Legislativo e Executivo e a concessão de maior autonomia aos estados e municípios pela Constituição de 1891.

Assim, o Estado agrário-patrimonialista do Império se estende até a Primeira República. Os burocratas recebiam sua renda proveniente do Estado e construíram um complexo sistema de agregados e clientes em torno deles sustentado pelos recursos públicos. Isso constituiu o patrimonialismo e o clientelismo, pois o critério de escolha usado pelos burocratas não era o racional-legal. O Estado era entendido, por eles, como a extensão de suas propriedades privadas (LEITE JÚNIOR, 2009).

As reformas propostas pela República Velha não foram completamente realizadas porque houve uma excessiva multiplicação de municípios, pouco incentivo para a cooperação intergovernamental, a patronagem sobreviveu na maior parte do país, o federalismo compartimentado elevou os níveis de desempenho das instituições governamentais, mas não proporcionou o link entre elas (ABRUCIO, 2005).

A prática do clientelismo figurava como uma ética do favorecimento e troca de favores sobre a ética competitiva, e o bem público confundia-se com os bens pessoais. Essas práticas se constituíam obstáculos ao sistema capitalista. Por outro lado, o capitalismo periférico com dinamismo limitado não era suficiente para desarticular essas bases de sustentação de clientelismo (COSTA, 1999).

A primeira fase da República é marcada pela divisão de poder entre os militares e república oligárquica “Café com Leite” oriunda, respectivamente, dos estados de São Paulo e Minas Gerais até 1930. Naquele período, as oligarquias ficaram conhecidas pela relação de troca com os coronéis; isso marca a presença do coronelismo na vida política e nas relações sociais.

O sistema estadualista e oligárquico, que prevaleceu na República Velha, reforçou a patronagem no plano subnacional pela via da política do coronelismo (ABRUCIO, PEDROTI, PÓ, 2010). Coronelismo significava que os coronéis17 exerciam o poder político, econômico e social sobre a população local e, por conseguinte, influenciavam a tomada de decisão da política regional e nacional e exerciam certo controle sobre as eleições. Isso evidencia a fragilidade do sistema

eleitoral e da autonomia de escolha de representantes pela população. Em alguns estados, os coronéis ditavam as regras e o Estado era uma extensão de seus domínios.

Some-se a essa influência nefasta o processo eleitoral, bem como as fraudes na apuração dos votos que contavam com a conivência do próprio Congresso em acordo com o presidente da República para o reconhecimento dos deputados.

Para Leal (1980), o coronelismo se constituía um sistema político expresso numa complexa rede de relações que ia desde o coronel até o presidente da República.

Com o advento do federalismo, os governadores eleitos tinham autonomia para governar, todavia, deviam negociar e manter uma relação de troca com os coronéis a fim de manter certa estabilidade. Essa relação envolvia o apoio dos coronéis para angariar votos nos locais onde exerciam domínio. Em troca, os governadores distribuíam vantagens aos apoiadores. A distribuição de cargos públicos não era apenas uma questão de empreguismo, mas sim o privilégio dado aos coronéis para indicar pessoas para assumir cargos de juiz, delegado e, até mesmo, de professora primária.

Isso servia aos interesses econômicos, de segurança, manutenção e ampliação dos poderes instrumental, estrutural e simbólico dos coronéis (LEAL, 1980). As funções do juiz e do delegado, estando sob o domínio de alguns coronéis, eram utilizadas como recursos estratégicos para o controle da mão de obra e para a competição com fazendeiros rivais ao permitir oprimir ou proteger os próprios trabalhadores ou perseguir os trabalhadores dos rivais fazendo uso da polícia como trunfo na luta econômica (CARVALHO, 1997).

Na República, as tarefas de manutenção da ordem foram submetidas à burocracia na medida em que delegados se tornaram funcionários públicos, e os estados aumentaram rapidamente o efetivo de suas polícias militares que substituíram a Guarda Nacional na sua função original. A Igreja também foi separada do Estado, tendo em vista que serviços antes efetuados por ela, a exemplo do registro civil (de nascimento, de casamento e de morte), passaram a ser responsabilidade do Estado.

As novas elites médias urbanas foram atreladas às oligarquias de cuja patronagem dependiam – o que impôs limites à sua crítica - devido às ligações familiares, de amizade e lealdade (COSTA, 1999). Segundo Carvalho (1997), não

havia lutas de classe, pois os interesses mais amplos dos coronéis, como classe, eram raramente desafiados pelos governos ou pelos trabalhadores. Para Faoro (2001), acima das classes, estava o aparelhamento político por uma camada social nem sempre articulada que imperava, regia e governava, em benefício próprio, num círculo vicioso e impermeável de comando.