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Sagrado descanso: funcionários no intervalo

No documento Gilberto Luiz Lima Barral (páginas 180-189)

Devido a essa configuração familiar, que “ajunta” proprietários, frequentadores e funcionários, uns com outros, é possível este modelo de bar em Brasília. A solidariedade entre eles é uma contribuição suplementar para a aplicação das normas de conduta no bar. Um dia de limpeza das mesas e cadeiras no Piauí mostrou uma cena de mutualidade, de solidariedade e reciprocidade nas ações entre funcionários que, em muito, propicia o crescimento e cristalização dos negócios. Um dos garçons, Goiano, chegando para o evento diz, com um sorriso largo no rosto, em tom de brincadeira e zombaria, como uma espécie de cumprimento, de bom-dia, a um outro funcionário, Calango, que está sentado a uma mesa: “Olha a cara do pião!”. Ao que Calango responde, perguntando: “Cadê o

Soza”?

Soza é um outro garçom do Piauí que deveria estar presente para a

tarde em casa e faltou à tarefa matinal. Essa tarefa de limpeza das mesas diz respeito aos cuidados com a higiene e é realizada uma vez por semana. Não é a limpeza ordinária da mesa de bar que se faz a todo momento, e a cada troca de frequentador; é uma limpeza em que as mesas e as cadeiras são lavadas, escovadas e higienizadas com mais cuidado.

Essa limpeza não é uma atribuição direta dos garçons, mas eles, como funcionários do Piauí, engajam-se voluntariamente na tarefa. Esse trabalho semanal de limpeza e cadeiras é como um ato de ajuntamento da teia privada do estabelecimento. Participam dela os filhos do proprietário, garçons, balconistas, cozinheiros e ajudantes. A cada semana um grupo se articula para a lavagem dessa mobília. Nesse dia, Soza não veio, mas a tarefa foi realizada com sucesso e divertimento. O sistema de solidariedade e reciprocidade mútuas funcionou entre eles.

“Ih, moço, o Soza não vem aqui hoje não!”. Entre sorrisos e cumprimentos aos presentes, Goiano chega ao puxadinho do bar conversando com Calango, mas sua fala alcança mais pessoas que estão no bar. “Ele bebeu até de manhã, eu já liguei pra ele”, fala Goiano. “Então, vamo embora lá nós dois!”, sugere Calango. Antes de se levantarem e irem para o serviço, eles conversam um pouco mais, enquanto fazem o lanche da manhã: refrigerante e pão com linguiça. Na conversa falam da noite anterior.

Goiano diz para Calango: “A galega tava no ônibus, aquela gaúcha, eu levei ela lá pra casa. Acordei, fiz sexo e vim embora trabalhar!”. “Cê faz sexo todo dia?!”, brinca Calango. “Eita rapaz!”, responde Goiano. “Tá até magro!”, zomba

Calango. “Tô é amarelo de fome!”, completa Goiano.

O garçom, Goiano, olha pra mim, com um sorriso estampado no rosto, e continua a conversa. Seu sorriso denuncia que sua história é uma brincadeira, uma invenção de mentira para começar com bom humor o dia. Chapeleiro, ajudante no bar, está em pé, junto a Goiano e Calango, mas não participa da conversa- brincadeira. Sua atenção está voltada para mesa dos “amigos do bar Piauí”.

Chapeleiro passa boa parte das manhãs, ajudando no bar, mas, sobretudo, cuida

com atenção redobrada da mesa dos “amigos do Piauí”. É dessa mesa que vem grande parte de sua renda diária.

Funcionário, aqui, diz respeito a uma categoria ampla de trabalhadores de bar: balconista, cozinheiro e cozinheira, caixa, copeiro, garçom, auxiliar de limpeza,

ajudante. O ajudante Chapeleiro substituiu, por volta de 2007, o ajudante Felipera no

Piauí. A tarefa deles é, em termos gerais, auxiliar na arrumação da área externa no

bar; atender alguns frequentadores, lavando seus veículos, comprando jornais ou revistas nas bancas próximas para os frequentadores e outras tarefas que aparecem. Filipera cuidara com atenção do grupo dos “amigos do Piauí”, agora quem o faz é Chapeleiro. Ambos não possuem nenhum tipo de contrato formal com o bar. Os “amigos do Piauí” são generosos nas gorjetas e sabem que o ajudante precisa delas. Outros bares possuem seus ajudantes informais. No Meu Bar o ajudante é o Perna. No Paixão é o Porteiro. No Careca é o Menino.

Muitos garçons bebem e gostam de beber, e como Francisco Emílio disse em conversas, “é difícil ver passar aquela cerveja gelada e não ficar com água na boca”. Funcionários de bar, os que ingerem bebidas alcoólicas, têm que suportar esse sacrifício. Mas quando o expediente termina, alguns funcionários saem de seu trabalho para beber. Alguns funcionários do Piauí procuram algum bar para beber, encontrar outros amigos funcionários de outros bares. Eles saem do trabalho entre 1h e 3h e como têm que esperar os primeiros ônibus da manhã, por volta das 5h, acabam ficando em outros bares bebendo98.

Nessa manhã, de limpeza de móveis no Piauí, o garçom Soza não compareceu à tarefa, mas ela foi realizada. Sua falta não se configura uma falha. O grupo que se articula para essa lavagem semanal das mesas conhece a rotina desse serviço “voluntário”. Sempre falta alguém, sempre pode aparecer alguém, ou a tarefa pode se realizar com os membros que se dispuseram a realiza-la e estão ali. Terminado o lanche, os dois funcionários começaram os preparativos para a tarefa: 40 mesas e mais de uma centena de cadeiras a serem lavadas, escovadas e higienizadas. Soza não esteve presente, mas “uma mão lava a outra”, e juntas fazem o serviço a ser feito, lavar as mesas e cadeiras e colocar o bar para funcionar. No bar Paixão, por exemplo, o ajudante Porteiro, que é funcionário do bloco comercial onde está situado o bar, começa a limpeza desse bloco pela área em frente ao Paixão. Ele já conhece a rotina e sabe que Planaltino sempre chega sozinho no bar, por volta das 9h. Bicicletino, funcionário do Paixão, somente chega

98 No Plano Piloto são raros os bares que atualmente ficam abertos na madrugada, mas pelo menos dois foram citados nas conversas. Outra prática também é ficar no bar, depois de encerrado o expediente ao público, bebendo.

às 10h. De modo que Porteiro, começando a limpeza pela área do bar, auxilia os serviços de Planaltino e Bicicletino. Faz 15 anos que Porteiro presta sua ajuda ao estabelecimento de Planaltino. Essa sua ação lhe traz benefícios: doses de bebida; tira-gosto; refrigerante. Às vezes, em alguns domingos e/ou feriados Planaltino tira seu dia de repouso. Como Porteiro está de folga do trabalho de zelador no bloco, ele cuida do expediente no Paixão, recebendo uma diária pelo serviço.

A participação dos funcionários é vital para o bar. E eles são muitos, alguns trabalham invisíveis, nos bastidores onde os frequentadores não enxergam. Um poema, escrito por José de Andrade, em seu artigo Homenagem ao trabalhador

do Beirute, traz esse elenco recôndito de funcionários do bar:

Primo, Borjão & Companhia

Garçons, copeiros, serventes, Entre eles cito o Primo, De quem, de fato me esqueci. Não esqueço o pessoal da limpeza, Atendentes e cozinheiros,

Dos quais alguns eu nunca vi. Não sei, tenho certeza,

São sempre bons companheiros. Faço questão de citar,

Entre as personalidades, O amigo José Borges,

Pelas suas qualidades. (ANDRADE, 2010: 139).

Outro poema escrito por José de Andrade fala com ainda mais ênfase desses funcionários que fazem o bar funcionar, e amplia a categoria funcionário de

bar. Canta o poema:

Cozinheiros da retaguarda, Nunca ficam na vanguarda; Trabalhadores anônimos, Labutam atrás dos panos, Quase nunca aparecem.

Os fregueses não os conhecem, Pois ficam sempre escondidos, Nos bastidores revestidos, Com missão muito específica: Atendem ao que lhes ordenam E não podem fazer futrica, Pois o prato pode desagradar. A culpa sempre os implica, Se for contra o paladar! Atendem com atenção A todos os nossos pedidos, Porque, se não atendidos,

Provocam sempre reação. (ANDRADE, id.: 141).

Quarta-feira, 18h20min. Chego ao Bar do Careca com a intenção de devolver o original de uma “carta” que o funcionário, Negomano, me emprestara99. Sento à “minha mesa” e logo vem Negomano me cumprimentar e retirar meu pedido. Assim que ele se aproxima, devolvo-lhe a “carta”. Na noite anterior, tendo passado pelo estabelecimento ouvira, enquanto descansava, algumas reclamações e sugestões que Negomano vinha desenvolvendo em relação ao bar e aos seus patrões. Depois de conversarmos por alguns minutos, ele, entre envergonhado e

99 O vocábulo “carta” está entre aspas devido apenas a problemas de categorização em termos de gênero textual.

orgulhoso, apresentou-me a seguinte “carta”, que escrevera para seus patrões e que intentava lhes entregar:

Negomano pediu-me para lê-la. Li, e antes de terminar a leitura me

interessei pelos escritos. Pedi-lhe emprestado o texto, fotocopiado, que ora transcrevo, para facilitar a compreensão:

Comunicado Urgente!

- João e tia Antônia, venho aqui lhes dizer que temos que mudar duas coisas, João você é um playboy! (Risos) desculpas!

- João você não percebeu que o seu Bar precisa de uma conzinheira, para que sua mãe não fique cheia de serviços todos os dias e que ela possa concluir suas caminhadas matinais.

- João e querendo ou não nos precisamos de um ajudante porque até o quiosque do tem 6 dúzia de funcionário. E não vem falar que você, tia Antôna e eu damos conta do recado, porquê não damos conta não! E precisamos de uma 4ª pessoas para que nosso bar seja o melhor, melhor da vila seu idiota imbecil.

Precisamos também criar um cardápio por que tá faltando. E três tipos de tira gostos não faz a cara do seu bar

Tia antônia minha querida tia, mãe e amiga, você é mulher mais prendada que pude ter o prazer de conviver ao longo desses 3 anos. - não me esqueço de agradecer a vocês dois por tudo que fizeram e fazem por mim.

Há tia não precisas se preocupar, porquê estou de olho lá fora e aqui dentro.

Tia e João temos que ter uma maquina de Cartão querendo ou não. Nossos Clientes e vai ser bom pro comércio porquê além de acabar com o fiado vai aumentar a produção do bar.

E só estou aqui para esspressar minha opinião a vocês e se falei de mas me desculpe!100

A “carta” de Negomano traz informações que já se listou como características dos bares pesquisados: administração familiar; laços de parentesco, e/ou de solidariedade entre proprietários e funcionários. Os proprietários do Bar do

Careca são mãe e filho. Negomano, funcionário, sobrinho e primo. Em seu

“comunicado urgente”, o funcionário busca se colocar em relação ao

empreendimento. Ele quer ver o “nosso bar ser o melhor”. No bar ele é garçom, caixa, balconista, cozinheiro, repositor de estoque, auxiliar de limpeza. Às vezes até mesmo gerente. Tem um contrato formal, é funcionário, as funções que desempenha são muitas.

Sua visão sobre administração parece-lhe melhor que a de seu primo e de sua tia para “aumentar a produção do bar”. Em termos de estrutura, ele pensa em equipar o bar com uma cozinheira, um ajudante, “uma máquina de cartão” para “acabar com o fiado”, “criar um cardápio por que tá faltando. E três tipos de tira gostos não faz a cara do bar”. Negomano faz seu diagnóstico do estabelecimento e apresenta propostas, mas o faz indiretamente, por carta, com todas as cerimônias das hierarquias parentais. Ele, o primo pobre, pede desculpas ao primo rico, “playboy”, quando vai fazer sua crítica. Para “tia antônia minha querida tia, mãe e amiga” ele apela cheio de cuidados e preocupações, até mesmo com as “caminhadas matinais” da tia.

Os laços familiares não permitem que Negomano avance sua crítica e sugestões ao Bar do Careca, sem antes pedir a benção à tia. Ele não quer de forma alguma ser mal interpretado, isto é certo. Passados alguns meses, perguntei-lhe sobre o desfecho da “carta” e da reunião que disse que faria com a sua tia e primo.

Negomano ainda não havia entregado a carta, nem realizado a reunião, faltava-lhe a

coragem. O modo respeitoso como deve tratar os parentes e patrões, nessa ordem de hierarquia, afeta-lhe algumas ações, restringe-lhe movimentos.

Poder-se-ia argumentar, que, ao contrário, os laços de família poderiam facilitar o acesso ao diálogo ou desinibir. Mas a saída de Negomano resulta em uma ação por medo do constrangimento. Negomano continua funcionário do bar, estável. Vendendo sua mão-de-obra, oferecendo suas contribuições, algumas invisíveis, para a manutenção e funcionamento do Careca. Enquanto sua tia administra a cozinha, seu primo negocia compras, estoques e contabilidade. Negomano faz a parte que lhe cabe para tornar o bar um espaço de descanso, acolhimento e lazer na Vila Planalto.

A interdição que se opera, na fala entre Negomano – sobrinho e

funcionário – e a Viúva do Careca – tia e patroa –, revela a estrutura dos laços de parentesco que marca a rede de interdependência que se urde neste bar. Manter uma relação de trabalho e familiar, no mesmo espaço e tempo, é uma condição que orienta a conduta e o comportamento dos atores envolvidos.

As contribuições de outro funcionário de bar foram representativas da qualidade do trabalho dessa categoria. No ano de 2007, Ciço, um dos garçons do bar Beirute, foi agraciado com o título de Cidadão Honorário de Brasília. O agraciamento é feito pela Câmara Legislativa do Distrito Federal. Segundo o texto do jornalista Marcelo Abreu, para o jornal Correio Braziliense,

o título de cidadão honorário foi apresentado pela deputada distrital Érika Kokay (PT). A proposta foi aceita sem discussão pelos seus pares. Ela mesma, durante muitos anos, foi uma das frequentadoras assíduas do Beirute. “O Beirute faz parte da história libertária da cidade. Era ali, nos anos mais difíceis, que a polícia queria confiscar nossas ideias. E o Cícero faz parte disso. Ele é a identidade do lugar. Representa o acolhimento. E já é personalidade. Estamos apenas formalizando. E nada é mais justo do que reconhecer essa homenagem”. (ABREU, 2007).

O título de Cidadania Honorária é uma honraria concedida para pessoas que têm atuação destacada para a comunidade, mas que não são nascidas na cidade. As câmeras municipais têm essa prerrogativa e a deputada distrital corroborou o argumento de que “os serviços de Ciço para Brasília” são destacáveis para a comunidade. Certamente, pelo papel que este tem desempenhado, na teia de interdependências, para a constituição dos bares como um espaço de lazer, este título é legitimador de sua personagem do bar.

2.4.3 “Ilustres frequentadores”

No documento Gilberto Luiz Lima Barral (páginas 180-189)