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Intimidades Lado B: banquinho, balcão, balconista

No documento Gilberto Luiz Lima Barral (páginas 189-195)

Ao procurar uma definição para consumidores e usuários de bar, foi comum encontrar, em textos acadêmicos, a palavra frequentador para designar esta categoria de ocupantes desses tipos de lugares. (COUCEIRO, 2007; ZANELLA, 2011; FONSECA, 1994, 2010). O frequentador vivenciando fidedignamente, assiduamente, com intensidade e envolvimento o ambiente do bar cria um espaço de lazer que participa das histórias e memórias da cidade. O bar pode ser percebido como um “pedaço” da cidade, um lugar, e no caso desses bares de Brasília, um pedaço vivo e dinâmico. A noção de “pedaço”, de José Guilherme Magnani (1984), ajuda a compreender a sociabilidade que esse lugar proporciona.

O “pedaço”, na noção de Magnani (id.), diz respeito a uma teia de dependências formada por laços de parentesco, vizinhança, amizades, organizando uma ordem espacial, de forma a proporcionar um sentimento de pertencimento e territorialidade. A noção de “pedaço” designa um espaço, entre o privado e o público.

Nesse espaço praticado se desenvolve uma sociabilidade básica, densa, significativa e estável. Espaço territorial e socialmente definido por meio de regras, marcas e acontecimentos que o torna pleno de significação. (MAGNANI, 1984, p. 38-39).

Nessa perspectiva, as interações entre os frequentadores dos bares estruturam uma ordem espacial porque são vinculadas ao lugar onde se realizam. O bar não está isolado da vida da cidade, é parte de sua localidade. Ele proporciona coesão e sentimento de pertencimento que configura a extensão de sua sociabilidade. Também, essa qualidade do pertencimento ao “pedaço” designa o caráter dessa sociabilidade. Entre os frequentadores do bar Piauí, a reciprocidade nas interações, o frequentar mútuo e o relacionamento são condições da permanência no lugar. Um frequentador do bar Piauí, Sr. Caixa, diz:

A chegada sempre é difícil... mas, aos poucos a gente vai se ambientando. Brasília tem muito do Rio de Janeiro, as pessoas são calorosas, gostam de conversar... a cidade tem muitas opções, mas depende da pessoa né...eu costumo frequentar os barzinhos pra bater papo com os colegas do trabalho, prá fazer a atualização do dia a dia, atualizar a vida cotidiana. Da vida política, seja ela política, econômica, social do país; Eu procuro, geralmente, eu ocupo a maior parte do meu tempo nesse aspecto, de frequentar o bar, e conversar com os amigos... O aspecto que eu acho muito positivo em ficar no bar é o relacionamento. (Sr. Caixa, entrevistado).

Muitos bares de Brasília, assim como os de alguns outros lugares, possuem seus frequentadores constantes, compulsórios, convictos. Sylvia Costa Couceiro, em sua pesquisa sobre os bares e cafés do Recife, considera os frequentadores em termos de assiduidade como “visitantes contumazes” (COUCEIRO, 2007)101. São estes que com sua frequência e presença, em muitos casos, dão vida a esses lugares, e ajudam a fixar o bar como espaço de sociabilidade e lazer. Em tese, proprietários e funcionários utilizariam o bar como forma de trabalho. Já os frequentadores de bares utilizariam esse lugar como um espaço de lazer.

Considero, a partir das observações colocadas, o usuário dos bares pesquisados como um “ilustre frequentador”. Ele se difere do cliente ou do freguês

101 Em sua pesquisa, Sylvia Costa Couceiro lista os “visitantes contumazes” de um famoso e tradicional Café do Recife, entre outros: Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, José Lins do Rêgo, Ascenso Ferreira.

ocasional, que pode ser encontrado, por exemplo, em bares situados em lugares de passagem ou grandes avenidas, onde talvez esse cliente entre uma só vez e nunca mais retorne. O modelo do bar pesquisado possibilita a estabilidade do frequentador, assim este pode ser categorizado em termos de assiduidade e frequência ao lugar, mas se podem reconhecer nele outras disposições. A forma como este ocupa o bar, as relações que estabelece com outros frequentadores, com os proprietários e funcionários, o capital econômico que dispende, os produtos que consome, o capital cultural que coloca em circulação, as práticas de comensalidade que compartilha são atributos que compõem sua personagem.

Os bares pesquisados são lugares propícios ao ajuntamento de certos atores da vida social da cidade. Seus “ilustres frequentadores” sabem o que esperar do lugar. Ao irem ao Meu Bar, encontrarão o atendimento personalizado do proprietário Zé, que cumprimenta nominalmente os frequentadores, proporcionando acolhimento e licenciosidade ao lugar. O cumprimento de Zé encontra o cumprimento do frequentador, jovem universitário, que chega é dá “um tapa e um soquinho no tapa e um soquinho” do Zé. Um modo de se cumprimentar, no encontro entre algumas pessoas de Brasília, particularmente entre jovens. O “ilustre frequentador” do Meu Bar pode ser jovem homem ou mulher, estudante universitário, músico, artista, adulto, aposentado, morador das superquadras próximas. Mas a grande maioria dos frequentadores do Meu Bar é de jovens universitários.

São os “ilustres frequentadores” do Meu Bar os grandes responsáveis pela construção da imagem, merchandising e a fixação desse estabelecimento como espaço de lazer em Brasília. Na Copa do Mundo de Futebol dos anos de 2006 e 2010, foram esses “ilustres frequentadores” que tornaram possível o ajuntamento no lugar para a socialização desse evento. Em acordo entre frequentadores e proprietário, os primeiros disponibilizaram os equipamentos de projeção que tornou possível assistir aos jogos no Meu Bar. Nas redes sociais do Meu Bar na Internet são os “ilustres frequentadores” os moderadores de comunidades e páginas. Pode- se encontrar no site de vídeos do Youtube uma dezena de material audiovisual produzido por esses “ilustres frequentadores” que faz referência a este bar.

No caso do Beirute, entre seus “ilustres frequentadores”, se encontram, por exemplo, um grande número de jornalistas. E isso contribui em muito para a publicização desse bar e dos acontecimentos, que ali encontram eco e que se

relacionam com a vida da Capital Federal, nos principais veículos de mídia de Brasília. Segundo o jornalista Paulo José Cunha (2010: 112-117) as principais manifestações artísticas, políticas e culturais de Brasília passam pelo Beirute. O filme Nove, que pode ser acessado no site do Youtube, dirigido por Michel Gomes, documentando a vida social e cultural do bar Beirute, apresenta os tipos sociais ora apresentados como “ilustres frequentadores”: capital econômico e cultural do lugar, personagens que trazem as notícias, as novidades e o que acontece na cidade, no país e no mundo.

O frequentador do Beirute reivindica-se como “representante de uma classe média ilustrada” (DIAS, 2010). Um artigo do poeta Emanoel Medeiros Vieira (1994), ao falar de um grupo de frequentadores desse bar pontua com precisão qual é o lugar da fala deste, da psicóloga, do fotógrafo, do artista, enfim, de uma certa linhagem, do impoluto, para usar uma palavra sua.

Os “ilustres frequentadores”, em seus encontros, transformam o espaço do bar em lugar de informações sobre outros espaços e práticas de lazer na cidade. Informam e descobrem livros, autores, filmes, peças teatrais, festas, shows, boates, vernissages. Essas observações informam como é o “ilustre frequentador” dos bares pesquisados e que demandas culturais, intelectuais, políticas, artísticas eles reclamam e tecem. Informam também que redes de interdependências têm possibilitado a fixação do bar como espaço de sociabilidade e lazer.

Os “ilustres frequentadores” do Piauí chegam cedo ao bar. No turno matutino, “os amigos do Piauí” representam a assiduidade, a fidelidade e o compromisso de um grupo de amigos com o lugar, os conhecedores da “casa” bar

Piauí. Eles chegam com os jornais, são os primeiros frequentadores a chegarem ao

estabelecimento. O jornal, o jogo de palavras-cruzadas são material da unidade focal da interação inicial. Uma espécie de saudação de bom-dia, entre os membros do grupo. De cabeça baixa, fazendo as palavras-cruzadas ou acompanhando as notícias que leem a cada instante, algum deles anuncia a descoberta de alguma palavra mais difícil do jogo. Ou então, comenta-se alguma notícia da mídia, principalmente as da “ordem do dia”, as ordinárias: política, futebol, personalidades, artistas, novelas. E abre-se uma conversação, acompanhada de tragos nas bebidas, nos cigarros.

Fazer o jogo de palavra-cruzada, entre “os amigos do Piauí”, é realizar tarefa de sabe tudo, embora o jogo seja de nível médio de compreensão, em termos

de conteúdo. Ao realizarem tais jogos, o “ilustre frequentador” coloca na comensalidade seu capital cultural. Essa prática matinal pode ser observada entre frequentadores dos bares Piauí, Paixão, Cunhados e Paulicéia. É uma prática desenvolvida entre o público masculino, adulto e aposentados. O tempo de realização do jogo e a habilidade com vocábulos e sinônimos afirma o capital cultural desses “ilustres frequentadores” entre seus pares. Não é uma competição individualista, uns ajudam os outros e o jogo vai se resolvendo. Embora os brios individuais se reluzam com a descoberta das palavras “mais difíceis”.

Ler jornais, revistas, fazer palavra-cruzada são estratégias de interação dos “amigos do Piauí”. Fazem o jogo da palavra-cruzada, folheiam e leem o jornal, mas estão atentos à mesa. Esses comportamentos revelam que o “ilustre frequentador” não está submerso no entretenimento da leitura e do jogar. Não parece uma “simples adesão”, mas uma escolha. O jornal, a leitura, o jogo da

palavra-cruzada é o liame interativo. Assim, Erving Goffman (2010) percebe esse

tipo de situação:

O tipo de coisa que se lê no restaurante fala sobre a disponibilidade ou não para a interação e como a pessoa está se alimentando – por exemplo, ler jornal ou revista, leitura leve sugere que a pessoa pode estar mais aberta a algum tipo de interação. Ler livros acadêmicos, textos pesados sugerem que a pessoa está em estado de concentração, o almoço ou estar ali é subordinado, não é um envolvimento dominante o comer. (GOFFMAN, 2010: 63).

Esses “ilustres frequentadores” que iniciam com esses jogos e leituras parte do cotidiano do bar talvez não necessitassem desses jogos, revistas, ou jornais para a interação, eles são bastante próximos, envolvidos uns com outros, conhecedores do lugar, dos assuntos pessoais e das histórias do bar. Entretanto, outro papel dessas mídias, ao se tornarem conteúdos das interações, é moldar-se à sociabilidade. As mídias impressas, que esses “ilustres frequentadores” trazem para o bar, informam sobre suas formações. Essa observação de Goffman (2010) encontra eco, ainda, no comportamento de outro “ilustre frequentador” do Piauí, o

Sr. Embaixador. Este chega com seus livros e textos. Sua leitura parece mais densa,

exigindo-lhe mais concentração. Às vezes está lendo algum romance em inglês, francês ou alemão. Lê artigos científicos e especializados impressos. Seu envolvimento com outros frequentadores é à distância, mas gentil. Cumprimenta alguns frequentadores quando chega. É atendido pela funcionária, que já conhece

seus hábitos etílicos e gastronômicos. É simpático com o ajudante Chapeleiro, que sempre lhe cumprimenta e lhe oferece seus serviços. Mas fica nisso sua interação com o público do lugar. Beber e comer parecem um envolvimento subordinado, na noção de Goffman (2010), ao ato de estar no bar ensimesmado em leituras, envolvimento que domina seu estar ali.

Sanpaulino é um “ilustre frequentador” do Paixão. Para muitos frequentadores desse estabelecimento, Sanpaulino é tido como um dos mais ilustres dentre a maioria. Jovem, com 26 anos em 2009, é doutorando no Departamento de Biologia da Universidade de Brasília. Mora em um dos blocos da área comercial da superquadra, em frente ao bar. Sua educação, gentileza e polidez no trato com as pessoas, somadas ao seu bom humor são qualidades que o caracterizam como um “ilustre frequentador”.

Sanpaulino mora sozinho em uma quitinete alugada, vive de uma bolsa

de estudos, tem uma namorada. Ela também frequenta o bar, embora com menos frequência que ele. Sua vida “é um livro aberto”. Planaltino, Bicicletino e muitos frequentadores conhecem sua vida, “muito simples”. Seu projeto é terminar o doutorado, fazer concursos e ser aprovado em alguma instituição de pesquisa ou universidade, casar com sua namorada, ter filhos.

Assiduidade, envolvimento, constância, participação na história do bar são condições que habilitam ao pertencimento, ao ajuntamento. Essas marcas de distinção possibilitam aos “ilustres frequentadores” certos privilégios no atendimento, no tratamento que recebem. Além do que, são queridos pelos funcionários e proprietários dos bares pela polidez, educação, gentileza e presteza com que frequentam o bar. Jornalistas, escritores e outros “ilustres frequentadores” do Beirute em vários textos escrevem gentilezas para os garçons do bar, os cozinheiros, os proprietários, como foi mostrado na seção sobre os funcionários.

No documento Gilberto Luiz Lima Barral (páginas 189-195)