• Nenhum resultado encontrado

Formas de ocupação de áreas públicas

No documento Gilberto Luiz Lima Barral (páginas 138-142)

Além dos problemas resultantes da ocupação de áreas públicas da superquadra (o puxadinho das lojas e a ocupação dos estacionamentos pelos frequentadores; a emissão de som e barulho; a “Lei Seca” e o consumo de álcool e veículo), existe outro, relacionando o bar à vida na cidade: a circulação de indivíduos e grupos estranhos, de pessoas de fora da vizinhança. Em linhas gerais, seriam quatro os principais elementos da sociabilidade do bar com a cidade, em sua face exterior: barulho; ocupação de áreas públicas; consumo de álcool e trânsito;

outsiders ou pessoas estranhas à quadra.

A circulação de pessoas estranhas ao ambiente da quadra é um dos importantes elementos na relação conflituosa do bar com seu espaço exterior. Essa é uma imagem que alguns vizinhos têm do bar. Uma moradora, da quadra 109 sul, nas proximidades do bar Beirute, Senhora Q, diz:

Antigamente a gente saía e encontrava umas pessoas amigas. Hoje, a gente desce e já não encontra mais ninguém, é tudo gente desconhecida. A gente fica com medo. Ontem mesmo tinha um monte de moça e rapaz atrás daquelas lojas, pessoas que nunca vi por aqui. A gente mora aqui, mas nem pode sair nas ruas... tá cheio de gente desconhecida, que vem de outros lugares pra fazer bagunça. Isso atrapalha a quadra. Eles estacionam o carro, ligam o som. (Senhora Q, vizinha).

Na obra clássica de Norbert Elias Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade (2000), surge uma proposta metodológica apropriada para se observar e pensar a relação entre habitantes de uma mesma localidade. No caso de Brasília, tal proposta ajuda na observação de como moradores e frequentadores de bar, vivendo lado a lado, elaboram representações sobre o outro. Os frequentadores dos bares aparecem como invasores para os moradores. Os moradores das quadras residenciais são representados como “velhos moralistas” por frequentadores. O lúdico, a brincadeira, a graça muitas vezes não ocupa uma boa posição nesse espaço da moral e da ordem.

Esse “monte de moça e rapaz”, que vem ocupar a quadra, segundo a moradora, não teria direito à cidade. Tomando a perspectiva da Senhora Q, e o modo de vida que ela defende para a quadra, provavelmente não haveria vida no lugar. Hoje, parte dos moradores que ela conheceu, provavelmente, estaria na mesma faixa etária que ela. São moradores que, talvez, façam um uso muito restrito dos espaços da quadra, principalmente de bares, particularmente as mulheres. Há um grande número de bares que têm entre seus frequentadores senhores aposentados, moradores das superquadras, no entorno do bar.

O Beirute, na Asa Sul, tem convivido com esse problema. A quadra em que está instalado é das mais antigas da cidade. Seus moradores são, em sua maioria, pioneiros da primeira geração brasiliense. Por isso, quando a Senhora Q “desce”, “já não encontra mais ninguém, é tudo gente desconhecida”. Entre esses desconhecidos estão flanelinhas74, ambulantes, usuários e traficantes de drogas.

Ainda mais, sobre estes últimos, desde aproximadamente o ano de 2002, vêm se

74

“Flanelinhas” é o codinome de pessoas que trabalham nas entrequadras, “regulando” e tomando conta de carros nas áreas de estacionamento. Alguns são regulamentados, têm registro e autorização para trabalharem na área, mas a maioria, principalmente os que exercem a atividade no período noturno, são trabalhadores autônomos, avulsos, sem nenhum registro ou respaldo legal para a atividade no local.

instalando no local, grupos de traficantes e usuários de drogas que praticamente moram nas imediações. O “medo” da Senhora Q tem fundamento.

“O monte de moça e rapaz atrás daquelas lojas”, citados pela Senhora Q, não são o tipo de frequentador do Beirute. A observação direta e prolongada possibilitou ver e acompanhar a conduta e o comportamento desse grupo, desse “monte” ou ajuntamento de pessoas, atrás das lojas comerciais. Mas, alguns entre os frequentadores desse bar estabelecem relações com o “monte de moça e rapaz”. Em um artigo publicado no livro Beirute, final de século, o editor Fernando de Oliveira Fonseca, descreve o público outsider, os “de fora” da vizinhança:

Alguns vendedores de artesanato insistem em vender suas quinquilharias na penumbra, com seus olhos vermelhos e movimentos hesitantes; bêbados, que fingem tomar conta dos carros; homens e mulheres, sem as atitudes funcional-burocráticas da rua; rapazes e moças bastante jovens, que ficam sentadas nos batentes das lojas vizinhas, fechadas no horário noturno, encostados nos carros ou apoiados sobre seus capôs, com olhares desconfiados e à espera de suas primeiras experiências. Nos extremos convivem pessoas terminais, definitivamente entregues ao fracasso. (FONSECA, 2010: 269).

Uma relação, em termos de estabelecidos e outsiders, pode ser apresentada de quando da chegada dos pioneiros moradores, os burocratas que viriam ocupar os edifícios públicos e residenciais da cidade. Como informou Sr.

Generoso, os moradores foram chegando e expulsando os trabalhadores para

outros lugares, para outros bares. Relembrando sua fala, temos que

de repente foram chegando os novos moradores de Brasília e eles precisavam de um lugar pra conversar. E eles foram ficando por aqui, eu atendia eles... e os antigos fregueses... os trabalhadores começaram a só passar aqui, beber alguma coisa e ir embora. Depois eles foram sumindo, e foram ficando os que moravam por aqui. (Sr. Generoso).

“Os novos moradores de Brasília, precisando de um lugar para conversar”, “invadem” os espaços dos pioneiros construtores, expulsando-os para outros lugares. Já estava previsto para os “pioneiros construtores” que eles deveriam abandonar a cidade quando terminassem seus trabalhos75. Para além da

75Esse “acordo” entre governo, empreiteiras e, na ponta, os operários é um tema polêmico que se traduziu de diversas maneiras na vida política, social e cultural da cidade. O filme As idades de

invasão e ocupação, um outro abandono e exclusão os “pioneiros moradores” irão fomentar na sociabilidade local. Em seus papéis de administradores, burocratas e migrantes da linhagem “impoluta” das metrópoles do Sudeste e Nordeste, que chegam para “inaugurar” e fazer funcionar a Capital Federal, eles reproduzem a dominação cultural e simbólica dos seus estados de origem. Invocam mais que o espaço social do bar, a vida do lugar, da superquadra, de Brasília.

O processo de exclusão dos “pioneiros construtores” de Brasília para suas cidades de origem, ou para as outras cidades do Distrito Federal e do entorno do estado de Goiás tem início com a chegada dos “pioneiros moradores”. Ao “ir ficando” na superquadra, nos edifícios e nas áreas públicas, esses moradores criam condições, condutas e comportamentos para uma reconfiguração do espaço público na experiência urbana da cidade que se inicia. Por isso, essa ocupação e “invasão” inicial podem se estender até o momento, gerando essa configuração atual. A

Senhora Q, quando, por exemplo, busca explicar sua insegurança, aponta os de

“outros lugares” como responsáveis por seu medo.

Ao construir seu texto poético para o livro Beirute, final de século, o editor Fernando Fonseca deixa sua marca de habitué das estirpes “impolutas”. No entanto, o importante no texto de Fonseca não é tão somente a sua “marca de estirpe”, mas sobretudo o apontamento das “atitudes funcional-burocráticas” como estilo de vida e comportamento “da rua” do Beirute, bar em que se apresenta a cena, que ele descreve nesse seu texto, sobre os tipos outsiders que “invadem” o espaço da vizinhança da superquadra 109 Sul.

Brasília, de Renato Barbieri, traz uma sequência que projeta bem a figura do “pioneiro construtor” e sua relação com a ideia de voltar; em determinado momento, seu “destino” torna-se o “ficar”.

2.3 COTIDIANO DE BARES: INTERIORES

No documento Gilberto Luiz Lima Barral (páginas 138-142)